Capítulo 45

KASIA

1959

Demorei algum tempo a sair do carro no posto de controlo, porque não conseguia abrir a porta, por muito que tentasse. Trepei para o assento do passageiro, para grande diversão dos guardas, que me observavam ostentando as espingardas.

A chuva dera lugar a uma névoa fina e via-a acumular-se sobre a pala brilhante do chapéu do oficial que me mandar a sair. Apoiei-me com uma mão na capota do carro, porque as minhas pernas pareciam prestes a falhar, mas depois afastei-a, porque o metal estava muito quente por causa do motor. O carro iria sobreaquecer?

– Tem uns documentos muito vistosos – disse o oficial. – Contudo, foram substituídos por um passe de um dia.

– Mas são...

– Se não gosta, pode dar meia-volta – interrompeu-me. – Seja como for, tire este carro daqui... Está a dar as últimas.

Agarrei no passe. Iria notar que os dedos me tremiam? O passe, que já estava ensopado e que não era maior do que um maço de cigarros, era um pobre substituto dos meus bonitos documentos.

– Certifique-se de que estará de volta aqui amanhã pelas seis da manhã, ou ficará aqui a viver connosco. – Fez sinal para o automóvel seguinte avançar, pondo fim à nossa conversa.

O alívio por regressar ao lugar do condutor provocou-me uma onda de suores frios. No segundo posto de controlo foi tudo mais fácil e quando os guardas da fronteira da Alemanha Ocidental me deixaram passar, guiei em direção a Stocksee, no norte.

O lado oeste parecia um mundo diferente, uma terra encantada de campos verdes e quintas bem organizadas. A estrada era lisa e os camiões modernos ultrapassavam-me naquele percurso que lhes era familiar, pois o meu carro recusava-se a ir a mais de 80 quilómetros por hora. Parei apenas uma vez, no primeiro posto de telégrafo que vi, e enviei um telegrama a Caroline, dizendo-lhe que estava a caminho.

Já nos arredores de Stocksee, ouvi um barulho enorme e, quando me virei, vi o meu tubo de escape cair no asfalto e continuar a rolar com estrépito até à berma. Voltei atrás para recuperar o pedaço de metal e atirei-o para o banco traseiro. Depois disso, quando colocava o pé no acelerador, o automóvel fazia o barulho de uma motorizada barulhenta, mas que opção tinha eu? Precisava de continuar.

Cheguei a Stocksee ao início da tarde e senti um arrepio quando passei um sinal cheio de floreados que dizia: willkommen in stocksee! Seria, de facto, onde estava Herta? Era uma vila rural próxima de um grande lago, tranquilo e escuro, com o mesmo nome. Ela sempre gostara de lagos.

Passei por diversos terrenos agrícolas, até chegar ao coração da vila, um local pequeno e asseado. Se a maneira de vestir dos seus moradores servisse de indicador, Stocksee poderia considerar-se um sítio conservador, uma vez que a maioria usava os tradicionais tracht – os típicos calções de homem , casacos trachten e chapéus alpinos e as mulheres os vestidos dirndl. Abrandei junto a um passeio e pedi ajuda a um homem, no meu melhor alemão enferrujado.

– Desculpe, o senhor poderia informar-me onde fica a Dorfstrasse? – o homem ignorou-me e continuou a andar. Senti uma pontada de medo ao ver uma mulher parecida com Gerda Quernheim, a enfermeira do campo, passar mesmo ao lado do carro. Poderia ser ela? Também já teria saído da prisão?

Encontrei o consultório médico, um edifício de um só andar, de tijolos pintados de branco. Estacionei na rua, a alguma distância, aliviada por poder parar o automóvel, e deixei-me ficar sentada, atraindo olhares hostis dos transeuntes. Um deles espreitou para o banco traseiro com um ar reprovador, olhando para o tubo de escape para ali atirado. Tentei acalmar a minha respiração e ganhar coragem. Seria melhor regressar a casa? Chamar a polícia e pedir ajuda? Aquilo podia não acabar bem.

Um Mercedes-Benz prateado passou por mim e estacionou junto ao passeio, em frente ao consultório médico. Apesar de ser um modelo antigo, era o tipo de automóvel que Pietrik admiraria.

Uma mulher saiu do carro. Poderia ser Herta, a guiar um automóvel tão caro? Como me tinha esquecido dos óculos? O meu coração batia loucamente. A mulher parecia demasiado magra para ser ela, ou não? As minhas mãos estavam escorregadias sobre o volante, enquanto a via dirigir-se para o consultório.

