1958
Assim que me encontrei na rua, arranquei a pulseira do hospital e deitei-a num caixote de lixo. Era bom poder caminhar pelas ruas apinhadas de Nova Iorque anonimamente.
O sinal para atravessar iluminou-se: stop. Fiquei parada no passeio, mas o resto da multidão continuou a atravessar a rua.
Fui vendo montras de lojas com chapéus e andando, até a perna começar a doer-me. Regressei à sala de espera de Monte Sinai. Sentei-me e folheei algumas revistas – a minha parte favorita da visita a um médico, especialmente tratando-se de revistas americanas. Passei os olhos pela Saturday Review. Detive-me num anúncio ao filme O Diário de Anne Frank, que estreava no cinema.
Depois parei num artigo intitulado AS COELHAS VÊM AÍ, assinado por Norman Cousins. Era linda a forma como ele contava a história.
«Até agora, cerca de 300 leitores da Saturday Review contribuíram com quase 6000 dólares para o fundo geral das Coelhas... Naturalmente, os maiores custos estão ainda para vir...» Os norte-americanos tinham sido tão generosos connosco.
De repente, Caroline e Zuzanna apareceram junto de mim.
– Kasia, onde é que se meteu? Andávamos à sua procura.
– Precisava de apanhar ar. Podemos ir embora?
– Embora? – parecia que Caroline ia ter um ataque. – Estão à sua espera para proceder à admissão. Onde está a pulseira identificativa?
– Prefiro não...
– Sabe tudo o que está preparado para si? O Dr. Rusk é um dos melhores cirurgiões americanos. – A pena do chapéu oscilava enquanto ela falava.
– Ninguém me perguntou se eu queria isto – repliquei.
– Está a pôr em causa tudo aquilo por que lutámos. – O rosto de Caroline ficou vermelho. – Agora a Zuzanna também está atrasada.
– Dá-me licença que fale com Kasia em privado? – pediu Zuzanna, agarrando-me gentilmente por um braço.
Levou-me para um canto.
– Estás louca?
– Não posso voltar a passar por isto – respondi.
– Sei que é difícil para ti, mas nunca mais vais ter uma oportunidade assim...
– Deixa-me pensar no assunto.
– Não, Kasia. É agora ou nunca.
– A ideia de ter outra vez gesso... E como sei que poderei confiar neles quando estiver a dormir?
– Não vai haver gesso. Pedi-lhes que assim fosse. E eu irei contigo. Vou ver tudo.
– Ficas comigo?
– Até poderei participar na operação, se me deixarem. Verei tudo. Ninguém te irá fazer mal, a não ser eu, se não voltares para lá.
Quando acordei, depois da cirurgia, pensei que estava de novo na Revier, em Ravensbrück. A minha pulsação disparou, mas quando senti a perna envolvida com uma ligadura limpa e me lembrei onde estava, uma sensação de alívio envolveu-me da cabeça aos pés. Aparte melhor foi praticamente não sentir dores. A morfina era administrada por via intravenosa – não haveria picadelas com agulhas! Em menos de nada, já estava a comer alimentos macios e até a beber café. A minha cama tinha seis botões para ajustar a posição e eu tinha a minha própria enfermeira, Dot, de uma ilha distante, perto de Manhattan. Usava uma touca branca com riscas pretas por cima, o que significava que fizera a sua formação no Monte Sinai. Não era muito diferente do que eu usava na minha terra.
Na tarde seguinte, caminhei pela primeira vez, apoiando-me com força em duas enfermeiras. Andar sem sentir as habituais punhaladas na perna foi a melhor sensação do mundo.
Quando Dot me trouxe o almoço, não conseguia parar de tagarelar.
– Daqui em diante, vou poder andar por todo o lado. Vou poder dançar com o meu marido.
Dot limpou o tabuleiro, algo que em Lublin seria feito por uma enfermeira assistente.
– Parece que agora pertence ao clube dos pratos limpos.
Claro, comia sempre tudo.
– Hoje vai conhecer a Dra. Krazny. É agradável falar com ela.
Tirei os pacotinhos de papel com sal do tabuleiro e enfiei-os no bolso.
– Uma psiquiatra? Não obrigada.
