As mulheres jovens têm um senso muito aguçado do que convém fazer ou deixar de fazer depois que a juventude acabou. “Não compreendo”, dizem elas, “que depois dos quarenta anos uma mulher tinja os cabelos de louro; que se exiba de biquíni; que flerte com os homens. Eu, quando tiver essa idade…” Essa idade chega: elas tingem os cabelos de louro; usam biquíni; sorriem para os homens. Foi assim que eu decretei, aos trinta anos: “Depois dos quarenta anos, é preciso renunciar a um certo tipo de amor.” Eu detestava o que chamava de “velhas gaiteiras” e pensava que, quando chegasse a minha vez, iria conformar-me. Isso não me impedira, aos trinta e nove anos, de me lançar numa aventura. Agora tinha quarenta e quatro, estava relegada ao país das sombras: mas, já o disse, se meu corpo se acomodava, minha imaginação não se resignava. Quando surgiu uma oportunidade de renascer mais uma vez, eu a agarrei.
Julho estava chegando ao fim. Eu ia descer de carro até Milão, aonde Sartre iria de trem encontrar-me e viajaríamos durante dois meses pela Itália. Bost e Cau, entretanto, enviados pelo editor Nagel para fazer um guia, preparavam-se alegremente para voar para o Brasil. Compraram smokings brancos, e Bost nos convidou para festejar sua partida em torno de um aioli.116 Sugeri que convidasse também Claude Lanzmann. A noitada prolongou-se até tarde, e bebemos. De manhã, meu telefone tocou: “Gostaria de levar você ao cinema”, disse-me Claude Lanzmann. “Ao cinema? Para ver que filme?” “Qualquer um.” Eu hesitava; meus últimos dias estavam cheios; mas sabia que não devia recusar. Marcamos um encontro. Para minha grande surpresa, assim que desliguei, debulhei-me em lágrimas.
Cinco dias mais tarde, deixei Paris; de pé, na beira da calçada, Lanzmann agitava a mão, enquanto eu arrancava. Alguma coisa acontecera; alguma coisa, eu tinha certeza, começava. Encontrara novamente um corpo. Perturbada pela emoção da despedida, rodei pelos arrabaldes, depois disparei pela Nacional 7, feliz por ter diante de mim tantos quilômetros para me lembrar e dar asas à imaginação.
Ainda estava sonhando acordada quando, dois dias depois, de manhã, saí de Domodossola, onde dormira; havia duas passageiras no carro, duas jovens inglesas que iam de Calais a Veneza de carona, levando no bolso uma passagem Munique-Londres para voltar. Chovia sobre o lago Maior; derrapei, arranquei um marco da estrada; elas não se moveram. Uns italianos consertaram meu para-lama, e tranquilizaram meu amor-próprio dizendo-me que, naquela estrada cheia de curvas, os acidentes eram incontáveis; mas o choque, longe de me despertar, acabou de me perturbar os sentidos. Deixei as inglesas numa encruzilhada, entrei em Milão, rodei à procura de uma garagem, e, de repente, percebi que, à minha direita, minha porta batia; enquanto tentava fechá-la, subi numa calçada: “Estou perdendo a cabeça”, disse a mim mesma, e parei; percebi então que minha bolsa, que continha meus documentos e muito dinheiro, não estava mais a meu lado. Larguei o carro e voltei, correndo. Um ciclista vinha ao meu encontro, estendendo a bolsa, com ar aborrecido.
Confiado o carro, enfim, a um mecânico, reencontrei Sartre e meu equilíbrio no café do Scala; mas estava emocionada quando, à tarde, retomei o volante. Essa nova maneira de viajar agradaria a ele? Temia aborrecê-lo com minhas barbeiragens; mas não; nas cidades, a falta de jeito das minhas manobras não o impacientava; na estrada, nada perturbava a sua fleuma, salvo a grosseria de alguns italianos, que me “fechavam”. Ele dizia: “Ultrapasse, vá!” O italiano acelerava, ou mesmo zigue-zagueava para manter a dianteira: Sartre não me dava sossego enquanto eu não o alcançava; se eu tivesse cedido a todas as suas exortações, teríamos morrido cem vezes; mas eu preferia esse zelo a conselhos de prudência.
De Cremona a Tarento, de Bari a Erice, havíamos redescoberto a Itália: Mântua e os afrescos de Mantegna, as pinturas de Ferrara, Ravena, Urbino e seus Uccello, a praça de Ascoli, as igrejas da Puglia, os trogloditas de Matera, os trulli117 de Alberobello, as belezas barrocas de Lecce e na Sicília, as de Noto. Fomos, enfim, a Agrigento; revimos Segesta e Siracusa. Percorremos os Abruzos. Subi de teleférico ao cume do Gran Sasso e vi o hotel lúgubre onde exilaram Mussolini. Graças ao carro, não estávamos mais restritos a nenhum horário, todos os lugares nos eram acessíveis. Alguma coisa, no entanto, perdera-se, dizia Sartre, e eu concordava: a surpresa de se encontrar mergulhado bruscamente no coração de uma cidade; se chegamos de trem ou de avião, a cidade aparece como um mundo; quando rodamos de carro, ela é apenas uma etapa, um ponto de ligação, e não um universo; suas ruas são o prolongamento de estradas, lançam-se em direção a outras estradas; sua originalidade empalidece, uma vez que a cor de seus muros e o desenho de suas praças e fachadas já se anunciavam nas aldeias vizinhas. A vantagem é que, se ela impressiona menos, nós a compreendemos melhor. Nápoles nos revelou seu verdadeiro sentido depois que avaliamos a miséria do sul. Uma nova familiaridade criava-se entre os campos e nós; parávamos nas aldeias, misturados aos braccianti118 que permanecem sentados nos cafés durante horas, sem consumir, nem esperar; muitas vezes, nas estradas, alguns homens nos faziam sinal timidamente, e nós parávamos para pegá-los; a maioria era de desempregados; perguntavam-nos se poderíamos arranjar-lhes trabalho na França.
Por outro lado, o carro também nos proporcionava surpresas. Era 15 de agosto; partindo de Roma pela manhã, rumo a Foggia, rodáramos durante o dia inteiro sob um céu de fogo, detidos incessantemente por obras e barreiras; a noite caíra; fazia duas horas que a luz branca dos faróis italianos me cegava, e eu estava esgotada. Em Lucera, descemos para tomar um trago; encostei o carro perto do muro da cidade e atravessamos a porta: encontramo-nos num salão resplandecente de luz, onde as pessoas dançavam, tendo por teto o céu; outros salões se sucediam, em série, todas as praças profusamente iluminadas, cada qual com sua orquestra e seu baile.
Naquele verão, por toda a Itália, o termômetro marcou, quase sem trégua, quarenta graus. Sartre escrevia a continuação de Os comunistas e a paz; ele queria trabalhar, eu, passear: conseguimos conjugar essas duas manias, mas não sem dificuldade. Visitávamos, perambulávamos, caminhávamos, devorávamos quilômetros até o meio da tarde, enfrentando, a pé ou de carro, as horas mais tórridas; quando, arrebentados de cansaço, voltávamos aos nossos quartos — onde geralmente se sufocava —, em vez de descansarmos, nós nos precipitávamos para as canetas. Aconteceu-me mais de uma vez pousar a minha, para mergulhar o rosto afogueado na água fria.
Na volta, permaneci alguns dias em Milão, na casa de minha irmã, onde li o diário de Pavese, que levei para Paris, a fim de publicar alguns trechos na Temps Modernes.
Durante essas férias, Lanzmann fizera uma viagem a Israel; trocáramos cartas. Ele voltou a Paris duas semanas depois de mim e nossos corpos se reencontraram na alegria. Começamos a construir nosso futuro contando-nos o passado. Para se definir, ele começava por dizer: “Eu sou judeu.” Eu conhecia o peso dessas palavras; mas nenhum dos meus amigos judeus me fizera compreender plenamente o sentido delas. Sua situação de judeu — pelo menos em suas relações comigo — eles a deixavam passar em silêncio. Lanzmann a reivindicava. Ela comandava toda a sua vida.
Quando criança, ele a vivera de início com orgulho: “Estamos em toda parte”, dizia-lhe orgulhosamente seu pai, mostrando-lhe o mapa do mundo. Quando, aos treze anos, ele descobriu o antissemitismo, a terra tremeu e tudo desmoronou. Confessava: “Sim, eu sou judeu”, e imediatamente o diálogo era abolido, o interlocutor se transformava num animal cego, surdo e furioso; ele se acreditava culpado dessa metamorfose. No mesmo instante, reduzido a uma noção abstrata — um judeu —, ele se sentia expulso de si mesmo. A tal ponto, que não sabia mais se não era menos mentiroso responder “não”, em vez de “sim”. Rejeitado em sua diferença na idade mais conformista, esse exílio marcou-o para sempre. Restabeleceu-se no orgulho graças ao pai, um resistente de primeira hora. Ele próprio organizou uma rede no liceu de Clermont-Ferrand, e a partir de outubro de 1943 lutou no maquis. Assim, sua experiência não lhe revelou judeus humilhados, resignados, ofendidos, mas lutadores. Os seis milhões de homens, de mulheres e crianças exterminados pertenciam a um grande povo que nenhuma predestinação condenava ao martírio, mas que era vítima de uma arbitrária barbárie. Chorando de raiva à noite ao evocar esses massacres, pelo ódio que dedicou aos carrascos e a seus cúmplices, ele assumiu a exclusão com que o haviam ferido: desejou-se judeu. Os nomes de Marx, Freud, Einstein enchiam-no de orgulho. Ficava radiante toda vez que descobria que um homem célebre era judeu. Ainda hoje, quando se elogia o grande físico soviético Landau, sem dizer que ele era judeu, fica tomado de cólera.