Deslizei para o banco do passageiro e saí, com as dobradiças da porta a queixarem-se. Para tentar acalmar-me, sacudi as mãos como dois esfregões molhados. Entrei no consultório e parei para ler o que estava escrito na placa de latão junto à porta: clínica médica familiar. Por baixo estavam pintadas as palavras adoramos crianças. Crianças? Não podia ser Herta. Quem deixaria alguém como ela tocar nos seus filhos?

A sala de espera não era grande, mas estava inquietantemente limpa e arrumada. As paredes estavam pintadas com cardumes de peixes engraçados e tartarugas e no canto via-se um aquário. Sentei-me e fui folheando revistas, deitando de vez em quando uma olhadela aos pacientes, esperando para ver se ela aparecia. Era difícil olhar para todos aqueles pequenos bem alimentados e de pele aveludada e pensar que poderia ser Herta quem tocava neles. Quando os seus nomes eram chamados, as mães entravam para falar com a médica, tal como também nós fizéramos. Era ela que os vacinava ou deixava esse trabalho para uma enfermeira?

Vi um peixe-anjo sugar e depois cuspir pedrinhas rosadas assentes no fundo do aquário. Uma mãe alemã estava sentada do outro lado da sala, o próprio retrato da pureza ariana. Durante a guerra, os nazis tê-la-iam posto na capa de qualquer revista. Tive vontade de lhe contar como matavam os bebés em Ravensbrück, mas depois pensei melhor. Nunca oferecer informação. Os alemães suspeitavam sempre disso.

Embora a sala estivesse fresca, o suor escorria-me pelas costas. Para me acalmar, fui folheando a revista «Mãe Alemã». A guerra acabara há muito, mas as Hausfrauen não tinham mudado grande coisa. Continuavam a trabalhar arduamente, mas já não para o seu querido Führer. A avaliar pela revista, as alemãs adoravam um novo ídolo – os bens de consumo. Volkswagens, aparelhagens de alta-fidelidade, máquinas de lavar louça e televisões. Pelo menos, isso era um avanço. A rececionista abriu a janela do guiché.

– Tem consulta marcada? – perguntou, as pálpebras pintadas com sombra azul. Maquilhagem? O Führer não teria aprovado.

– Não, mas se o médico tiver disponibilidade, gostaria de ser atendida.

Estendeu-me uma prancheta, com um extenso formulário preso por baixo da mola prateada.

– Preencha isto e eu vou ver.

Os alemães continuavam a gostar de papelada.

Preenchi o formulário com o meu verdadeiro nome de casada e um endereço falso na cidade próxima, Plön. Os meus dedos tremiam tanto que mal se conseguia ler. Para quê preocupar-me? A guerra acabara há tanto tempo. Hitler estava morto. Que mal poderia Herta fazer-me?

Ouvi a música enquanto esperava. Tchaikovsky? Não estava a deixar-me mais calma.

A última paciente entrou e eu fiquei sozinha. Lembrar-se-ia de mim? Tinha a certeza de que reconheceria o seu trabalho.

A rececionista voltou a aparecer à janela do guiché.

– A doutora vai vê-la depois da última paciente. Eu vou ter de sair daqui a pouco, por isso posso ficar com o seu formulário?

– Claro – respondi, devolvendo-lhe a prancheta.

Ia ficar ali sozinha com a médica? Seria melhor ir embora?

Fui até ao bengaleiro de madeira, onde estava apenas uma bata branca pendurada, para deixar o meu casaco. Na placa de identificação presa ao bolso do peito podia ler-se DRA. OBERHEUSER. Um arrepio percorreu-me o corpo. Que estranho ver aquele nome impresso. Em Ravensbrück o pessoal tinha o cuidado de não revelar o seu nome. Como se não os conhecêssemos, de qualquer forma.

A rececionista levantou-se e arrumou a secretária, pronta para ir para casa.

Para quê ficar? Se partisse agora, ninguém ficaria a saber que lá tinha ido. Caroline poderia enviar outra pessoa.

A última mãe passou pela sala de espera, como seu bebé encostado ao ombro e sorriu-me ao sair do consultório. Pensei no bebé da Sra. Mikelsky com uma pontada de tristeza. Podia seguir aquela rapariga bonita e regressar a Lublin. Fui buscar o casaco e comecei a dirigir-me à porta, de boca aberta, tentando inspirar mais ar. Consegui, sentindo a maçaneta suave na minha mão. Precisava de sair dali. Antes de a conseguir rodar, a rececionista abriu a porta que conduzia às salas de trás.

– Kasia Bakoski? – perguntou, com um sorriso. – Pode entrar.