Era mesmo o que precisava, um relatório enviado para Lublin a dizer que eu era maluca. Já pessoas tinham desaparecido por menos.
– Não terá de andar. Arranjo-lhe uma cadeira de rodas. – Dot estava a mastigar uma pastilha? Era permitido? – A Dra. Krazny é uma querida. Quem me dera poder sentar-me com ela uma hora a falar-lhe dos meus problemas.
O supervisor do andar apareceu à porta.
– Dot, a tua cadeira está aqui. É melhor ficares com ela, antes que alguém o faça.
– Espera aí. Só um bocadinho – pediu. A responder a um supervisor? Na nossa terra, Dot não ficaria muito tempo no serviço de trauma. – Então vai recusar o tratamento? Se se fechar, os traumas irão acabar por manifestar-se de alguma maneira.
– Obrigada pela sua preocupação – respondi. Começava a habituar-me. Os americanos gostavam de dar conselhos, mesmo quando ninguém lhos pedia.
Quando Dot me informou de que todos os registos eram confidenciais e não seriam enviados para a Polónia, acedi em ver a Dra. Krazny. Duvidei da parte da confidencialidade, mas achei que seria pior recusar.
O gabinete da médica estava arrumado, mas era acanhado, o que não ajudava nada a acalmar os meus nervos. Através da pequena janela, vi os flocos de neve a dançarem ao vento. Fiquei surpreendida ao ver que a médica era uma mulher jovem. Usava uns bonitos óculos de armação preta, que curvava na extremidade. O seu diploma, pendurado na parede, parecia recente. Devia ter saído há pouco tempo da faculdade. Seria inexperiente ao ponto de me considerar mentalmente doente quando não era esse o caso? Tinha de manter-me serena.
– Está atrasada. Metade do tempo já se esgotou. – Mal olhou para mim, enquanto a auxiliar me fazia entrar com a cadeira de rodas.
– Talvez seja um erro ter vindo – respondi.
– Está à vontade para sair.
Não poderiam ter encontrado um médico mais gentil em Monte Sinai?
– É tão nova...
– Não estamos aqui para falar de mim. – A médica colocou a tampa na caneta e atirou-a para cima da secretária.
Tentei fazer rodar os pneus de borracha da cadeira, mas a auxiliar tinha-a travado.
– Não posso ficar – disse.
– Neste país, pode optar. – A médica recostou-se na sua cadeira.
– Antes de mais, não sou mentalmente instável. – Pressionei um indicador contra o outro.
– Sou psiquiatra. Só estamos aqui para falar.
Deveria falar-lhe da sanduíche de queijo?
– Na Polónia também temos psiquiatras – disse.
– Um para cada cinco mil polacos, segundo ouvi. Não deve ser fácil arranjar uma consulta.
– Seria mais fácil se os alemães não os tivessem matado a todos.
– Diz aqui que tem dificuldade em dormir... – começou, lendo a minha ficha.
– A minha irmã é médica. Foi quem lhes disse.
– E tem dificuldade em respirar em espaços apertados. Isso é considerado um episódio de pânico claustrofóbico.
– Sou enfermeira. Sei como se chama.
– Então também sabe como parar os ataques? Como é que funciona? – olhou para mim. – Esteve num campo de concentração.
– Está na minha ficha.
– Ravensbrück. Eram só mulheres?
– Sim.
– Torturadas?
– Todos os dias eram uma tortura.
A resposta provocou-lhe um leve sorriso.
– Não preciso de compaixão.
– Estou a ver. – A Dra. Krazny endireitou-se na cadeira.
– A sua mãe... – recomeçou, olhando de novo para a ficha.
– Foi levar-me uma sanduíche de queijo e foi presa juntamente comigo – disse, respirando fundo.
– Espero que não ache que foi culpa sua.
Examinei as unhas. Claro que era culpa minha.
– Ela não regressou consigo do campo de concentração?
– Ela desapareceu. Não sei o que aconteceu.
– Faz alguma ideia?
– Tento não pensar nisso.
– Tem alguma suspeita?
Observei um pequeno tornado de neve rodopiar junto ao parapeito da janela.
– Aconteceram lá muitas coisas – respondi.
– Importa-se de explicar melhor? É assim que isto funciona.