Embora contasse numerosos amigos entre os góis, seu rancor com relação a eles nunca se extinguiu. “Fico o tempo todo com vontade de matar”, dizia-me. Eu sentia, oculta nele, crispando seus músculos, uma violência sempre prestes a explodir. Por vezes, de manhã, depois de sonhos agitados, ele acordava gritando para mim: “Vocês são todos kapos!” Contestava nosso mundo com palhaçadas, exageros, extravagâncias. Aos vinte anos, quando era aluno do curso preparatório no Louis-le-Grand, alugou uma batina e foi pedir contribuições em casas de ricos. Entretanto, o escândalo não passava de um expediente. Conservava a nostalgia da infância, quando era judeu, mas todos os homens eram irmãos. Tinham-no despedaçado e entregado o mundo ao caos: ele tentou recompor-se e reencontrar uma ordem. Acreditava, aos vinte anos, na universalidade da cultura, e trabalhara com entusiasmo para apropriar-se dela: tinha a impressão de que a cultura não lhe pertencia inteiramente. Colocara suas esperanças na verdade que reconcilia: mas os homens lhe opõem paixões e interesses e permanecem divididos. Nem pelo conhecimento nem pelo raciocínio, ele iria superar sua solidão. Excluído, injustiçado, sofria sua contingência até a repulsa. Sabia que não podia escapar a ela por nenhum artifício interior: só se salvaria com a condição de se apoiar numa necessidade objetiva. O marxismo impôs-se a ele com tanta evidência quanto sua própria existência: revelou-lhe a inteligibilidade dos conflitos humanos e arrancou-o à sua subjetividade. Concordando ideologicamente com os comunistas, reconhecendo nos objetivos deles seus próprios sonhos, confiou neles com um otimismo que, por vezes, me aborrecia, mas que era o avesso de um pessimismo profundo: precisava de amanhãs que cantam para compensar o dilaceramento que o fazia sofrer. Seu maniqueísmo me espantou, pois ele tinha uma inteligência sutil e mesmo astuta; muitas vezes censurava-se por isso, sem conseguir evitar uma recaída. Porque havia sido despojado de tudo, não suportava ser privado de nada: em seus adversários, precisava ver o Mal absoluto; o campo do Bem devia ser sem falhas, para ressuscitar o paraíso perdido. “Por que você não se inscreve no PC?”, perguntei-lhe. Essa perspectiva o amedrontava. Da simpatia, mesmo incondicional, ao engajamento há uma distância que ele não podia ultrapassar porque nada lhe parecia suficientemente real, sobretudo ele mesmo. Em sua infância, obrigando-o a renegar quer sua condição de judeu, quer sua individualidade, haviam-lhe roubado seu Eu: quando ele dizia eu, pensava cometer uma impostura.
Na falta de referência, adotava facilmente os pontos de vista das pessoas que estimava; mas era também teimoso e inflexível. Não encontrava nada em si para opor à evidência de suas emoções e de seus desejos, às violências de sua imaginação: não consentia em controlá-las. Indiferente às palavras de ordem e aos costumes, levava suas tristezas até as lágrimas, e suas recusas até o vômito. Sartre, a maioria dos meus amigos e eu mesma éramos puritanos; vigiávamos nossas reações, exteriorizávamos pouco nossos sentimentos. A espontaneidade de Lanzmann me era estranha. No entanto, foi por seus excessos que ele me pareceu próximo. Como ele, eu punha frenesi nos meus projetos e tinha uma obstinação maníaca por realizá-los. Eu podia chorar violentamente e permanecia em mim uma espécie de arrependimento das minhas raivas antigas.
Judeu e primogênito, as responsabilidades que haviam sido atribuídas a Lanzmann desde a infância o haviam amadurecido precocemente; por vezes ele parecia mesmo carregar nos ombros o peso de uma experiência ancestral: eu nunca pensava, quando conversávamos, que ele era mais jovem que eu. Sabíamos, entretanto, que havia entre nós dezessete anos de diferença: isso não nos assustara. Quanto a mim, precisava de distância para comprometer meu coração, pois estava fora de cogitação substituir meu acordo com Sartre. Algren pertencia a outro continente, Lanzmann, a outra geração: era também uma diferença, e que equilibrava nossas relações. A idade dele me condenava a não passar de um momento em sua vida: isso me desculpava, aos meus próprios olhos, por não lhe dar hoje tudo da minha. Aliás, ele não me pedia isso: aceitou-me em bloco, com meu passado e meu presente. Mesmo assim, nosso acordo não se fez em um instante. Em dezembro, passamos alguns dias na Holanda; ao longo dos canais gelados, nas tabernas de cortinas baixadas, onde bebíamos advokat, conversamos. As férias que eu tirava todo ano com Sartre apresentavam um problema: eu não queria renunciar a elas; mas uma separação de dois meses seria penosa para nós dois. Combinamos que todo verão Lanzmann viria passar uns dez dias comigo e Sartre. No decorrer de nossas conversas, outras preocupações e nossas últimas dúvidas se dissiparam. Quando voltamos a Paris, decidimos viver juntos. Eu amara minha solidão, mas não lamentei perdê-la.
Nossa vida se organizou: pela manhã, trabalhávamos lado a lado. Ele trouxera de Israel notas que desejava utilizar para uma reportagem. Essa viagem o abalara: lá, os judeus não eram párias, mas seres com direitos; com orgulho e espanto, ele descobrira que havia uma Marinha e navios judeus, cidades, campos e árvores judeus, judeus ricos e judeus pobres. Seu espanto o levara a se interrogar sobre si mesmo. Sartre, a quem ele descreveu essa experiência, aconselhou-o a falar em seu livro de Israel e da sua própria história ao mesmo tempo. A ideia seduziu Lanzmann: na verdade, ela não era feliz. Aos vinte e cinco anos, faltava-lhe o distanciamento necessário para se questionar; ele começou muito bem, mas tropeçou em obstáculos interiores e teve que parar.
A presença de Lanzmann perto de mim libertou-me da minha idade. Primeiro, ela suprimiu minhas angústias; por duas ou três vezes ele me viu perturbada, e isso o amedrontou tanto que se instalou uma determinação até em meus ossos e em meus nervos de não mais ceder à angústia: eu achava revoltante arrastá-lo já para as agruras do declínio. Além disso, essa presença reanimou o interesse que eu tinha pelas coisas. Pois diminuíra muito o ímpeto da minha curiosidade. Eu vivia numa terra de recursos limitados, roída por males terríveis e simples e minha própria finitude — a da minha situação, do meu destino, da minha obra — limitava minhas ambições; estava longe o tempo em que eu esperava tudo de todas as coisas! Eu me informava sobre o que aparecia: livros, filmes, pintura, teatro; mas sentia mais vontade de controlar, aprofundar e completar minhas antigas experiências; para Lanzmann, elas eram novas e ele as iluminava com uma luz imprevista. Graças a ele, mil coisas me foram devolvidas: alegrias, espantos, ansiedades, risos e o frescor do mundo. Depois de dois anos em que o marasmo universal coincidira, para mim, com a ruptura de um amor e os primeiros pressentimentos da decadência, saltei de novo, com arrebatamento, para a felicidade. A guerra distanciava-se. Encerrei-me na alegria da minha vida privada.
Continuei a ver Sartre tanto quanto antes, mas adquirimos novos hábitos. Alguns meses antes, eu fora despertada por um ruído insólito: batiam levemente um tambor. Eu acendera a luz: gotas de água caíam do teto sobre o couro de uma poltrona. Queixei-me à porteira, que avisou ao gerente, que falou com o proprietário. E continuou a chover no meu quarto, que apodrecia lentamente. Quando Lanzmann morou comigo, livros e jornais cobriam os móveis e o assoalho. Podia-se ainda trabalhar e dormir naquele quarto, mas não era agradável permanecer nele. Daí em diante, para jantar, conversar e beber, eu me instalava com Sartre na Palette, no bulevar Montparnasse, e algumas vezes no Falstaff, que nos lembrava nossa juventude. Eu ia também muitas vezes com Lanzmann ou com Olga ao bar-restaurante de Bûcherie, do outro lado da praça; marcava ali a maioria dos meus encontros; o lugar era frequentado por intelectuais de esquerda; viam-se, através de uma abertura envidraçada, a Notre-Dame e vegetação; uma vitrola tocava, em surdina, os concertos de Brandenburg. Como eu, Sartre sentia-se bem, sobretudo no círculo minúsculo que reuni na rua da Bûcherie para o Réveillon: Olga e Bost, Wanda, Michelle, Lanzmann. Havia tantas conivências entre nós que um sorriso valia um discurso: falar torna-se, então, o mais divertido dos jogos de sociedade; quando falta essa cumplicidade, é um esforço, frequentemente, vão. Eu perdera o gosto pelos encontros efêmeros. Monique Lange me propôs uma saída com Faulkner; recusei. Na noite em que Sartre jantou na casa de Michelle com Picasso e Chaplin, o qual eu conhecera nos EUA, preferi ir com Lanzmann ver Luzes da ribalta.
A primavera me trouxe uma satisfação: O segundo sexo foi lançado na América com um sucesso livre de qualquer canalhice. Eu amava esse livro e fiquei contente ao verificar — todas as vezes que o publicaram no estrangeiro — que, se ele havia causado escândalo na França, a culpa era dos meus leitores, não minha.
