1958
O Dr. Hitzig e eu chegámos à Polónia na primavera. Era um prazer viajar com o médico, abençoado com uma mente aguçada e uns modos gentis, que geralmente se encontram apenas entre os Amish. Era um médico americano, especialista em cirurgia ortopédica, encarregado de determinar quais das senhoras polacas estavam suficientemente saudáveis para aguentar uma viagem até aos Estados Unidos, mais tarde, nesse mesmo ano. Eu acompanhava-o para organizar os documentos para a viagem e para abrir caminho.
Uma delegação oficial encontrou-se connosco e conduziu-nos à Clínica Ortopédica de Varsóvia, em automóvel privado. Mal entrámos, médicos polacos rodearam o Dr. Hitzig. Apertaram-lhe a mão, deram-lhe pancadinhas nas costas e levaram-no até a uma mesa de conferências à frente de um palco improvisado. Sentei-me ao seu lado, enquanto vinte e nove médicos, polacos e russos, nos seguiam. Estavam também presentes dois membros da ZBoWiD, a Sociedade da Luta pela Liberdade e pela Democracia, uma associação oficial polaca de veteranos, a autoridade com a qual eu e Norman trabalháramos para salvaguardar os direitos das Coelhas.
A clínica era semelhante ao nosso edifício Grange Hall de Bethlehem, bastante aberta e tão cheia de correntes de ar que sentíamos o vento que vinha das janelas, mesmo no meio da sala.
As três primeiras senhoras entraram muito juntas, aconchegando as golas dos casacos no pescoço. Cada uma tinha uma mala de tecido segura num dos braços e o cansaço da viagem no rosto, já que mesmo passos simples pareciam ser dolorosos para qualquer delas. O nosso tradutor, um jovem de aspeto severo, com o cabelo parecido com o de Estaline, sentou-se ao lado do Dr. Hitzig e as mulheres encaminharam-se para uma espécie de gabinete de provas, atrás do palco.
A primeira Coelha, uma mulher bonita na casa dos trinta anos, com o cabelo escuro curto e olhos também escuros, apareceu envolvida num lençol branco liso, como uma deusa grega. Avançou até uma cadeira desdobrável colocada em cima do palco, arrastando uma das pernas e estremecendo a cada passo. Quando se sentou, olhou para a audiência, de queixo erguido.
O médico principal, o Professor Gruca, um homem enérgico e paternal, com a forma de uma boca de incêndio, subiu ao palco e começou a ler um documento. A intervalos aparentemente infindáveis, o tradutor partilhava as suas palavras em inglês:
– A morte do amigo íntimo de Adolf Hitler, o SS-Obergruppenführer Reinhard Heydrich, precipitou a realização das experiências médicas referidas como «as operações sulfamidas», no campo de concentração de Ravensbrück. O Dr. Karl Gebhardt, amigo íntimo e médico pessoal de Heinrich Himmler, foi chamado para tratar Heydrich, que tinha ficado gravemente ferido numa tentativa de assassinato num carro armadilhado pela resistência checa.
Eu mantinha o olhar sobre a mulher no palco. Tinha a cabeça erguida, enquanto ouvia.
– No tratamento de Heydrich, o Dr. Gebhardt recusou-se a usar sulfa, escolhendo outros medicamentos em sua substituição. Quando Heydrich morreu, Hitler acusou-o de ter deixado o amigo morrer de gangrena gasosa. Em consequência, Himmler e Gebhardt planearam uma maneira de provar a Hitler que a decisão de não usar sulfa tinha sido a correta: uma série de experiências, primeiro realizadas em homens, prisioneiros em Sachsenhausen, e depois em mulheres, em Ravensbrück.
A mulher no palco penteou o cabelo da testa para trás, com a mão a tremer.
– Gebhardt e a sua equipa realizaram cirurgias em mulheres perfeitamente saudáveis, especialmente escolhidas pelas suas pernas sólidas e robustas, para recriar lesões traumáticas. Inseriram culturas de bactérias nas feridas para provocar gangrena gasosa e depois administraram medicamentos sulfa a algumas das prisioneiras. Cada paciente tratada com sulfa que morria reforçava a teoria de Gebhardt. Entre as prisioneiras operadas – o Dr. Gruca indicou a mulher na cadeira – está Kasia Bakoski, nascida Kuzmerick, que atualmente trabalha como enfermeira do Estado.
O médico puxou o lençol para trás, para revelar a perna da mulher. Ao meu lado, o Dr. Hitzig inspirou fundo. A parte inferior da perna estava mirrada e horrivelmente desfigurada, como um peixe eviscerado.
– A Sra. Bakoski foi operada em 1942 e foi submetida a três cirurgias subsequentes, todas do Grupo Um: introdução de bactérias, lenha, vidro e outros materiais. Foi feita uma incisão na extremidade inferior esquerda e os vasos sanguíneos de ambos os lados da ferida foram cosidos.
Enquanto o médico prosseguia, Kasia manteve o queixo erguido, mas a boca suavizou-se. Os seus olhos foram ficando mais vidrados.