– Ela desapareceu, simplesmente. – Afastei o cabelo da testa. – Ajudava uma médica.
– Foi a médica que a fez desaparecer?
– Não sei.
– Nenhuma pista?
– Não é assim tão simples. Não pode compreender. – A neve agarrava-se às vidraças, prendendo-nos mais. Custava-me respirar. Agora não. Não era altura para um novo episódio. – Muitos colegas da médica foram executados, mas ela está presa.
– Como se sente em relação a isso?
– Bem. Desde que ela assim permaneça.
– E quando ela acabar de cumprir o seu tempo?
– Só em 1967. Pensarei nisso nessa altura.
– Queria que ela também fosse executada?
– Não.
– Porquê? – inquiriu, franzindo o sobrolho.
– Ela sabe o que aconteceu à minha mãe.
– Como era a sua relação com a sua mãe? Amava-a?
– Claro. Eu era a sua preferida. O que tem isso a ver com o resto? – belisquei a mão, para evitar que as lágrimas começassem a correr.
– Não tenho certeza – concluiu, abanando a cabeça.
– Nem uma pista, Doutora?
A Dra. Krazny tirou os óculos e limpou as lentes.
– Sei que assuntos não resolvidos podem provocar distúrbios psíquicos. Podem causar hostilidade. Arruinar relacionamentos. – Voltou a colocar os óculos e olhou-me durante um longo segundo. – Não costumo dar muitos conselhos aos meus pacientes, Sra. Bakoski...
– Não precisa começar agora.
– Mas tem sorte em estar viva.
– Sorte? – tinha as palmas das mãos todas suadas. – Oh, por favor.
– Sofreu, mas está aqui.
– Por vezes desejava não estar. Não imagina o que foi aquilo.
– Percebo que continua agarrada à dor de ter perdido a sua mãe. Afinal, é tudo o que lhe resta dela, não é? Se abrir mão disso, abre mão da última coisa que tem dela.
Virei o rosto para a janela.
– Sei que tem muito trabalho pela frente e que precisa de deitar mãos à obra. É o segredo para melhorar. – A médica juntou os papéis e bateu com eles na mesa, para os endireitar.
– Auxiliar – chamou. – A Sra. Bakoski precisa que a levem ao quarto.
– Eu posso ir sozinha – disse.
A médica aproximou-se de mim.
– Ouça, Sra. Bakoski, não vai fazer qualquer progresso até chegar à raiz dessa raiva. E no seu lugar eu acolheria de bom grado a compaixão que as pessoas sentem por si. Precisa de toda a ajuda possível.
No Natal, Caroline levou-nos para a sua casa de campo, a que chamava «The Hay», a norte de Nova Iorque, em Bethlehem, Connecticut. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas quando nos contou que o seu falecido pai lhe dera esse nome por causa de uma propriedade que a sua família em tempos tivera em Inglaterra.
Disse-nos que a norte o ar era mais puro, bom para a recuperação, e talvez isso fosse verdade, porque em pouco tempo eu já dava pequenos passeios. Zuzanna e eu sentíamo-nos muito melhor em casa de Caroline. Possivelmente por causa da sua mãe, a Sra. Ferriday, que nos tratava como rainhas. Desde o dia em que nos recebeu, vestida com uma roupa tradicional polaca, até à altura em que partimos para a Califórnia, andou sempre à nossa volta como se fôssemos a sua família. Até aprendera muitas frases em polaco para nos fazer sentir em casa.
Como era maravilhoso ser novamente capaz de andar como uma pessoa normal! A Sra. Ferriday emprestou-me o seu casaco de peles e caminhámos, de braço dado, pela sua propriedade. Fomos até ao estábulo, que tinha um cheiro adocicado a feno e a cavalos, e umas janelas altas, por onde vimos o sol a descer. Passeámos até à casinha de brincar de Caroline quando era criança, uma versão em miniatura da casa principal, com um fogão que funcionava mesmo.
Porém, mesmo com aquele tratamento especial, não conseguia afastar as saudades da Polónia e de Pietrik e Halina. O facto de Caroline preferir Zuzanna e de se levantar todas as manhãs para tomar chá com ela, as duas sentadas à mesa da cozinha, de cabeças próximas, a partilharem alguma história ou alguma piada privada, também não ajudava. Claro que era compreensível, pois toda a gente adorava Zuzanna. Apesar de estar grata às Ferridays, queria a minha irmã de volta.
