Capítulo 34

HERTA

1947

O chamado julgamento dos médicos, em Nuremberga, foi uma farsa do princípio ao fim e o trauma daí resultante provocou-me uma série de infeções brônquicas debilitantes. A espera. As resmas de papel que poderiam ter sido queimadas para impedir que bons alemães ficassem naquela situação. Os 139 dias de julgamento, 85 testemunhas e interrogatórios infindáveis aos réus.

Só o depoimento do Dr. Gebhardt demorou três dias e foi especialmente penoso de ouvir. Enquanto explicava, pormenorizadamente, as operações, arrastava-me a mim e a Fritz consigo. Ofereceu-se até para que efetuassem essa operação nele próprio, para provar como os procedimentos eram inofensivos, mas a sua proposta foi ignorada.

E porque fui pedir ao meu advogado, o Dr. Alfred Seidl, para me dizer o que tinha acontecido com Binz e Marschall, no chamado julgamento do pessoal do campo de Ravensbrück, em Hamburgo, no dia em que eu ia depor? Só me fez temer mais o que iria acontecer nessa manhã.

– Primeiro foi a Elizabeth Marschall – contou Alfred –, depois Dorothea Binz e por último Vilmer Hartman. As mulheres em primeiro lugar, creio.

Os meus músculos abdominais contraíram-se quando me mostrou a fotografia no jornal. Era de Vilmer, com as mãos presas atrás das costas, o pescoço partido na quinta vértebra e os pés pendurados, ainda com os seus belos sapatos. Ele tinha caído bem. O nó da corda, por baixo do seu maxilar esquerdo, partiu o osso áxis que, por sua vez, cortou a medula espinal. Observei as fotografias dos outros, todos pendurados como patos no suporte do caçador, e fui acometida por um medo terrível, que me provocou tremuras nas mãos. Muitos tinham-se virado para a religião, antes de percorrerem os treze degraus até à forca. Todos foram posteriormente enterrados em túmulos sem nome.

Os acontecimentos desse dia no tribunal também não ajudaram a acalmar-me. O primeiro de todos foi o testemunho de uma Coelha de Ravensbrück.

– Pode identificar a Dra. Herta Oberheuser? – pediu Alexander Hardy, o advogado da acusação. Era um homem razoavelmente atraente, como uma linha de cabelo que começava a recuar.

A Coelha apontou para mim. Como era possível? Lembravam-se de mim? Eu não tinha qualquer recordação delas. Sabiam o meu nome? Eu fora tão cuidadosa. Alfred avisou-me de que os polacos queriam que fosse extraditada para a Polónia, para aí ser julgada. Só eu. Outros não tinham feito muito pior? Alfred contestara esse pedido e ganhara. Pouco depois, foi a minha vez.

– Chamamos Herta Oberheuser para depor – declarou Hardy.

Fritz lançou-me um olhar de encorajamento. Respirei fundo, sentindo a cabeça a latejar. Dirigi-me ao banco dos réus, a multidão uma mancha enevoada, e procurei a Mutti entre a assistência.

– Como pode ter participado nas experiências das sulfamidas de consciência tranquila, Herta Oberheuser? – perguntou Hardy.

– As prisioneiras eram mulheres polacas que tinham sido sentenciadas à morte – respondi. – Iriam morrer, de qualquer maneira. Essas experiências ajudaram os soldados alemães. O meu sangue.

Vi Mutti junto ao varandim, com os dedos sobre os lábios. Onde estava Gunther?

Hardy abanou uma série de papéis na minha direção.

– Alguma foi fuzilada, ou de outra forma executada, após ter sido sujeita a estas experiências?

– Sim, mas eram prisioneiras políticas com... – a lâmpada vermelha junto ao banco das testemunhas, à minha frente, acendeu-se. Os intérpretes estavam com dificuldade em acompanhar. Tinha de falar mais devagar.

– Prisioneiras... políticas... com sentenças de morte.

– Relativamente às injeções letais, no seu depoimento admite ter dado cinco ou seis. É correto?

Porque admitira uma coisa dessas no meu depoimento? Poderia fingir que não percebia o tradutor?

– Não – respondi.

– Bom, deu injeções e depois disso as pessoas morreram, não foi assim?

– Sim, mas tal como já disse anteriormente, foi uma ajuda médica a pacientes que estavam em agonia e prestes a morrer.

– E esta ajuda médica resultou em morte, não é verdade? – prosseguiu Hardy.

– Não. – Mantive o olhar fixo nas minhas mãos, sobre o colo.