– Foram igualmente introduzidas sílica moída e lascas de madeira, sendo depois a ferida cosida e colocado gesso – informou o médico.
O médico não perceberia como ela estava perturbada? Levantei-me e avancei em direção ao palco.
– Esse gesso permaneceu colocado tempo suficiente para que a gangrena gasosa e outras condições pudessem desenvolver-se – continuou. – Foram então introduzidas as sulfamidas.
Os médicos tomavam notas.
– Para além da grave deformidade, que afeta todo o sistema esquelético, a paciente sofre reações pós-traumáticas do cérebro, depressão...
– Peço desculpa, mas... – interrompeu Kasia. Levantou-se, com uma mão sobre os olhos, a outra a segurar a folha junto ao peito.
– Isto não pode continuar, Doutor. – Subi ao palco.
– Mas estas mulheres concordaram com isto – replicou o Dr. Gruca. – Alguns médicos tiveram de alterar agendas complicadas para poderem estar aqui.
– Também as Coelhas, Doutor. Poderá prosseguir os exames em privado. O Doutor, o Dr. Hitzig e eu.
– Isto é altamente...
– Estas mulheres foram vítimas uma vez e não voltarão a ser abusadas enquanto eu estiver presente – insisti, segurando na mão de Kasia.
– Vamos prosseguir na sala de exames mais pequena – concordou o Dr. Hitzig.
Ajudei Kasia a sair do palco e a ir até à zona de vestir o melhor que pude.
– Obrigada. Agradeço a sua ajuda – disse.
– Fala tão bem inglês, querida.
– Nem por isso.
– É certamente muito melhor do que o meu polaco.
– A minha irmã Zuzanna ainda não chegou, mas ela também consta da lista. É médica. E tem um inglês ótimo.
– Vou estar atenta.
Os exames prosseguiram tranquilamente, quando mudámos para a sala mais pequena, apenas como Dr. Hitzig, o Dr. Grucaeeu. Zuzanna, a irmã de Kasia, foi a última paciente examinada. Pediu para Kasia assistir e os médicos concordaram.
– Zuzanna Kuzmerick – leu o Dr. Hitzig. – Quarenta e três anos. Elemento do grupo objeto das operações com sulfamidas. Foi injetada com estafilococos e com a bactéria do tétano. Um dos poucos elementos da amostra que, sem ter recebido antibióticos, recuperou espontaneamente. Atualmente, sofre de dores de cabeça laterais cruzadas, tonturas ocasionais e mal-estar gástrico. Possível úlcera gástrica, tratada com antiácidos. – O Dr. Hitzig parou de ler.
– Continue, Doutor – pediu Zuzanna. – Não há problema.
O Dr. Hitzig tirou os óculos.
– Acho que não...
– Eu já sei – disse Zuzanna. – Na verdade, até o escrevi. Diz que fui esterilizada no campo, não é isso?
– Oh, não, Zuzanna. – Kasia levantou-se.
– Está tudo bem. Escrevi o relatório. Por favor, Doutor... continue.
O Dr. Hitzig voltou a colocar os óculos. Zuzanna sentou-se direita na cadeira, enquanto ele começava o exame, palpando as glândulas dos dois lados do pescoço.
– Como médica, é difícil para si de repente tornar-se paciente? – perguntei-lhe.
– Não – respondeu Zuzanna. – É importante conhecer ambos os lados. Faz de mim uma melhor médica. Essa é uma das razões por que gostaria de ir aos Estados Unidos. E também me interessaria ter aulas de Medicina mais avançadas e aprender o máximo possível.
Zuzanna falava muito bem inglês, com um encantador e cadenciado sotaque polaco, e era um prazer ouvi-la.
O Dr. Hitzig passou dois dedos pelo lado esquerdo do seu pescoço.
– O que é, Doutor? – perguntou Zuzanna.
– Oh, nada – respondeu. – Acho que por agora é só.
Enquanto arrumávamos tudo e as mulheres polacas se preparavam para regressar a casa, o Dr. Hitzig reuniu com os seus colegas médicos e eu ofereci os presentes que trouxera dos Estados Unidos.
– Juntem-se, meninas – pedi. Segurei numa das encantadoras malas de mão que trouxera, em pele azul-marinha. O fecho dourado refletiu a luz. – Foram doadas por uma fantástica loja americana chamada Lane Byrant.
As Coelhas mantinham-se direitas, como se tivessem criado raízes naquele sítio. Que grupo tão sério.
– Por favor, não se acanhem – disse, aproximando a mala ainda mais. – São gratuitas. Foram doadas. Este ano, azul é a cor da moda.
Continuavam imóveis. Peguei numa caixa de bombons Whitman Sampler, com o nome pintado como se fosse bordado a ponto-de-cruz.
– Alguém gosta de chocolates? – ninguém se moveu na minha direção. – E Fig Newtons? São bolachas.
– Podemos tirar uma fotografia? – sugeriu Kasia, aproximando-se da minha Leica. Juntaram-se em frente à câmara, a fotografia composta como um buquê de flores num vaso.
– Como vai ser a viagem? – questionou novamente Kasia.