Tentei contar todas as coisas boas. Bethlehem era um ótimo sítio para passar o Natal. Caroline levou-nos a todo o lado. À pequena lojado outro lado do parque, a Merrill Brothers, que vendia tudo o que alguém poderia querer, até mesmo melão e feijão verde no inverno. À missa na abadia Regina Laudis, lar das freiras de clausura, que entoavam cânticos belos e impressionantes. Um domingo, dia de folga do seu motorista, Caroline levou-nos à missa no seu enorme automóvel verde, tão grande que cabíamos todos, incluindo o cozinheiro russo, Serge, e ainda sobrava espaço. Caroline olhava fixamente em frente a agarrava o volante com tanta força que achei que iria parti-lo. Mais tarde, a Sra. Ferriday contou-me que na cidade diziam que era melhor não circular quando Caroline pegava naquele carro.
Sentia-me feliz só por estar naquela casa, a mais bonita que eu já vira, alta, branca, com portadas pretas e espaço suficiente para uma família de dez pessoas. O mobiliário era muito antigo, mas bonito, incluindo os cortinados da sala de visitas, feitos pela própria Sra. Ferriday, com um bordado bastante intrincado. Nas traseiras, os estábulos albergavam três cavalos, um bonito pastor-alemão chamado Lucky (com quem Zuzanna e eu ficáramos aterrorizadas ao início, até que ele provou ser o companheiro mais gentil e leal), muitas ovelhas e galinhas e uma porca que seguia Caroline para todo o lado. Ela até falava francês com o animal.
– Vem, chérie – dizia-lhe, enquanto ela gingava atrás da dona. – Dépêchez-vous. Vous pouvez être belle, mais cela ne signifie pas que je vais attendre. – Podes ser linda, mas isso não significa que eu vá esperar.
Por vezes, a porca seguia Caroline até casa, trepando as escadas da frente com grande esforço, em direção ao seu quarto.
Em Connecticut, Caroline era uma pessoa diferente. Limpava os estábulos dos animais vestida com umas calças de ganga e um chapéu de caçadora e até chegava a trepar para o telhado com a velha espingarda do pai para tentar apanhar uns coelhos que dizia andarem a comer toda a alface. Aí estava a solução do mistério por que nunca tinha casado.
Com Pietrik e Halina a meio mundo de distância, o dia de Natal foi difícil para mim. Claro que escrevíamos cartas de um lado para o outro e Pietrik enviara-me um embrulho com os meus doces favoritos e um desenho a lápis que Halina fizera da Marthe e do Papa, mas mesmo assim não consegui suster as lágrimas.
Ter Zuzanna ao meu lado ajudava-me. Não precisara de uma cirurgia corretiva como a minha, mas sofrera com a quimioterapia, para lutar contra o cancro. Ainda estava fraca e por isso, no dia de Natal, Caroline dispôs-nos lado a lado na sala de estar, quentes ao lado da lareira, eu numa cadeira de rodas e Zuzanna na poltrona do pai. Era a minha divisão favorita da casa, porque tinha vista para o jardim, com as suas grandes sebes e os caminhos ladeados de buxos perfeitos, mesmo no inverno.
Além de sentadas junto à lareira, estávamos de frente para a árvore de Natal, ao canto, com o anjo no topo quase a roçar o teto. Por baixo dela, havia uma surpresa de Caroline para cada uma de nós. Um frasco de perfume que Zuzanna tinha admirado numa loja chamada Bergdorf Goodman e para mim uma seleção de livros, incluindo O Poder do Pensamento Positivo, de Norman Vincent Peale. Eu não pensara em arranjar um presente para Caroline, mas Zuzanna fez uma montagem com recortes de fotografias com a casa e todos os animais para a Sra. Ferriday e para Caroline. Os cavalos e a porquinha, as galinhas e os gatos. E até o cão Luckye o papagaio africano cinzento. Zuzanna disse que era um presente das duas, mas não havia dúvidas sobre quem realizara o trabalho artístico.