Em fins de março, desci até Saint-Tropez com Lanzmann; ele me levou a passear pelos matagais; altos montes de neve barravam ainda os caminhos de La Margeride. Encontramos Sartre no Aïoli; Michelle morava com os filhos numa pequena praça vizinha. Conversando com Sartre no terraço do Sennequier, encontramos ainda naquele ano Merleau-Ponty e também Brasseur, que tinha casa em Gassin. Pediu que Sartre adaptasse para ele o Kean de Dumas, e Sartre, que adora melodramas, não negou. À noite, um fogo de lenha ardia na sala de jantar do Aïoli: logo esse hotel elegante desapareceria, e a Mme Clo, tão respeitável com seus cabelos brancos, seu pulôver fechado, sua maquiagem discreta, seria acusada de cumplicidade num assalto; tive dificuldade, em 1954, de identificá-la com a velha perturbada cuja foto apareceu nos jornais. Mostrei a Lanzmann as montanhas dos Mouros, o Estérel, a costa, as cornijas. Enquanto rodávamos, falávamos do meu romance, cujo manuscrito eu lhe entregara; ele tinha um espírito crítico minucioso e aguçado; deu-me bons conselhos e me esclareceu com suas críticas; eu começava por me aborrecer com elas e depois me dava conta do defeito que as provocava. Preocupava-me muito com esse livro; retocara-o de fio a pavio, depois que voltara da Noruega: quando Sartre o releu, no fim do outono de 1952, ainda não ficou satisfeito. Constrangida pelas convenções romanescas, eu me curvava a elas, mas sem franqueza; era curto demais, longo demais, disparatado; as conversas não soavam bem; eu desejava mostrar indivíduos singulares, com suas certezas e suas dúvidas, incessantemente contestados pelos outros e por eles mesmos e oscilando entre a clarividência e a ingenuidade, entre o preconceito e a sinceridade; e eis que, em vez de pintar gente, eu parecia expor ideias. Talvez fosse realmente impossível tomar escritores como heróis, ou pelo menos, talvez, a tarefa ultrapassasse as minhas forças… “Vou jogar tudo para o alto”, decidi. “Trabalhe mais”, dizia-me Sartre; mas sua preocupação pesava mais do que seus encorajamentos. Foram principalmente Bost e Lanzmann que me convenceram a persistir; eles liam o texto pela primeira vez e foram mais sensíveis ao que ele continha de válido, do que às suas deficiências. Retomei, então, a obra. Mas muitas vezes, durante aquele último ano de labor, eu me impacientava quando perguntavam, num tom polidamente espantado: “Não escreve mais? Por que ela não escreve mais? Faz tempo que não escreve nada…” E sentia no coração uma pontada de ciúme quando aparecia, brilhando em sua capa ainda fresca, um novo romance de um escritor de talento, de pena mais ágil que a minha.
Sartre publicara em novembro, na Temps Modernes, a segunda parte de seu ensaio Os comunistas e a paz, onde explicitava os limites e as razões do seu acordo com o partido. Foi a Viena e, ao voltar, contou-nos em detalhe o Congresso dos Partidários da Paz. Durante uma noite inteira bebera vodca com os russos. Havia relativamente poucos comunistas: 20%. Muitos delegados vieram ao encontro sem o consentimento de seus governos; para deixar o Japão, a Indochina, alguns precisaram fazer longas caminhadas clandestinas; outros, em particular os egípcios, arriscavam-se a serem presos quando voltassem. A França, afora os comunistas e os progressistas, estava pouco representada; a esquerda intelectual, que Sartre desejara arrastar, não comparecera. Fui com Lanzmann ao comício do Vel’d’Hiv, onde os delegados contaram sua experiência; era provocador ver Sartre ao lado de Duclos, trocando sorrisos com ele. Os comunistas, acho eu, também se espantavam; o membro da comissão encarregado de apresentar Sartre hesitou imperceptivelmente: “Estamos felizes de ter entre nós Jean-Paul…” Sentiu-se um leve frêmito: pensou-se que ele ia dizer David. Ele se recuperou, e Sartre tomou o microfone. Eu sempre ficava emocionada quando ele falava em público, provavelmente por causa da distância que aquela multidão atenta criava entre nós; uma após outra, suas frases caíam com desenvoltura sobre o auditório, mas a cada vez eu tinha a impressão de um precário milagre. Zombando dos homens de esquerda que Viena assustara, ele divertiu muito; investiu contra Martinet e contra Stéphane; eu via este último, sentado à minha frente, dar mostras de que recebera os golpes, virando-se de vez em quando com um sorriso forçado.
A equipe da Temps Modernes, em sua maioria, aprovava a atitude política de Sartre; ele contou119 como suas relações com Merleau-Ponty foram alteradas com isso. Muitas pessoas afastaram-se dele, com maior ou menor estardalhaço, seja por um profundo desacordo, seja porque o achavam comprometedor. Foi acolhido bastante friamente em Fribourg, onde fora dar uma conferência. Falou durante três horas: “Deixei-me engambelar: não vão me engambelar mais!”, disse, ao sair, a mulher do diretor do Instituto Francês. Dos mil e duzentos estudantes que o ouviram, apenas cinquenta sabiam francês o bastante para acompanhá-lo: “Compreendemos as ideias”, disse um deles, “mas não os exemplos”. Sartre pareceu-lhes demasiado próximo do marxismo. Visitou Heidegger, empoleirado no seu ninho de águia, que lhe disse o quanto estava chocado com a peça que Gabriel Marcel acabava de escrever sobre ele.120 Só falaram disso e Sartre retirou-se, passada meia hora. Heidegger descambava para o misticismo, disse-me Sartre; e acrescentou, arregalando os olhos: “Quatro mil estudantes e professores engolindo Heidegger o dia todo, imagine!”
Decidira afinal redigir ele próprio a parte mais volumosa do livro dedicado à defesa de Henri Martin. Alguns amigos se preocupavam: não haveria coisa melhor a fazer? Eu também pensara assim, em tempos arcaicos: antes da guerra. Agora, a literatura não me era mais sagrada; e eu sabia que, se Sartre escolhia esses caminhos, era porque tinha necessidade disso. “Ele deveria terminar seu romance. Já seria mais do que tempo de escrever sua moral. Por que se cala? Por que falou?” Nada mais inútil do que os conselhos e críticas que muitas vezes descarregaram sobre mim, a respeito dele. Não se pode apreciar do exterior as condições em que uma obra se desenvolve: o interessado sabe melhor que ninguém o que lhe convém. Naquele momento, convinha a Sartre destruir muitas coisas, para reencontrar outras: “Eu lera tudo; tudo estava por reler; tinha apenas um fio de Ariadne, mas suficiente: a experiência inesgotável e difícil da luta de classes. Reli. Tinha alguns ossos no cérebro, quebrei-os, não sem fadiga.”121 Relia Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo e muitos outros. Preparava-se assim para continuar Os comunistas e a paz. Mas antes, como Lefort o criticara na Temps Modernes, respondeu-lhe longamente.
As novas posições de Sartre enchiam Lanzmann de satisfação. A política lhe parecia mais essencial que a literatura, e eu já disse que, se ele não aderia ao PC, era apenas por razões subjetivas. Quando lera o rascunho de Os mandarins, convencera-me a me explicar melhor sobre as distâncias tomadas por Henri e Dubreuilh com relação aos comunistas: até então, estas me haviam parecido claras. Eu estava longe de desaprovar Sartre, mas ele não me convencera a segui-lo porque eu julgava sua evolução reportando-me ao seu ponto de partida: temia que, para se aproximar do PC, ele se afastasse demais de sua verdade. Lanzmann situava-se no outro extremo do caminho: chamava de progresso cada passo que Sartre dava em direção aos comunistas. Instalado de repente e como que naturalmente na perspectiva deles, obrigou-me a prestar contas, quando eu estava acostumada a pedi-las; tive de contestar cotidianamente minhas reações mais espontâneas, isto é, minhas obstinações mais antigas. Pouco a pouco, minou minhas resistências, eu liquidei meu moralismo idealista e acabei por assumir o ponto de vista de Sartre.
Mesmo assim, trabalhar com os comunistas sem abdicar da própria opinião não era muito mais fácil — apesar da relativa abertura do PC francês — do que em 1946. Sartre não se sentiu afetado pelas dificuldades internas do partido, pela eliminação de Marty, de Tillon. Mas não aceitou o processo de Praga, nem o antissemitismo que se desencadeava na URSS, nem os artigos que Hervé escrevia em Ce Soir contra o sionismo em Israel, nem a detenção dos “assassinos de blusas brancas”. Recebeu visitas de comunistas judeus, que lhe pediram que se posicionasse. Mauriac, no Figaro, intimou-o a condenar a atitude de Stalin com relação aos judeus, e ele respondeu, no Observateur, que o faria no devido momento. Teria sido forçado a se indispor com seus novos amigos, se o curso dos acontecimentos não tivesse sido subitamente interrompido. Um dia, Sartre devia almoçar com Aragon; viu-o chegar à sua casa com uma hora e meia de atraso, transtornado, a barba por fazer: Stalin morrera. Imediatamente, Malenkov mandou soltar os médicos incriminados e tomou, em Berlim, medidas de pacificação. Durante semanas, tanto no nosso grupo como por toda parte do mundo, as pessoas se perderam em hipóteses, comentários, prognósticos. Sartre sentiu-se estranhamente aliviado! A aproximação que desejava tinha, enfim, suas possibilidades. O artigo de Péjou sobre o caso Slansky,122 publicado na Temps Modernes, não foi atacado pelo PC.
