1945
Segui a enfermeira até casa e vi um paramédico na cozinha, no final do corredor. Mesmo da porta da frente, conseguia ver as batatas espalhadas pelo chão e o brilho do azeite sobre os azulejos. Como podia ter deixado Paul sozinho, depois de todos os avisos do Dr. Bedreaux?
Quando nos aproximámos, vi-o sentado à mesa, com uma enfermeira a segurar-lhe o pulso. Uma onda de calor percorreu-me os braços.
– Estás bem, Paul. Graças a Deus.
Olhou para mim. Tinha estado a chorar?
– Tentámos ligar-te. Acreditas nisto, Caroline? Parece um sonho.
– Não compreendo. – Abanei a cabeça.
– Tocaram à campainha – começou ele. – É tudo tão... surreal.
– Quem tocou à campainha, Paul?
– Rena.
– Rena tocou à campainha? O que dizes não faz sentido.
– Levaram-na lá para cima.
– Ela voltou? – A minha voz soava distante, estranha.
– Ela tem estado no Hospital Americano. – Paul esfregou uma mancha na toalha de mesa.
Estava contente? Não especialmente. Era tudo tão confuso.
– Não conseguiu falar muito. Parece que uma família alemã a acolheu.
Curvei-me junto à ombreira da porta.
– Que maravilha – consegui apenas dizer. – Agora é melhor ir.
Voltei-me para sair.
– Caroline, espera – pediu Paul. – Onde vais?
– Isto é demasiado.
– Eu sei. Lamento, Caroline. Rena está há semanas no hospital, demasiado doente para conseguir falar.
Lamento. Odiava aquela palavra. Quantas vezes tinham as pessoas usado aquela palavra quando o Pai morreu? Je suis désolé soa bem em francês, mas só torna as coisas piores.
– Bem, tenho de ir para casa – disse.
Precisava de tempo para pensar e não me queria ir abaixo na sua frente. Afinal de contas, uma mulher estava viva e não tivera uma morte trágica num campo de concentração. Naquela altura, estaria certamente deitada lá em cima, na cama de Paul.
Ele olhou para as batatas no chão.
– Sim. Falamos amanhã.
– Eu queria dizer para casa no Connecticut.
– Não podes fazer isso. Isto é um choque para todos nós.
– Não consigo pensar como deve ser. Tenho de ir.
Porque não pôs os braços à minha volta e me pediu para ficar?
– Amanhã falamos e resolvemos tudo – disse Paul, continuando sentado.
Sem saber como, cheguei até ao carro e ao apartamento da Mãe, onde me submeti a um isolamento voluntário, quase sempre deitada na cama, vestida com umas calças de pijama e a camisa de Paul que usara em sua casa. O telefone da cozinha tocou algumas vezes, até que levantei o auscultador do gancho e o deixei pendurado. Si vous souhaitez faire un appel, s’il vous plaît raccrochez et réessayez*, repetia a voz gravada, até que, finalmente, se ouviu uma série de pequenos bipes e, depois, mais nada.
A campainha da porta também tocou várias vezes, mas eu não atendi.
Autoflagelei-me durante o dia – deixei que o chá quente arrefecesse e depois bebi-o morno e com excesso de leite – e mergulhei numa data de congeminações sobre «o que poderia ter sido». Poderia ter sido amor para sempre. Poderia ter sido um casamento. Um bebé. Tinha mesmo empenhado metade das pratas da Mãe para tratar do marido de outra mulher, restituindo-lhe a saúde? Betty tinha razão. Tinha andado a perder tempo.
Até que uma manhã a Mãe entrou no apartamento e se plantou à porta do meu quarto, com o guarda-chuva a pingar para cima do tapete.
A Mãe. Esquecera-me de que ela estava para chegar.
– Está a chover imenso – disse-me.
Ainda bem, pensei. Pelo menos estavam todos em casa, tão infelizes como eu.
– Por amor de Deus, Caroline, o que se passa? Estás doente? Porque não atendes o telefone?
Podia não ser francesa, mas não tinha o direito de me enfiar na cama e ficar a marinar no meu próprio desespero?
– A mulher de Paul regressou – disse.
– O quê? Dos mortos? Como é possível? Onde é que esteve todo este tempo?
– Não sei. Em algum hospital.
– Isso é incrível. Bem, tens de te recompor.
– Não consigo – respondi, puxando o edredão para cima dos ombros.
– Vais tomar um banho, enquanto eu te preparo um chá. Um banho torna tudo melhor.
Não havia como contrariá-la. E tinha razão sobre o banho. Saí com um pijama lavado e sentei-me à mesa de metal da cozinha.
– Eu sabia que isto nunca iria dar certo – desabafei. – Não estou destinada a ser feliz.
A Mãe deu-me uma chávena com uma saqueta de chá Earl Grey Mariage Frères e um bule com água quente.