– Eu perguntei: «E esta ajuda médica resultou em morte, não é verdade?» – insistiu.

– Tal como disse, essas pacientes estavam em agonia e prestes a morrer. – Enquanto estudava as minhas mãos, o meu coração parecia prestes a explodir.

– Menina Oberheuser, alguma vez recebeu algum prémio ou medalha?

– Recebi a Cruz de Mérito de Guerra, se me estou a recordar corretamente.

– E porque recebeu essa medalha?

– Não sei.

Hardy inclinou-se no seu pódio.

– Terá sido pela sua participação nas experiências das sulfamidas?

– De maneira alguma.

– Não tenho mais perguntas, Meretíssimo.

Muito embora tivessem sido apresentadas aos juízes americanos, que ficaram visivelmente chocados, provas de experiências americanas similares a estas de que nos acusavam, os veredictos acabaram por focar-se na questão de saber se os sujeitos das experiências tinham ou não sido voluntários. Só me restava vaguear pelo pomar, no pátio de exercícios da prisão, e esperar.

Fritz parecia devastado com o julgamento. Enquanto alguns médicos lidaram bem com a situação e tentaram minorar a gravidade dos factos, ele ficou arrasado. Não podíamos contactar quando estávamos na sala de audiências, mas uma vez conseguiu falar comigo enquanto entrávamos no elevador, para descer para as celas.

– São capazes de me enforcar também – disse. – Estou acabado.

No julgamento dos médicos, Fritz foi o único arguido visivelmente arrependido, facto que não passou despercebido entre os outros médicos, que se mantiveram firmes até ao fim.

No dia da nossa sentença, 20 de agosto de 1947, eu usava um vestido-casaco de lã preto e mangas compridas, com uma gola com um laço branco, fornecido pelo tribunal. O coração batia-me com força no peito, enquanto ouvia a leitura das sentenças dos meus colegas, uma de cada vez, na sala de audiências. Aguardei no corredor que me chamassem, atrás da porta de madeira da sala, com um guarda americano silencioso ao meu lado. Por essa altura, já sabia inglês suficiente para perceber o destino do Dr. Gebhardt.

– Dr. Karl Gebhardt, o Tribunal Militar Um considera-o culpado de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e participação em organização declarada criminosa por decisão do Tribunal Militar Internacional, conforme as acusações até agora reunidas contra si. Pelos referidos crimes dos quais vem acusado, o Tribunal Militar Um condena-o, Karl Gebhardt, à morte por enforcamento.

Sentia cada vez mais dificuldade em respirar. Quando chegou a minha vez, a porta abriu-se, entrei na sala de audiências e coloquei os auscultadores de tradução. A sala assumiu uma cor vívida, saturada e intensa, enquanto procurava a Mutti por entre a multidão.

– Herta Oberheuser, o Tribunal Militar Um considera-a culpada de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade, conforme as acusações até agora reunidas contra si.

Quando ouvi a palavra «schuldig» nos auscultadores, segurei-me à balaustrada. Culpada. Veio, então, a sentença. Ouvi, entorpecida.

– Pelos referidos crimes dos quais vem acusada, o Tribunal Militar Um condena-a, Herta Oberheuser, a vinte anos de prisão, a cumprir em prisão ou prisões, ou em outro lugar de confinamento apropriado, conforme for determinado pelas autoridades competentes.

Tive o cuidado de não mostrar qualquer reação à sentença. Fritz foi condenado a prisão perpétua e muitos dos outros condenados a juntar-se a Gebhardt na forca. Quando fosse libertada, eu seria uma mulher velha. No minuto e quarenta segundos que demorou a ser lida a minha sentença, arrancaram-me a possibilidade de prosseguir o meu trabalho.

A 2 de junho de 1948, o Dr. Gebhardt foi enforcado numa das três forcas portáteis, no ginásio da prisão. Li no jornal que os nós que usaram nesse dia não estavam devidamente ajustados e, em consequência, muitos dos condenados permaneceram vivos durante quase dez minutos. Os americanos nem sequer conseguiam executar uma sentença de morte como devia ser. Fiquei satisfeita por o Führer ter tirado a própria vida e não ter de assistir a esta palhaçada. Pouco depois, conduziram-me à Prisão Número Um dos Criminosos de Guerra, em Landsberg, na Bavária, para começar a cumprir a pena. A ideia de não poder praticar Medicina durante todos aqueles anos era enlouquecedora e iniciei a minha campanha por correspondência.

A primeira foi para o presidente da câmara de Stocksee.