A guerra continuava na Indochina. O norte da África sublevava-se. Depois de dois anos de esforços pacíficos e de esperanças frustradas, Burguiba só contava com a violência para libertar a Tunísia; sua prisão123 suscitou uma greve geral e levantes no país; a limpeza do Cabo Bom, vinte mil prisões, o terror e a tortura restabeleceram a ordem. Em dezembro de 1952, houve em Casablanca, no dia seguinte ao assassinato de Fehrat Hached,124 uma greve de protesto; um motim provocado, quatro ou cinco europeus mortos, permitiram ao M. Boniface atacar o sindicalismo marroquino nascente: mandou massacrar quinhentos operários. O Neo-Destur e o Istiqlal eram partidos burgueses, mas, mesmo assim, encarnavam o desejo de independência da Tunísia, do Marrocos, e Sartre apoiou-os com todos os meios limitados de que dispunha: encontros, comícios e a revista.
Havia uma diversão que conservava para mim todo o seu atrativo: as viagens; eu não vira tudo o que desejava e queria voltar a muitos lugares. Por sua vez, Lanzmann não conhecia quase nada da França, nem do mundo. Passávamos a maior parte dos nossos lazeres em passeios, breves ou longos.
Creio que as árvores, as pedras, as cores e os murmúrios das paisagens nunca deixarão de me tocar. Eu me emocionava tanto quanto na minha juventude com um pôr do sol nas areias do Loire, com uma falésia avermelhada, uma macieira em flor ou um prado. Amava os caminhos cinzentos e rosados sob a sebe infinita dos plátanos, ou a chuva de ouro das folhas de acácia, quando chega o outono; amava, não certamente para ali viver, mas para atravessá-las e recordar, as aldeias de província, a animação dos mercados na praça de Nemours ou de Avallon, as calmas ruas de casas baixas, uma roseira trepando na pedra de uma fachada, o sussurro dos lilases em cima de um muro; baforadas de infância me voltavam, com o odor do feno cortado, das lavouras, das charnecas, com o glu-glu das fontes. Quando não tínhamos muito tempo, contentávamo-nos em ir jantar nos arredores de Paris, felizes por respirar o verde, por ver as luzes em flor da rodovia e por sentir na volta o hálito da cidade. Bebíamos vinho fresco à beira de uma colina, estrelas vermelhas e verdes passavam piscando por cima de nossas cabeças e iam mergulhar numa planície cintilante, eriçada de pilares vermelhos, e seu ronronar perturbava-me como outrora o apito de um trem através do campo. Sim, durante alguns anos ainda pude sentir prazer diante das telhas douradas dos telhados borguinhões, dos granitos das igrejas bretãs, das pedras das fazendas da Touraine, daqueles caminhos secretos, ao longo de uma água mais verde que a relva, das tabernas onde parávamos para comer truta ou guisado, do reflexo dos carros à noite, nos Champs-Élysées. Alguma coisa, em surdina, minava aquela doçura, aquelas festas, o país; mas naquele momento eu não era obrigada a aprofundar nada, e me deixava levar pelo brilho das aparências.
Em junho, partimos para nossa primeira grande viagem. Lanzmann estava doente, o médico lhe prescrevera a montanha, então fomos a Genebra; mas chovia; chovia em toda a Suíça. Erramos em torno dos lagos italianos, depois fomos para Veneza, onde se encontravam Michelle e Sartre. Esperávamos, de uma hora para outra, o desenlace do caso Rosenberg. Fazia já dois anos que eles haviam sido condenados à morte e que seus advogados lutavam para salvá-los. A Corte Suprema acabava de lhes recusar definitivamente o recurso do sursis. Mas a Europa inteira e o próprio papa reivindicavam tão ruidosamente seu perdão, que Eisenhower ia ver-se obrigado a concedê-lo.
Certa manhã, depois de passar algumas horas no Lido, Lanzmann e eu tomamos um vaporetto para ir ao encontro de Sartre e Michelle na praça Roma, e ir almoçar com eles em Vicenza; vimos num jornal uma enorme manchete: “I Rosenberg sono stati assassinati.” Sartre e Michelle desembarcaram alguns instantes depois de nós. O rosto de Sartre estava sombrio: “Não temos mais nenhuma vontade de rever o teatro de Vicenza”, disse ele, acrescentando, num tom irritado: “Vocês sabem, não estamos muito contentes.” Lanzmann telefonou para o Libération, que aceitou publicar um artigo de Sartre. Ele se trancou em seu quarto e escreveu durante todo o dia; à noite, na praça de São Marcos, leu-nos seu artigo: ninguém se encantou; nem ele. Recomeçou a escrever durante a noite: “Os Rosenberg morreram e a vida continua. É o que vocês queriam, não é?” De manhã, leu essa frase e a continuação por telefone ao Libération.
A vida continuava: que fazer? Que fazer? Lanzmann e eu falávamos dos Rosenberg, enquanto rodávamos para Trieste. Mas também olhávamos o céu, o mar, aquele mundo onde eles não estavam mais.
“Se forem à Iugoslávia, posso arranjar-lhes alguns dinares”, disse-nos o porteiro do hotel de Trieste. Podia-se ir lá? Nada mais simples. Em vinte e quatro horas, a agência Putnik nos forneceu vistos, mapas e conselhos. Munidos de dois pneus sobressalentes, um tambor de gasolina, velas, óleo, tábuas e instrumentos diversos, enchemos o tanque: “A Iugoslávia, de carro! Vão se divertir!”, disse o homem do posto. Estávamos emocionados quando passamos a fronteira: quase uma cortina de ferro. Realmente, mudava-se de mundo. Nem um carro sequer na estrada, que costeava o mar; o caminho estava tão esburacado, que logo foi preciso andar pela terra: mesmo assim, impossível ultrapassar quarenta por hora. Anoitecia, e morríamos de fome, quando encontramos um hotel em Otokac. “Vamos servir-lhes o jantar, mas para o quarto é preciso esperar o porteiro.” O porteiro: representava um papel tão importante quanto na obra de Kafka. Um quarto? É o porteiro que tem a chave. Gasolina? Só ele pode liberar a bomba ou abrir a loja. Onde está ele? Nunca aparece. Enfim, é encontrado: não tem a chave; vai procurá-la. Vai voltar: mas quando? Naquela noite, numa sala de jantar enfumaçada, esperamos mastigando almôndegas e bebendo aguardente de ameixa. “Há aqui uma francesa que gostaria de falar com vocês”, disse-nos o empregado. Uma velha professora desdentada sentou-se ao nosso lado; conhecia um príncipe, a quem estava ansiosa para nos apresentar e que teria muito a nos dizer sobre as extorsões de Tito; quanto a ela, o marido estava na prisão, e ela ganhava a vida muito mal. Ele lutara como coronel ao lado dos alemães e ela passara um tempo em Paris, em uniforme de souris grise,125 acrescentou. Demos uma volta na cidade mergulhada em noite e silêncio, e que nos parecia fantástica de tanto que nos espantávamos por nos encontrarmos ali.
O homem do posto italiano teria tudo para zombar de nós. O turismo mal começava a renascer; muito poucos hotéis, poucos restaurantes, a alimentação mais frugal; tinha-se dificuldade em encontrar gasolina; o menor conserto era problemático; nas oficinas, faltava tudo; os mecânicos davam algumas marteladas ao acaso. Nós não zombávamos. Esse país, que era antes de 1939 o mais pobre da Europa, fora devastado pela guerra. As razões de sua austeridade estavam na sua resistência ao fascismo e também na recusa em ressuscitar os antigos privilégios; pela primeira vez na minha vida eu não via a opulência conviver com a miséria; não se encontrava em ninguém arrogância, nem humildade; em todos a mesma dignidade; e para os estrangeiros que nós éramos, uma cordialidade sem reticências; pediam-nos e prestavam-nos serviços com a mesma naturalidade.
O que víamos nos agradava. Em torno dos lagos Plivice, em meio a um grande ruído de folhagens e de cascatas, crianças vendiam cestos feitos de casca de bétula, cheios de morangos selvagens; belas camponesas louras olhavam-nos passar ao longo das estradas; conheci de novo a alegria de descobrir de repente, do flanco de uma montanha, o Mediterrâneo e as oliveiras descendo de esplanada em esplanada, em direção ao azul infinito da água; ab-rupta, recortada, crivada de promontórios e de ilhotas cintilantes, a costa era tão bela quanto minhas lembranças da Grécia; vimos Sibenik, Split e seu palácio: nas igrejas, velhas mulheres resmungavam diante dos ícones. De repente, o Oriente: Mostar, com suas cúpulas e seus minaretes esguios; porém, fazia mais de quarenta graus, o ar estava úmido, Lanzmann teve febre e eu me lembrei com remorso das prescrições do médico. Decidimos voltar rapidamente por Belgrado e ir de novo à Suíça. Sarajevo nos reteve por um dia; tão próxima do Mediterrâneo, as grandes avenidas, o hotel pesadamente mobiliado pertenciam à Europa central; as mesquitas, deliciosas e em ruínas, ao Oriente; e que mistura de mulheres com fichus pretos, camponeses de botas, roupas bordadas, no pobre mercado que evocava para mim aquela palavra de antes da outra guerra: os Bálcãs.
Para chegar a Belgrado, escolhemos no mapa a estrada mais curta, que cortava o rio Save. Atravessando as aldeias e hesitando nas encruzilhadas, perguntamos várias vezes: “Beograd?” Respondiam-nos com frases volúveis, nas quais sempre aparecia a palavra autoput, e com gestos que pareciam indicar que devíamos retroceder. Enquanto desviava dos coelhos que surgiam de todos os lados sob os faróis, Lanzmann me perguntava: “Você acha que é essa a estrada?” Eu lhe mostrava o mapa. No meio da noite, chegamos à beira de uma vasta extensão de água escura: não havia ponte. Tivemos que retroceder duzentos quilômetros, para retomarmos a rodovia. Substituí Lanzmann ao volante, pois ele estava esgotado, e atropelei uma lebre. “Pegue-a”, disse ele. “Vamos dá-la a alguém.” A lebre era enorme e quase não sangrava.