– Tristeza é sabedoria...
– Por favor, Mãe. Byron agora não. Tudo isto não passou de uma fantasia ridícula. Como me deixei levar desta maneira? Devia ter percebido. Lutei tanto para que tudo acabasse bem.
– Só porque ele tem mulher não significa que não possas ficar com ele – replicou. Algumas horas em França tinham bastado para atirar os princípios morais para trás das costas.
– Talvez. Mas porque é que tudo tem de ser sempre tão difícil, Mãe? Aparece sempre algum problema.
A campainha da porta tocou. Agarrei-lhe no pulso.
– Não atendas.
A Mãe foi até à porta, o que me fez lamentar tê-la convidado para ir a França.
– Quem quer que seja, eu não estou – gritei, atrás dela.
A Mãe abriu a porta. Ouvi uma mulher apresentar-se como sendo Rena.
Oh, meu Deus, Rena. Todos menos ela.
A Mãe regressou à cozinha com Rena a reboque e depois deixou-nos sozinhas. Rena ficou à porta, com um vestido de algodão que se agarrava a ela como roupa molhada, deixando ver a extremidade de uma clavícula e um buraco do tamanho de uma tigela de sopa, logo por baixo.
– Desculpe interromper o seu chá, Caroline – começou, parecendo uma menina da escola, toda ela olhos e o rosto encovado. – Eu tentei telefonar. – O seu olhar vagueou até ao auscultador pendurado.
– Oh – disse eu.
Rena mudou o peso de um pé para o outro.
– O Paul também pede desculpa. E também lhe tentou telefonar...
– Por favor, sente-se – convidei.
Passou um dedo por trás da orelha, como que para prender uma madeixa de cabelo – provavelmente um velho hábito, já que agora não tinha ali cabelo para prender.
– Não lhe vou roubar muito tempo. Queria apenas dizer-lhe que lamento muito.
– Lamenta? – Despejei a água quente sobre a saqueta de musselina. O odor da bergamota provocou-me um enorme desejo de comer os scones de violetas de Serge.
– Por tudo o que aconteceu – continuou.
– Não tem de lamentar, Rena.
– Talvez seja melhor sentar-me. Não demoro.
– Claro. Chá?
– Não, obrigada. Ainda não consigo beber muito. Disse a Paul que ele deveria vir visitá-la em breve. Explicar tudo...
Tentei beber um pouco de chá, mas nem conseguia ver a chávena, com a cabeça a latejar e a visão enevoada.
– Acho que Paul não ficou contente por me ver – disse.
Lá fora, na rua, as crianças riam, as suas vozes ecoando por entre os edifícios, enquanto brincavam à chuva.
– Provavelmente preferiria que eu estivesse mesmo morta – continuou. – Eu própria o desejei muitas vezes, acredite. Se tivesse podido, eu teria dito alguma coisa. Estou viva por sorte.
– Compreendo.
– Não, acho que não compreende. Como poderia? Foi uma questão de sorte que tenham cortado com o procedimento habitual. Tinham-nos tirado os sapatos, por isso sabíamos.
– Rena, não tem de...
– Tínhamos partido de Majdanek de comboio, em direção a um subcampo, segundo pensávamos. O comboio abrandou algures, ainda na Polónia, e obrigaram-nos a sair.
Rena fez uma pausa e olhou pela janela.
– Eu estava doente. Com tifo, acho. Quase não conseguia andar quando nos fizeram caminhar pelo meio do bosque. Ao longo do caminho, havia dinheiro em notas espalhado pelo chão. Alguém antes de nós o deitara fora. Suponho que para que os alemães não ficassem com ele. Alguém sussurrou que iam obrigar-nos a trabalhar, mas eu sabia. Chegámos a um barracão e mandaram-nos despir.
– Por favor, Rena. Não tem de me contar...
– Desculpe-me. Também para si é difícil ouvir tudo isto?
Abanei a cabeça, querendo dizer que não.
– Aconteceu tudo tão depressa. Alinharam-nos à beira de um enorme fosso...
Rena perdeu o fio à meada e alheou-se para longe. Após uns instantes, recomeçou.
– Quando a rapariga ao meu lado viu o que estava lá em baixo, começou a gritar. A mãe abraçou-a e fuzilaram-nas primeiro. Os disparos fizeram-nas cair em cima de mim e deslizámos as três por um dos lados do fosso...
Fez uma pausa e eu quase nem pestanejei, com medo de a interromper.