A Sra. Ferriday e Serge fizeram os tradicionais doze pratos polacos para o jantar, que todos comemos, parando apenas para exclamações de pura alegria. Depois do jantar, a Sra. Ferriday levou-me na cadeira de rodas até à cozinha grande e antiga, na parte de trás da casa. Era a minha segunda divisão favorita, com o chão de azulejos preto e branco e o lava-louças de porcelana branca suficientemente grande para até um adulto pequeno aí poder tomar banho.
Sentei-me à mesa da cozinha com Caroline e a Sra. Ferriday, enquanto Zuzanna e Serge lavavam a louça juntos. A minha irmã ainda estava debilitada, mas insistia em fazê-lo. Perdera o cabelo devido às radiações e agora estava completamente calva, tal como muitas de nós, quando estivéramos no campo de concentração. Atara um dos lenços franceses de Caroline na cabeça, como uma leiteira. Serge esteve perto deladurante toda a noite, mesmo depois do jantar. Percebi que se tinham tornado mais do que amigos. Vi-a regressar discretamente ao nosso quarto antes do amanhecer, vinda da ala dos empregados. Essa ideia encheu-me os olhos de lágrimas. Como é que podia ser tão reservada?
Caroline deitou café a todos. A Matka teria adorado estar ali. Só o café...! A Sra. Ferriday abriu um pacote das minhas bolachas favoritas, Fig Newtons, e deitou licor de laranja em cálices, que distribuiu a cada um.
– Como estava o sangue de Zuzanna? – perguntou.
– Está melhor – respondeu Caroline. – Estão otimistas.
– Isso é excelente, mas ainda é capaz de precisar de fazer mais tratamentos, Zuzanna – disse a Sra. Ferriday.
– Então talvez seja melhor eu ficar indefinidamente. – Sorriu Zuzanna.
Serge sorriu-lhe de volta. Só um tolo não perceberia que gostavam um do outro. Um russo? Era bonito, com um estilo russo, mas o que acharia o Papa?
– Primeiro vamos à Califórnia – disse eu. – Mal posso esperar para ver as casas das estrelas de cinema. Dizem que Rodeo Drive está cheio delas.
– Vai ter de sair e sorrir para todos aqueles californianos – avisou a Sra. Ferriday. – O seu dente está lindo, querida.
Sorri e passei a língua pelo meu novo canino, que substituíra o anterior, bastante deteriorado. O que iria Pietrik achar do meu novo sorriso? Trinquei uma Fig Newton ao meio e empurrei-a para baixo com a ajuda do licor, de uma assentada, como fazíamos com a vodca, na nossa terra.
– Em Los Angeles há coisas mais interessantes para ver do que celebridades. – contou Caroline, cheirando o licor e despejando um pouco no café. – O La Brea Tar Pits*, para começar.
– Animais que morreram apanhados pelo alcatrão? – questionou a Sra. Ferriday. – Que coisa horrível. Deixa-as divertirem-se, querida.
Era uma pena a Sra. Ferriday não ir connosco à Califórnia. Pegou na garrafa de licor e voltou a encher-me o cálice.
– As meninas não podem beber mais, Mãe. – Caroline tirou-lhe a garrafa.
– Valha-me Deus, Caroline. É Natal.
– A Kasia já bebeu demasiado. Ela está em recuperação.
– Um pouco de licor nunca fez mal a um doente. As Woolseys esfregavam-no nas gengivas dos bebés.
Caroline levantou-se, retirou a garrafa da mesa e pousou-a no balcão. A Sra. Ferriday sorriu-me e revirou os olhos. Que sorte tinha Caroline por ter a sua mãe! Zuzanna e Serge não tinham reparado em nada, já que estavam felizes a lavar os pratos, a rirem e a brincarem, com os dedos ensaboados.
– Feliz Natal a todos. – Caroline levantou a chávena de café para brindar.
– Wesotych Swiat – respondi, em coro com a Sra. Ferriday, brindando com os copos vazios.
Feliz Natal.
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* Situada no coração de Los Angeles, a La Brea Tar Pits é uma das mais famosas localidades com fósseis, alguns da Idade do Gelo. O betume asfáltico apareceu no solo da zona há dezenas de milhares de anos, formando centenas de piscinas pegajosas que prenderam no seu interior animais e plantas. (N. da T.)