O dia clareava quando entramos em Belgrado: dormimos e depois visitamos essa cidade de coração maciço, flanqueada de grandes burgos camponeses; as lojas, os restaurantes, as ruas, as pessoas, tudo parecia pobre. No velho bairro, descemos do carro, decididos a nos livrarmos da nossa lebre, que eu segurava pelas orelhas. Não ousávamos oferecê-la a ninguém: e no entanto não podíamos jogá-la fora! Enfim, paramos diante de um jovem casal que empurrava um carrinho de criança, e eu lhes estendi a lebre, dizendo: “Autoput.” Eles nos agradeceram, rindo.
No dia seguinte à noite, disparamos de novo pela rodovia deserta, onde só passavam carroções de feno; uma tempestade de uma violência apavorante nos deteve em Brod, um grande centro metalúrgico; havia um baile no hotel: os operários e as operárias dançavam. O gerente nos fez notar sua alegria, depois expôs-nos com veemência os ressentimentos de seu país contra a URSS. Lanzmann sabia alemão, língua que um número bastante grande de iugoslavos falava: todos aqueles com quem conversáramos detestavam a URSS quase tanto quanto a Alemanha, naquela época. Lembro-me, entre outras, de uma parada numa aldeia onde mandamos consertar duas câmaras de ar. Alguns trabalhadores nos convidaram a tomar um trago num hangar enfeitado com guirlandas de papel e bandeiras; evocaram suas lembranças de maquis, e Lanzmann contou as suas. Também para eles, um dos mais belos títulos de glória de Tito era sua ruptura com Stalin.
Depois de algumas horas de parada em Zagreb e em Liubliana, deixamos a Iugoslávia: não sem saudades. Sua pobreza era extrema; faltavam-lhe pontes, estradas; rodáramos sobre um viaduto utilizado ao mesmo tempo por pedestres, carros e trens. Mas, através dessa penúria, algo que eu não encontrara em nenhum lugar me emocionava: uma relação simples e direta das pessoas entre si, uma comunidade de interesses e de esperanças, fraternidade. Como a Itália nos pareceu rica, assim que passamos a fronteira! Enormes caminhões-tanques, carros, postos de gasolina, uma rede de rodovias e de vias férreas, pontes, lojas opulentas: essas coisas me pareciam agora um privilégio. E reencontrávamos, junto com a prosperidade, as hierarquias, as distâncias e as barreiras.
Enfim, a Suíça, neve, geleiras. Subimos todos os desfiladeiros, todos os cumes acessíveis a automóveis. Depois dos imprevistos dos itinerários iugoslavos, sentíamo-nos despeitados por percorrer caminhos conhecidos; escalando à noite estradas ab-ruptas e geladas, mais de uma vez sorvemos no medo um delicioso sentimento de aventura. Dormimos a mais de três mil metros, ao pé do Jungfrau, e vimos o sol levantar-se sobre o Eiger. E depois caminhamos: eu ainda era capaz de fazê-lo; de alpercatas, através das massas de neve, andávamos durante sete ou oito horas seguidas. Lanzmann estava descobrindo a alta montanha; em Zermatt, aprendeu de cor todos os dramas do monte Cervino. Depois de alguns dias em Milão, em casa de minha irmã, passeamos em torno do vale de Aosta; lemos num cartaz, à beira de um prado: “Respeite a natureza e a propriedade.” Ficávamos espantados, quando voltamos para Paris, ao encontrar misturados em nossas recordações as oliveiras da Dalmácia e o azul das geleiras.
Quase imediatamente, deixei Paris de novo com Sartre. Passamos um mês num hotel de Amsterdam, nos canais; trabalhávamos, visitávamos os museus, a cidade, e toda a Holanda. Na França, acabava de estourar uma greve de vigor excepcional, que paralisava todos os serviços públicos e, entre outros, os Correios:126 para nos correspondermos, Lanzmann e eu levávamos nossas cartas aos aeroportos e as confiávamos a viajantes. Certa vez, ele tentou enternecer uma telefonista invocando o ardor de seus sentimentos: “O amor não é uma urgência”, respondeu-lhe ela, secamente.
De Amsterdam, fomos ver, entre as florestas e as charnecas, os Van Gogh do museu Muller-Kroller; seguimos as margens do Reno e do Mosela. Nos terraços dos weinestubbe, bebíamos vinho aromatizado em belos copos espessos, cor de uva clara. Sartre me mostrou, numa colina acima de Trier, os restos do Stalag onde estivera prisioneiro: o lugar me chocou; mas os arames farpados enferrujados e as poucas barracas que ainda se mantinham de pé me impressionavam muito menos que os relatos dele. Atravessamos a Alsácia, descemos até Basileia, onde revi os Holbein e os Klee.
Lanzmann, de acordo com o que combináramos, devia juntar-se a nós por alguns dias e eu o esperava com impaciência; recebi um telegrama: ele estava no hospital, pois sofrera um acidente de carro, nos arredores de Cahors. Tive medo. Parti com Sartre para Cahors, onde Lanzmann jazia, esfolado e moído. Era menos grave do que se pensara. Ele se levantou logo e demos, os três, um passeio através do Lot e do Limousin; visitamos as grutas de Lascaux. Descemos até Toulouse, revendo Albi, Cordes, a floresta de Grésigne. Terminei minhas férias com Sartre com um giro pela Bretanha: esta nos pareceu belíssima no outono, com suas tempestades. Mas eu estava ansiosa. Receara que Lanzmann não se adaptasse às minhas relações com Sartre; agora ele ocupava tanto espaço na minha vida que eu me perguntava se meu entendimento com Sartre não corria o risco de sofrer com isso. Sartre e eu não levávamos mais exatamente o mesmo tipo de vida. Nunca a política, seus escritos e seu trabalho o haviam absorvido tanto; ele chegava a estafar-se. Quanto a mim, aproveitava minha juventude reencontrada; entregava-me aos momentos. Não havia dúvida de que permaneceríamos sempre amigos íntimos, mas nossos destinos, até então confundidos, não terminariam por se separar? Com o tempo, tranquilizei-me. O equilíbrio que eu atingira, graças a Lanzmann, a Sartre e à minha própria vigilância, era durável, e durou.
O ano de 1953 terminou bem. A deposição do sultão era uma vitória do colonialismo: precária, no entanto, pensávamos. O armistício fora, enfim, assinado na Coreia; Ho Chi Minh, em entrevista concedida a um jornal sueco, o Expressen, abria caminho a negociações. O motim de 17 de junho, em Berlim Oriental, onde a polícia atirara nos operários, a queda de Rakosi e a abolição, por Nagy, dos campos de concentração haviam obrigado brutalmente os comunistas a reconhecerem certos fatos que até então negavam; alguns se questionavam; outros “cerravam os dentes”. Aos simpatizantes, a evolução da URSS trazia uma satisfação total: os campos e Béria desapareciam; o nível de vida dos russos ia elevar-se, o que favoreceria uma democratização política e intelectual, pois a indústria leve não estava mais sacrificada à indústria pesada; e, efetivamente, já se anunciava um “degelo”, segundo o título do último romance de Ehrenburg. Quando Malenkov anunciou que a URSS possuía a bomba H, a eventualidade de um conflito mundial pareceu afastada por muito tempo. Um “equilíbrio dos terrores”, de qualquer modo, é melhor que um terror sem equilíbrio. Nesse contexto, a vitória de Adenauer, que pressagiava a criação do exército europeu, perdia um pouco da sua gravidade.
Sartre escrevera em algumas semanas, e divertindo-se muito, a adaptação de Kean pedida por Brasseur; pela primeira vez, os ensaios se passaram sem drama. Assisti a Esperando Godot. Desconfio das peças que apresentam através de símbolos a condição humana em sua generalidade; mas admirei o fato de Beckett conseguir cativar-nos, simplesmente pintando essa incansável paciência que retém na terra, contra tudo e contra todos, nossa espécie e cada um de nós; eu era um dos atores do drama, tendo por parceiro o autor; enquanto esperávamos — o quê? — ele falava, e eu escutava: pela minha presença e pela voz dele, mantinha-se uma inútil e necessária esperança.
O velho e o mar, de Hemingway, acabava de ser publicado em francês, e toda a crítica o elogiava. Nem meus amigos nem eu gostávamos da obra. Hemingway sabia contar uma história; mas sobrecarregara esta de símbolos; identificava-se com o pescador que carrega sobre os ombros, sob a imagem falsamente simples de um peixe, a Cruz de Cristo: eu achava irritante esse narcisismo senil. Não concordei inteiramente com Lanzmann sobre O questionário, de Von Salomon. A Alemanha tornara-se o país mais próspero da Europa; Antonina Vallentin, que voltava de lá, contou-me seu encontro com o neonazismo alemão; a despeito dos “questionários”, os antigos nazistas e os homens de negócios que haviam apoiado Hitler estavam novamente por cima. Eu compreendia que se acolhesse com cólera a autojustificação de Salomon. Reconhecia o quanto havia de má-fé em seu procedimento e esta emergia do seu próprio estilo. Mas a vivacidade de suas narrativas reanimava em mim o velho desejo de contar minhas próprias lembranças.
Logo eu teria que me perguntar, de novo: o que escrever? Pois enfim — e isso não contribuiu pouco para a alegria daquele outono — terminei meu livro. Preocupei-me com um título. Renunciara a Survivants: apesar de tudo, em 1944, a vida não parara. Eu teria escolhido com prazer Les Suspects, se a palavra não tivesse sido utilizada por Darbon, pois o assunto essencial do romance era o equívoco da condição de escritor. Sartre sugeria Les Griots: nós gostávamos de nos comparar a esses ferreiros, feiticeiros e poetas que certas sociedades africanas honram, temem e desdenham ao mesmo tempo; mas era esotérico demais. “Por que não Os mandarins?”, propôs Lanzmann.