– Até agora, a ideia é as Coelhas começarem em Nova Iorque e depois ficarem em casas particulares espalhadas pelo país. A seguir, o grupo reunir-se-á novamente em São Francisco, viajará para Los Angeles e atravessará o caminho de regresso em autocarro, visitando Las Vegas e Texas, para acabar em Washington D.C.
Kasia traduziu para as companheiras, que se juntaram mais para ouvir. Esperava, pelo menos, alguns sorrisos, mas o grupo manteve-se solene.
– Gostariam de saber de onde parte o navio – explicou Kasia.
– Oh, não é um navio – esclareci. – A companhia aérea Pan American ofereceu os bilhetes de avião.
Seguiu-se uma discussão excitada em polaco e, depois, muitos sorrisos.
– A maioria de nós nunca andou de avião – explicou Kasia.
O Dr. Hitzig enfiou a cabeça pela porta e todos os olhos se viraram para ele.
– Temos a lista final – informou. – Posso falar consigo em privado, Menina Ferriday?
Fui juntar-me de novo ao doutor na sala de exames.
– Estão todas autorizadas a fazer a viagem.
– Que maravilha – dei um suspiro profundo.
– Menos uma. A médica.
– Zuzanna? Porquê, por amor de Deus?
– Lamento, mas encontrei um nódulo Virchow endurecido – explicou.
– O quê?
– É sinal de um tumor cancerígeno.
– Pode ser tratado?
– Provavelmente não. É um forte indicador de cancro do estômago. Receio que ela tenha os dias contados.
Avancei rapidamente na direção das mulheres que aguardavam à porta com os casacos vestidos, prontas para regressarem a casa. Pedi a Zuzanna e à irmã, Kasia, para se reunirem em privado com o Dr. Hitzig e comigo e conduzi-as à sala de exames. Sentaram-se em cadeiras desdobráveis.
– Zuzanna, receio que... bem – começou o médico. – O caroço que encontrei no seu pescoço é um nódulo Virchow endurecido.
– O «lugar do diabo»? – perguntou Zuzanna.
– Prefiro o nome «nódulo sinal» – disse o Dr. Hitzig.
– É um sintoma de cancro gástrico, não é? – continuou Zuzanna.
– Receio bem que sim.
– Ainda para mais com o nome de um médico alemão – continuou Zuzanna, com um ligeiro sorriso e os olhos brilhantes.
– Como é que pode ter a certeza? – perguntou Kasia.
– Terá de fazer mais testes – respondeu o Dr. Hitzig. – Mas a conclusão do grupo de médicos é de que não pode viajar para os Estados Unidos.
– O quê? – Kasia levantou-se. – O objetivo da viagem é obter cuidados médicos que aqui não se consegue. Como é que nos podem levar a todas menos à pessoa que mais precisa? Ela pode ir em meu lugar.
– Não é uma questão de espaço, Kasia – repliquei.
– Fala em ajudar-nos, Menina Ferriday, mas na verdade não se importa. Traz-nos malas bonitas e espera que nos lancemos a elas.
– Achei que iriam gostar...
– Somos senhoras, Menina Ferriday. Senhoras que não gostam de ser chamadas Coelhas –, como animais assustados, presos. Que vivem num país em que não se pode aceitar presentes. Não percebeu isso? Uma mala nova oferecida por americanos? Há pessoas que desaparecem por muito menos. Uma jornalista polaca aceitou chocolates de um americano e nunca mais se soube nada dela.
Senti-me corar. Como podia eu ter sido tão arrogante?
– Kasia, por favor – intercedeu Zuzanna.
– Quer mesmo ajudar, Menina Ferriday? Então ajude a minha irmã.
Kasia aproximou-se do Dr. Hitzig.
– Pago-lhe o que for preciso para a incluir nessa lista.
– Ficaremos a saber mais depois dos testes... – começou o médico.
– A minha irmã pode salvar vidas. Nunca fez nada a não ser ajudar os outros. Se a tratar, estará a tratar milhares de pessoas.
– Gostava que pudesse ser de outra maneira, mas os médicos já concordaram – continuou o Dr. Hitzig.
– Não podemos ignorar a ZBoWiD – acrescentei.
– Vou-me embora – disse Kasia. – Isto é ridículo.
Apressou-se a sair.
– Lamento muito – pedi desculpa a Zuzanna.
Puxou-me uma manga.
– Eu compreendo, Menina Ferriday.
– Caroline, minha querida.
– O importante é que as restantes raparigas possam ir aos Estados Unidos.
Abracei-a. Que mulher encantadora. Mas tão magra. Que tragédia estar assim doente. Se, pelo menos, lhe pudéssemos arranjar os remédios Woolsey.
Quando, finalmente, nos separámos, Zuzanna segurou-me a mão.
– Não ligue à minha irmã, Caroline. Por vezes, Kasia é um bocado nervosa. Passámos por muita coisa juntas. E os seus presentes foram muito apreciados. – Sorriu. – Se os quiser deixar no bengaleiro, certificar-me-ei de que as raparigas os levam quando ninguém estiver a olhar.