1947
Gritei durante quase toda a quarta-feira, dia 25 de março de 1947. No Hospital do Povo, em Lublin, nós, enfermeiras, ficávamos contentes por ouvir semelhantes gritos, pois isso significava uma mãe saudável. Um nascimento silencioso era, geralmente, um mau sinal. Estava satisfeita com a função pulmonar do meu bebé pois, como enfermeira obstetra, já tinha visto coisas correrem mal em poucos segundos. Uma apresentação pélvica. Bebés azuis. Os nossos médicos eram excelentes (incluindo a minha irmã), mas foi o departamento das enfermeiras de obstetrícia que pôs tudo a andar. Tinha sorte por ser um procedimento natural, porque os medicamentos para as dores – e não só – eram escassos.
Pietrik estava junto à minha cama, com o bebé enrolado nos braços e todas as enfermeiras do andar à sua volta. Tinha uma bata branca de hospital por cima da capa da fábrica e pegava nela de forma muito natural e não rígida e desajeitada como tantos jovens pais. Apesar da simpatia das visitas, eu só queria ficar a sós com a bebé e começar a conhecê-la.
– Dá-ma cá, Pietrik – pedi, com as cordas vocais arranhadas.
Pietrik voltou a colocar-me a bebé nos braços. Depressa fiquei ensonada, já que aquela enorme enfermaria, com mais de cinquenta camas, estava quente. A supervisora da minha ala reservara-me a melhor, na extremidade oposta às janelas com correntes de ar e perto de um radiador. Inspirei o odor agridoce da minha filha e observei a fontanela no cimo da cabecinha, a palpitar com um ritmo suave. Era tão loura como a bebé da Sra. Mikelsky. Que idade teria agora Jagoda? Oito anos? Deveríamos chamar Jagoda à nossa filha? Isso seria muito triste. Talvez Irenka.
Esperança.
Pietrik torceu pelo nome Halina, argumentando que a minha mãe iria gostar. Não percebia como seria doloroso para mim chamar pelo nome da minha mãe morta mais de dez vezes por dia?
Os sinos que assinalavam a chegada de um visitante tocaram e as enfermeiras dispersaram. Marthe foi a primeira a aparecer. Trazia um prato de paczkis numa mão, guardanapos na outra.
– Trouxemos presentes – disse. – Paczki para a mãe? – O Papa vinha atrás, trazendo a mala dela.
– Não, obrigada – respondi. Eu própria me sentia redonda e gorda como um paczki. Quando voltaria Zuzanna, para conseguir afastar Marthe? Assistira ao parto, mas entretanto fora chamada para tratar de uma fratura.
– Esta não é uma altura para preocupações estéticas. – Marthe colocou um paczki com a cobertura açucarada sobre um guardanapo e pousou-o junto a mim.
Eu resistia aos doces, não só porque tinha de perder gordura da gravidez, mas também por causa de uma cavidade no meu dente canino esquerdo, outro souvenir de Ravensbrück, onde sentia uma ferroada, de cada vez que comia açúcar.
– Como estás, Kasia? – perguntou o meu pai, beijando-me a mão e depois a minha testa e a da bebé.
Pietrik levantou a bebé dos meus braços, deixando-me com frio. Entregou-a ao Papa, que segurava ainda a mala de Marthe.
– Estamos a pensar chamar-lhe Halina – disse Pietrik.
– Bem, eu gosto do nome Irenka – disse. – Significa esperança...
– Halina, claro – concordou o Papa. – Que bonito.
Tinha lágrimas nos olhos?
– Parece-se contigo, Pietrik – comentou Marthe. – Vão batizá-la em casa? Não pensem sequer em ir à igreja.
Tinha razão. O Partido dos Trabalhadores Polacos já nem sequer se limitava a sugerir que fossem banidas as cerimónias religiosas, como batismos e casamentos. Desencorajava-as de forma aberta e tornava extremamente difícil a vida de quem desobedecia. Marthe e o Papa ainda não eram casados, embora muitos padres casassem casais em segredo.
Marthe arrancou a bebé dos braços do Papa.
– Isto é capaz de ser difícil para ti, Kasia, quando fores para casa, assim com a perna doente. Eu tomo conta da menina.
Enquanto Marthe se inclinava sobre a bebé, uma onda negra abatia-se sobre mim. Porque é que a minha mãe não estava aqui? A Matka teria andado pela enfermaria toda com a neta, para mostrá-la a toda a gente. Contar-me-ia histórias de quando eu era criança e far-me-ia rir. Comecei a chorar. Ajudara centenas de mulheres a lutarem contra a depressão pós-parto, mas era mais difícil do que parecia, como ser-se sugado para um buraco negro.
– Deem-me a bebé, por favor – pedi.
De repente, quis que se fossem todos embora, incluindo Pietrik. Se não podia ter ali a minha mãe, não queria ter ninguém.
Pietrik pegou na menina que continuava ao colo de Marthe – que pareceu desanimada por ter sido privada dela – e colocou-a novamente nos meus braços.
– A Kasia precisa de descansar – disse.
Marthe recolheu o prato dos paczkis. Amanhã voltamos e trazemos pierogis.
– Não, obrigada – atalhei. – Aqui somos bem alimentadas.
Quando saíram e Pietrik regressou à fábrica, a bebé e eu fomos dormitando. Quando o radiador começou a assobiar e a libertar vapor, acordei estremunhada, a pensar que estava no comboio para Ravensbrück, que apitava ao chegar à plataforma. O meu coração disparou, mas acalmei-me quando olhei para a bebé, aninhada nos meus braços.
Halina? Iria ficar com o nome da minha mãe, afinal de contas? Mal conseguia olhar para a fotografia dela sem ficar destroçada. Mais assustador ainda, o mesmo nome não faria com que ela seguisse o terrível caminho da Matka? Uma vida maravilhosa, mas interrompida abruptamente? Um arrepio percorreu-me o corpo todo. Haviam acontecido coisas tão estranhas.
Quando Pietrik e o Papa começaram a chamar Halina à menina desisti e comecei, também eu, a usar o nome. Eu precisava de crescer. Agora era mãe, com responsabilidades, e já não uma criança. Além disso, todos o achavam um bonito nome e ficava bem à bebé. Honrava a minha mãe e ela ficaria satisfeita.
No entanto, não conseguia afastar a ideia de que lhe deveria chamar Esperança.