O inverno começou rudemente; o padre Pierre lançou sua grande ofensiva de caridade, os burgueses consentiram com entusiasmo em se separar de algumas roupas, todo mundo se sentiu bom e generoso, e os Réveillons foram muito animados. Nosso pequeno grupo reuniu-se em casa de Michelle. Tendo confiado o manuscrito de Os mandarins a Gallimard, e como Lanzmann tinha quinze dias de férias, sonhei com o sol. Provisoriamente o Marrocos estava calmo; Lanzmann tinha vontade de conhecê-lo, e eu de revê-lo. Reservamos passagens de avião. Na véspera da nossa partida, os jornais ostentavam manchetes: “Alerta no Marrocos.” Era o começo da onda de terrorismo e de contraterrorismo desencadeada pela deposição do sultão. Mudamos nossos planos e dois dias depois, pela manhã, embarcamos de carro para Argel, chuvosa e cheia de mendigos, de desempregados, de desespero. Por trás dessa morna fachada, havia um povo em ebulição, que militantes organizavam com uma paciência tenaz, mas isso nós ignorávamos. Partimos logo para o deserto. Diante do hotel de Ghardaia estavam estacionados caminhões que traziam nas laterais inscrições que anunciavam os objetivos da expedição. “Vender fornos elétricos e estudar a parasitologia em trinta mil quilômetros da África Negra.” Uma americana que se preparava para atravessar o Saara polia seu Willis Overland. Por que não descíamos também para El-Goléa?, perguntava-me Lanzmann. As pessoas do hotel lhe asseguravam que o Aronde chegaria lá em pedaços. Propus-lhe ir antes a Guerrera. A cidade levantava-se, vermelha e esplêndida, acima das areias: na praça, no centro de um círculo atento, um homem carregando nos ombros um carneiro andava de um lado para outro, gritando: era um leilão; olhamos as pessoas, as ruas, andamos no oásis. Mas, para ir e voltar, que dificuldade! Rodávamos numa estrada ondulada, cortada de sulcos, passando ab-ruptamente de oitenta para cinco por hora; na volta, a noite caía; sob um céu tempestuoso de assustadora beleza, encalhamos na areia; tínhamos uma pá e pranchas, e Lanzmann conseguiu libertar-nos: mas desistiu de El-Goléa.
Em Uargla, encontrei, sem mudança, as areias cor de damasco, as falésias cor de amêndoa que me haviam emocionado oito anos antes. Tuggurt nos desagradou; dormimos lá e nos apressamos em deixá-la, apesar de um vento de areia e dos conselhos que nos prodigalizavam. Não se via nada a uma distância de dez metros, e, ao cabo de cinco minutos, fomos parar em terrenos baldios. Juntando nossas teimosias, retomamos a pista e acendemos os faróis; um carro parou: um ilustre muçulmano e seu motorista: “Sigam-nos.” Seu Citröen corria a noventa por hora na espessa obscuridade branca. Lanzmann pisava fundo, os olhos fixos na traseira do carro. Pararam numa aldeia, e continuamos na mesma velocidade — sempre que Lanzmann diminuía, o carro trepidava, todas as suas partes se entrechocavam — certos de que nos arrebentaríamos se aparecesse um obstáculo. Enfim escapamos da borrasca, mas o vento amontoara dunas na estrada; ao fim de quatro quilômetros, atolamos na areia; uma equipe que trabalhava numa estreita via férrea veio em nosso auxílio; atolamos novamente; dois vagonetes passavam, a menos de dez por hora, transportando operários; estes nos tiraram do apuro. Enfim, a oitenta quilômetros de El Ued, atolamos definitivamente; o sol caía, fazia muito frio, a noite ia ser dura. Abençoamos nossa boa estrela quando vimos um Dodge: o chefe da estação, sua mulher e dois motoristas muçulmanos. Conserto do carro, novo atolamento. Para terminar, entramos no Dodge com nossas bagagens; fechamos o carro, mas recusamos a oferta de um dos motoristas passar a noite guardando-o.
De manhã, os motoristas foram buscar o carro. O chefe da estação, temeroso de que suprimissem seu trem se não fosse utilizado, queria que o usássemos no dia seguinte para trazer o carro de volta a Biscra. “Ele vai quebrar-se”, predizia Salem, um homem jovem, de aparência decidida que, por quatro mil francos, insistia em conduzi-lo a Nefta, através das dunas. Eu as havia atravessado outrora de caminhão, mas será que um Aronde passaria? Não, diziam-nos. Enquanto passeávamos, perplexos, pelos belos jardins em forma de funil, encontramos Salem; ele dirigia um jipe carregado de crianças e saltava de duna em duna. “Pois bem, se você ainda estiver de acordo, vamos tentar”, decidimo-nos. À noite, despedimo-nos do chefe da estação, desolado. Sua mulher, que chegara há pouco tempo à Argélia, ainda estava deslumbrada: uma grande casa, um vasto jardim, criados à vontade, eram coisas com as quais nunca sonhara: “Quando escrevo aos meus pais dizendo que faço duzentos quilômetros de carro por dia, por prazer, eles não querem acreditar!” Eram boas pessoas, mas opuseram-se a que Lanzmann gratificasse os dois motoristas, que eram funcionários da estação. Lanzmann o fez, escondido deles; perceberam e zangaram-se.
De manhã, El Ued inteira nos viu partir; Salem esvaziara os pneus; deu partida sob o fogo dos olhares céticos: “Você não vai passar com isso.” Estávamos ansiosos: em caso de fracasso, seria preciso esperar oito dias pelo próximo trem. Ai de nós! A menos de cinco quilômetros, o carro enterrou-se na areia; alguns camponeses ajudaram-nos a sair. “Mas da próxima vez não haverá ninguém”, dizia para mim mesma, consternada. Depois, o Aronde começou a voar sobre a areia; de vez em quando, chegando ao alto de uma duna, Salem descia-a de marcha a ré, a fim de atacá-la de outro ângulo: e passava. Às três, bebemos à sua saúde num café muçulmano de Nefta, e os clientes que se haviam agrupado em torno dele olhavam-no com admiração. Era tão hábil quanto vivo e inteligente; certamente ligara-se à ALN127 desde os primeiros dias: que lhe terá acontecido?
Graças a ele, havíamos sido bem acolhidos; mas, pouco mais tarde, ao voltar de um passeio no oásis, na praça quase deserta, os raros mercadores, estáticos atrás de seus cestos, fitaram-nos com um jeito maldoso; o hotel estava fechado; um bistrô que parecia aberto recusou-se a nos servir sequer um copo d’água. Visitamos Tatauine, Medenine, Djerba, mas sentíamos entre o país e nós uma cortina de hostilidade. Perto de Gabes, ouvi pela primeira vez uma palavra que logo me seria familiar; perguntei ao oficial se poderíamos ir aos Matmata: eu temia as areias; ele sorriu com superioridade: “Vocês têm medo dos fellagha? Fiquem tranquilos: estamos aqui, eles não se atreverão!” Certa tarde, ao crepúsculo, demos a volta ao Cabo Bom. Voltando a Túnis de avião, embarcamos o carro num navio; um jovem estivador tunisiano leu no carro o nome de Sartre; chamou os companheiros: “O carro de Jean-Paul Sartre! Vamos cuidar dele imediatamente! Digam obrigado a ele, de nossa parte!” Invejei Sartre por ter conseguido fazer nascer aqueles sorrisos de amizade naqueles rostos que a França havia condenado ao ódio.
***
Recomecei a escrever, mas lentamente. O único projeto que agora me entusiasmava era ressuscitar minha infância e minha juventude, e eu não ousava fazê-lo com franqueza. Retomando tentativas muito antigas, comecei uma novela sobre a morte de Zaza. Quando a mostrei a Sartre, ao fim de dois ou três meses, ele torceu o nariz; eu concordava: aquela história parecia gratuita e não interessava. Durante algum tempo, contentei-me em ler e corrigir, muito mal, as provas de Os mandarins.
O ano de 1954 desmentia nossas esperanças; tendo fracassado a conferência de Berlim, a França dispunha-se a ratificar a CED.128 Apoiada pela América que, vencida na Coreia, desejava pelo menos livrar a Indochina do comunismo, ela repeliu os avanços de Ho Chi Minh. A partir do dia 13 de março, quando o general Navarre se empenhou na batalha de Dien Bien Phu, tive pela primeira vez uma experiência penosa: senti-me radicalmente apartada da massa dos meus compatriotas. A grande imprensa e o rádio anunciavam que o exército do Viet Minh seria aniquilado; lendo os jornais de esquerda e os jornais estrangeiros, eu não só sabia que não era verdade, mas também felicitava-me por isso, junto com meus amigos. Do lado do Viet Minh, a guerra fizera, no povo e no exército, centenas de milhares de mortos e eu me comovia mais com isso do que com as perdas sofridas pela guarnição: quinze mil legionários, dos quais pelo menos um terço eram antigos SS. O heroísmo das unidades suicidas era mais extraordinário que o de Geneviève de Galard e do coronel De Castries, que a propaganda explorava indecentemente. Bidault argumentava com a coragem deles para recusar-se a negociar sequer uma trégua que permitisse evacuar os feridos. Quando Dien Bien Phu caiu, eu soube que o Viet Minh praticamente conquistara sua independência e fiquei feliz. Fazia anos que eu era contra a França oficial; mas nunca, ainda, tivera que me rejubilar com sua derrota: era mais escandaloso do que cuspir sobre uma vitória. As pessoas que eu encontrava imaginavam que uma grande infelicidade acabava de atingir seu país, o meu. Se tivessem suspeitado da minha satisfação, eu teria merecido, na opinião deles, doze balas no corpo.