– Fiquei quieta, enquanto mais corpos caíam por cima de mim. Por fim, os tiros pararam e percebi que era quase noite, já que por entre os espaços em volta dos corpos eu conseguia ver a luz a diminuir. Na escuridão, rastejei para fora do buraco e revirei o barracão em busca de roupas. – Olhou para o teto. – Devia ter visto as estrelas nessa noite, espalhadas pelo céu, em grandes quantidades. Era como se estivessem a observar tudo, tristes por não poderem fazer nada. Fui andando pelo meio do bosque até chegar a uma casa e um agricultor e a sua mulher acolheram-me. Um casal alemão. O filho tinha sido morto na frente russa. A princípio, a mulher estava com medo que eu lhe roubasse o relógio de pulso, que era muito bonito e lhe fora oferecido pelo filho, para além de ser um recurso valioso. Mas depois acabaram por ser muito gentis. Deixaram-me ficar na antiga cama do filho e trataram de mim enquanto estive doente, como se fosse também sua filha. Davam-me pão quente com compota de morango. Retribuí-lhes a hospitalidade passando-lhes a minha doença.
Passei-lhe um guardanapo e ela limpou um olho e depois o outro.
– O senhor foi o primeiro a morrer. Quando os russos chegaram, disse-lhes que tínhamos todos tifo, mas taparam-me a cara com um tapete e violaram-me, ainda assim. Depois, violaram a mulher do agricultor e tiraram-lhe o relógio de pulso. Ela morreu nessa noite. Não me lembro de muito mais, a não ser de breves momentos, até estar já no hospital. Portanto, como vê, gostaria de ter chegado mais cedo, mas estava...
– Lamento o que lhe aconteceu, Rena. Porque me conta tudo isso?
– Sei o que Paul significa para si...
– Ele disse-lhe?
– Quando regressou de Nova Iorque. Nessa altura não me importei, mas agora as coisas são diferentes.
Claro que as coisas eram diferentes. De uma forma que nenhum dos dois poderia alterar.
– Gostaria que fosse feliz, Caroline. Mas não posso abrir mão de Paul. Antes, talvez, mas agora não.
Rena segurava a extremidade da mesa. Precisava de descansar.
– Acho que deve ir para casa ter com ele, Rena.
– Sim, mas preciso de lhe dizer mais uma coisa.
Ainda havia mais?
– Não acho que...
– Ainda não o disse a Paul. – Levantou-se com esforço, respirando profundamente.
– Rena, não é...
– Levaram Paul antes de nós. Eu estava muito doente, não conseguia comer nada. Pensei que era uma gripe, mas depois descobri... que estava, bem... à espera de um filho.
O mundo parou por um momento, suspenso no ar. À espera de um filho? Aquela encantadora frase francesa.
– Grávida?
Rena susteve o meu olhar e acenou impercetivelmente com a cabeça.
– Era... – comecei, sem me conseguir impedir.
– Dele? – Olhou para as mãos durante muito tempo. – A guerra faz coisas estranhas às pessoas. No nosso caso, aproximou-nos. A criança deve ter sabido o que se passava. Ela chegou no dia em que a Gestapo me foi buscar. Na manhã de Páscoa.
Ela? Paul tinha uma filha. Pressionei os dedos frios contra os lábios.
– Fomos avisados de que iria haver um ataque aéreo. O meu pai pegou na criança, dizendo que se iriam abrigar num convento que conhecia. Era tão pequenina, que a levou numa caixa de sapatos.
– Onde ficava o convento?
– Não sei. Foram buscar-me nessa noite. O meu pai não regressou.
– Lamento imenso a sua perda, mas eu...
– O convento mais próximo foi abandonado durante a guerra e por isso ando a escrever para orfanatos, mas o Paul disse-me...
– Na verdade, não estou em posição de ajudar, se é isso que me está a pedir.
Levantei-me e levei a chávena para o lava-louças.
– Compreendo a sua relutância, Caroline. Eu também não me quereria envolver, se estivesse no seu lugar. Mas se reconsiderar...
– Partirei em breve para Nova Iorque – disse, com uma mão sobre o lava-louças frio.
– Claro. Obrigada pelo seu tempo, Caroline – agradeceu, levantando-se.
Fiquei a vê-la dirigir-se para a porta e depois observei-a através da janela, enquanto caminhava até ao fim do quarteirão, a segurar a carteira por cima da cabeça, para se proteger da chuva.
A simples ideia de contactar orfanatos à procura da filha de Paul e Rena levou-me novamente para a cama. Apesar de anteriormente ter afirmado o contrário, parecia que afinal havia espaço para uma criança na vida de Paul. Porque haveria eu de pôr-me em campo para a encontrar? Ele não ficara propriamente preocupado com os meus sentimentos, no meio de tudo isto. Talvez eu tivesse caído uma vez, mas aprendera a lição. Havia uma série de detetives privados cuja missão era procurar entes queridos desaparecidos. Muitos fariam certamente um melhor trabalho do que eu.
Quando a noite inundou o apartamento, eu já decidira. Paul e Rena teriam de se desenvencilhar sem mim.
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* «Se deseja efetuar uma chamada, por favor desligue e volte a tentar.» (N. da T.)