Os ultras e o Exército pretenderam imputar os sofrimentos, as agonias, os mortos de Dien Bien Phu aos civis em seu conjunto e à esquerda, em particular; nada melhor que Laniel e Pleven fossem atacados; pelo menos alguns pontapés no traseiro não iriam perder-se; mas, enfim, não eram os ministros que haviam escolhido encerrar o corpo expedicionário num “vaso noturno”. O Exército, que iria depois alimentar tão complacentemente seu rancor com a lembrança dessa “humilhação”, tinha inteira responsabilidade nisso. Quanto à esquerda, não só sempre desejara a paz, como também sua imprensa e seus políticos haviam denunciado a perigosa extravagância do Plano Navarre. Houve um assassino no governo: Bidault; mas seu crime não foi trair os militares: ele teria chegado a arriscar a guerra mundial para apoiá-los. Não se podia prever a que extremos nos arrastaria a parafrenia de um exército que, recusando-se a assumir seus erros, voltaria à França sedento de vingança. Entretanto, enquanto o Parlamento derrubava Laniel e Bidault, opunha-se à partida do contingente e encarregava Mendès-France de negociar, enquanto grande parte do país o aprovava, um chauvinismo intratável, propagado pelos vencidos da Indochina, começava a infectar a opinião pública. Ulanova devia dançar em Paris: os paraquedistas acreditaram vingar Dien Bien Phu impedindo a representação com ameaças que intimidaram as autoridades.
Em março, os americanos haviam lançado sobre Bikini uma bomba cujos efeitos superaram todas as suas previsões.129 Oppenheimer, que contribuíra para aperfeiçoá-la, nem por isso foi menos acusado de atividades antiamericanistas. A caça às bruxas não se abrandava: no entanto, o imperialismo americano ia muito bem: aqueles que ele oprimia e que tentavam combatê-lo eram logo esmagados. Para chamar a atenção do mundo, os porto-riquenhos atiraram em membros do Congresso, em plena sessão: inutilmente. Arbenz, na Guatemala, tentara abalar o jugo da United Fruit: mercenários, batizados de “exército da libertação”, desembarcaram e o expulsaram.
Em fevereiro, Eisa Triolet pediu a Sartre para participar de um encontro entre escritores do Leste e do Oeste, que iam preparar em Knokke-le-Zoute uma espécie de mesa-redonda; ele aceitou; Michelle, Lanzmann e eu o acompanhamos de carro; de dia passeávamos, olhávamos quadros; à noite ele nos contava as sessões; os intelectuais burgueses — Mauriac, entre outros — haviam declinado do convite de Eisa Triolet; o pequeno grupo de comunistas e de simpatizantes que ela reunira redigia um apelo com vistas a uma reunião mais ampla: era preciso não irritar ninguém, e se pesava cada palavra; lá estavam Carlo Levi, todo friorento sob seu boné de pele, Fédine, Anna Seghers, Brecht, encantador, mas que consternou a todos quando afinal o texto foi concluído, pedindo com ar ingênuo que se acrescentasse um protesto contra as experiências atômicas americanas; Fédine e Sartre prudentemente fizeram com que sua sugestão fosse afastada. A rainha da Bélgica, velha progressista, recebeu em Bruxelas os membros desse pequeno congresso. Os escritores russos convidaram Sartre para ir a Moscou em maio.
Ele trabalhara exageradamente durante todo o ano: sofria de hipertensão. O médico prescrevera-lhe o campo e um longo descanso: ele se limitava a tomar alguns remédios. Dormiu mal as noites que precederam sua viagem porque precisava terminar o prefácio para o álbum de Cartier-Bresson, De uma China à outra; ele devia parar em Berlim e participar de uma reunião do Movimento da Paz e preparava seu comunicado no avião: decididamente, estafava-se e eu me inquietei. Ele parecia extenuado. Suas primeiras cartas tranquilizaram-me um pouco. Em Berlim, falara da universalização da História e de seu paradoxo: um dos seus aspectos era o surgimento de armas capazes de aniquilar o planeta; o outro, a intervenção, na evolução do mundo, de países colonizados ou semicolonizados, que, para conquistar sua independência, desencadeavam guerras populares, contra as quais as bombas atômicas não tinham nenhum poder.
Agora Sartre se recuperava de suas fadigas, afirmava. Do seu hotel, o National, ele via a Praça Vermelha, coberta de bandeiras: festejava-se o aniversário da anexação da Ucrânia à Rússia. Ele assistiu ao desfile: “Avaliei, com meus olhos, um milhão de homens”, escreveu-me. Ficara chocado com a indelicadeza de certos diplomatas estrangeiros que, em sua tribuna, escarneciam: “Na França, no 14 de julho, nos Champs-Élysées, não se teria tolerado a grosseria deles.” Visitou a Universidade, falou com estudantes, professores; ouviu operários e técnicos, numa fábrica, discutirem as obras de Simonov. Passeava muito; seu intérprete lhe entregara quinhentos rublos, para o caso de querer sair sozinho, o que fazia frequentemente. Convidado por Simonov à sua datcha, fora submetido a uma dura prova: um banquete de quatro horas, vinte brindes com vodca, onde sem parar enchiam seu copo de vinho rosado da Armênia ou de vinho tinto da Geórgia. “Observo-o enquanto ele come”, disse um dos convivas. “Aquele homem deve ser honesto, pois come e bebe sinceramente.” Sartre fez questão de permanecer, até o fim, digno desse elogio: “Não perdi o uso da minha cabeça, mas perdi parcialmente o das minhas pernas”, confessava-me. Transportaram-no até o trem de Leningrado, onde chegou na manhã seguinte. Os cais do Neva e os palácios entusiasmaram-no. Mas não o poupavam. Quatro horas de passeio de carro pela cidade, visita aos monumentos, uma hora de descanso, quatro horas de visita ao Palácio da Cultura. Programa análogo no dia seguinte, e balé à noite. Retornou a Moscou, partiu de avião para o Uzbequistão. Depois, devia acompanhar Ehrenburg a Estocolmo, para uma reunião do Movimento da Paz, e retornar a Paris em 21 de junho.
Em junho, minha irmã expôs seus últimos quadros na rive droite. Preocupada em aprofundar seu ofício, reprimia exageradamente a espontaneidade, mas algumas de suas obras já impressionavam. Encontrei no seu vernissage, acompanhada de Jacqueline Audry, Françoise Sagan. Eu não gostava muito de seu romance. Iria preferir mais tarde Um certo sorriso, e Dentro de um mês, dentro de um ano; mas ela tinha um jeito agradável de disfarçar seu personagem de criança-prodígio.
Era um belo verão. Fui instalar-me com Lanzmann em um pequeno hotel, à beira do lago dos Settons; leváramos uma biblioteca, mas passamos o melhor de nosso tempo por montes e vales, visitando abadias, igrejas e castelos; giestas em flor douravam as colinas. No dia da nossa volta, encontrei na minha cabana, sob a escada, um recado de Bost: “Venha me ver imediatamente.” Pensei: “Aconteceu algo a Sartre.” Realmente, pela manhã Ehrenburg telefonara de Estocolmo a d’Astier, pedindo-Ihe que avisasse aos amigos: Sartre estava internado num hospital de Moscou; d’Astier prevenira Cau, que avisara Bost. Tive medo, como naquele dia de 1940, em que a carta de uma desconhecida indicara-me o novo endereço de Sartre: Krankenrevier.130 Bost também parecia consternado. O que teria Sartre, afinal? Ignorava-o. Eu quis falar com Cau; ele estava na Sorbonne, onde se realizava uma reunião qualquer; fomos lá; “D’Astier falou de uma crise de hipotensão”, disse-me Cau; “Não é nada grave.” Isso não me satisfez; era certamente de hipertensão que Sartre sofria: teria tido um derrame? Decidi, com Bost, Olga e Lanzmann, ir à embaixada soviética, e pedir ao adido cultural para telefonar a Moscou. Na entrada, encontramos alguns funcionários, e eu lhes expus meu pedido; eles nos olharam com surpresa: “Telefone a senhora mesma… Basta tirar o fone do gancho e discar para Moscou.” Naquela época, a imagem da cortina de ferro era tão viva, que mal conseguimos acreditar neles. De volta à rua de Bûcherie, pedi Moscou, o hospital, Sartre. Ao fim de três minutos, ouvi estupefata a voz dele. “Como vai?”, perguntei ansiosa. “Muito bem”, respondeu ele, num tom despreocupado. “Você não está bem, pois está no hospital.” “Como é que você sabe?” Ele parecia intrigado. Expliquei-lhe. Ele confessou uma crise de hipertensão, mas já estava melhor e ia voltar para Paris. Desliguei, mas não conseguia recuperar a paz; aquele alerta tinha um sentido inteiramente diferente do de 1940; naquele momento, eram os perigos exteriores que ameaçavam Sartre; de repente eu me dei conta de que, como todos, ele trazia a morte em si. Eu nunca olhava a morte de frente; invoquei contra ela meu próprio aniquilamento, que me aterrorizava e tranquilizava, ao mesmo tempo. Naquele instante, porém, eu não estava em jogo; pouco importava que me encontrasse ou não na terra, no dia em que ele desaparecesse: esse dia chegaria. Vinte anos mais tarde, ou no dia seguinte, a iminência era a mesma: ele morrerá. Que sombria alucinação! A crise resolveu-se. Mas algo irreversível acontecera; a morte me invadira; não era mais um escândalo metafísico, mas uma propriedade das nossas artérias; não mais uma redoma de vidro em torno de nós, mas uma presença íntima que penetrava minha vida, alterando os gostos, os odores, as luzes, as lembranças, os projetos: tudo.
Sartre voltou; afora grandes feiuras arquitetônicas, ele gostara do que vira. Ficara sobretudo interessadíssimo nas novas relações criadas, na URSS, entre os homens e também entre pessoas e coisas: entre um autor e seus leitores, entre os operários e a fábrica. Trabalho, lazer, leitura, viagens, amizade: ali tudo tinha um sentido diferente do que tinha aqui. Parecia-lhe que a sociedade soviética vencera em grande parte a solidão que corrói a nossa; os inconvenientes da vida coletiva na URSS lhe pareciam menos lamentáveis do que o desamparo individualista.
A viagem fora exaustiva; da manhã à madrugada, encontros, palestras, visitas, deslocamentos, banquetes. Em Moscou o programa, distribuído por vários dias, permitia-lhe um pouco de descanso; em outros lugares, as organizações regionais não lhe davam trégua. Devia passar quarenta e oito horas em Samarcanda: “Um dia para os programas oficiais, um dia apenas”, exigiu ele. Esse capricho causou surpresa; a beleza é a beleza, mesmo que sejamos quarenta a contemplá-la; atribuíram a exigência ao seu individualismo burguês, mas, enfim, prometeram curvar-se a ela. No último momento, a União dos Escritores de Tacháent limitou a excursão a um único dia: havia fábricas a visitar, livros para crianças a examinar. “Mas vamos deixá-lo sozinho”, prometeu o intérprete. Um arqueólogo e alguns notáveis escoltaram Sartre através da cidade; o carro parava diante dos palácios e das mesquitas, vestígios soberbos do reinado de Tamerlão; todos desciam, o arqueólogo explicava. Depois o intérprete estendia os braços e expulsava todo mundo: “E agora, Jean-Paul Sartre deseja ficar sozinho.” Retiravam-se, e Sartre ficava enregelado enquanto esperava reunir-se a eles de novo.
A maior provação eram os momentos de lazer, aliás muito alegres: festas e bebidas. Sartre tivera que repetir várias vezes as proezas feitas na datcha de Simonov. Em Tacháent, na noite de sua partida, um engenheiro robusto como três armários o desafiara na vodca; no aeroporto, aonde o acompanhou, o engenheiro desabou, para grande satisfação de Sartre, que conseguiu chegar até o seu assento, onde dormiu um sono de chumbo. Ao despertar, estava tão estourado que pediu ao intérprete que lhe conseguisse, em Moscou, um dia de descanso; mal desceu do avião, ouviu no saguão a chamada de um alto-falante: Jean-Paul Sartre… Era Simonov, que, por telefone, convidava-o para almoçar. Se soubesse falar russo, teria pedido que o almoço fosse transferido para o dia seguinte, com o que Simonov teria concordado de boa vontade: nenhum de seus “ajudantes”131 — além do intérprete, um membro da União de Escritores o acompanhava em seus deslocamentos — quis encarregar-se de propor a Simonov essa mudança. O almoço aconteceu naquele mesmo dia; foi generosamente regado e no fim Simonov estendeu a Sartre um chifre de dimensão impressionante, cheio de vinho: “Cheio ou vazio, você vai levá-lo”; e colocou-o nas mãos de Sartre; impossível pousá-lo sem esvaziá-lo; Sartre fez o esforço. Ao sair da mesa, foi passear sozinho às margens do Moscova, e seu coração batia contra as costelas. Bateu tão forte durante toda a noite que, na manhã seguinte, ele sentiu-se incapaz de ir ao encontro, como estava previsto, de um grupo de filósofos: “Mas o que é que o senhor tem?”, disse o intérprete. Tomou-lhe o pulso e precipitou-se para fora do quarto, para chamar um médico, que logo mandou Sartre para o hospital. Trataram dele; dormira, repousara e se julgara curado, mas na verdade não estava. Reuni alguns amigos íntimos e ele teve que fazer um grande esforço para contar suas histórias. Deu uma entrevista a Libération: falou apressadamente e, quando lhe propuseram rever o texto, esquivou-se. Na Itália, onde foi descansar com Michelle, começou uma autobiografia; mas escreveu-me dizendo que não conseguia juntar duas ideias. Ao menos dormia muito e via pessoas que lhe interessavam: fora muito amigavelmente acolhido pelos comunistas italianos. Jantou ao ar livre, na praça do Trastevere, com Togliatti; o músico contratado pelo restaurante mostrou orgulhosamente a Togliatti sua carteira do PCI e cantou em sua honra velhas canções romanas; reuniu-se uma multidão, calorosa e solícita; mas alguns americanos assobiaram; os italianos zangaram-se: para evitar tumulto, tiveram que se retirar.
Enquanto isso, eu viajei para a Espanha com Lanzmann; fazia anos que muitos antifranquistas passeavam no país, sem escrúpulos: abafei os meus. A não ser em Tossa, que se tornara feiamente turística, encontrei poucas mudanças; a miséria aumentara ainda mais; em certos recantos de Barcelona, e quase por toda parte em Tarragona, as ruas eram esgotos, povoadas de crianças famintas, mendigos, deficientes, prostitutas subnutridas. Sentia-se que Franco cuidava da capital; os bairros sujos que eu vira em 1945 tinham sido arrasados; mas onde teriam alojado os habitantes? Os prédios que haviam brotado naquelas paragens abrigavam funcionários abastados.
Enfim, estávamos informados sobre a situação do país. Se mesmo assim tínhamos vindo, era porque ele conservava atrativos para nós: seu passado, seu solo, seu povo. Visitei de novo o museu do Prado: agora, preferia Goya e também Velásquez a El Greco. Em Ávila, no Escurial, nas cigarales de Toledo, em Sevilha, em Granada, reencontrei minhas alegrias de outrora.
Lanzmann e eu gostávamos de ter conhecimento e de compreender as coisas, mas apreciávamos também a emoção fugaz das aparições: um castelo vermelho, erguido sobre uma colina, à beira de um lago; do alto de um desfiladeiro, um vale cavado para o infinito sob seus véus de bruma; uma luz que de repente fura uma nuvem e banha obliquamente os campos da Velha Castela; o mar, ao longe. E Lanzmann tornou sua a minha velha mania de vasculhar minuciosamente as regiões por onde passávamos: montanhas cor de coral, planaltos cinzentos e túmidos, planícies cobertas de colmo abrasadas pelo crepúsculo, e aquela costa ab-rupta e dilacerada, cujos esplendores e cujo terror Dali tão bem desenhou. O calor não nos intimidava: um vento ardente varria a Andaluzia das estepes quando visitamos, sob um calor de quarenta graus, suas aldeias trogloditas. Repousávamos em praias ou em angras solitárias, banhando-nos longamente no mar e ao sol. À noite, nas aldeias, olhávamos as moças que desfilavam e riam em seus vestidos claros.
Em Lérida, havia festa; meninazinhas fantasiadas de andaluzas — longas saias de babados, leques e mantilhas —, lábios, faces e cílios pintados, pavoneavam-se entre stands de tiro, barracas de jogos, picadeiros, cafés ao ar livre; estouravam bombas em todas as esquinas. Lanzmann viu pela primeira vez uma tourada que, embora fraca, causou-Ihe emoção. E depois subimos para o norte, que eu não conhecia; vi os vitrais de Leão, o museu de Valladolid, os pequenos portos bascos: Guernica. Enfim, San Sebastián, de onde voltamos direto.
Eu não discernia muito bem os sentimentos que o povo da Espanha me inspirava naquele momento. A derrota é uma desgraça; impossível sobreviver a ela sem pactuar com aquilo que detestamos. Incomodava-me uma paciência que a esperança não iluminava mais. Quando passávamos de carro, os trabalhadores nas estradas não deveriam sorrir-nos; esses camponeses, que nunca levantavam um dedo para nos deter, sabiam, no entanto, que os ricos não eram seus amigos; ficavam estupefatos quando lhes oferecíamos carona; uma velha chegou a pensar que se tratava de um sequestro. Certa tarde, demos carona a um homem muito idoso, que levava um grande saco: “Onde vai?”, “Ora, à capital!”, disse ele, com um gesto nobre; falava de Badajoz, a setenta quilômetros: “É longe!” “Pois é! Eu teria andado a noite inteira.” Em Sevilha, nos bares da Alameda, as pequenas prostitutas deveriam ter-nos olhado hostilmente; mas não. Uma delas, bem jovem, instalou-se na nossa mesa e me suplicava: “Leve-me para Paris; sei lavar e passar bem, trabalho duro, cuidarei de vocês…”
Uma conversa esclareceu-me. Em Granada, quando jantávamos no hotel Alhambra, Lanzmann, irritado com o maître, que o impedia de tirar o casaco, fez um ataque contra os militares e os padres que governavam o país; o homem começou a rir: também não gostava deles. Durante a Guerra Civil, trabalhara no hotel de Valência onde se encontravam Malraux e Ehrenburg. Evocou algumas lembranças, depois sua voz endureceu: “Vocês nos encorajaram a lutar; depois nos abandonaram; e quem pagou? Nós. Um milhão de mortos por toda parte nas estradas, nas praças, mortos. Não recomeçaremos, nunca mais, por preço algum.” Sim; esses homens tranquilos haviam arriscado suas vidas por um outro futuro; eram os filhos, os irmãos daqueles que haviam morrido; a Inglaterra e a França eram tão responsáveis por sua resignação quanto a Alemanha e a Itália. Era preciso esperar que uma outra geração, menos esmagada pelas lembranças, reencontrasse a esperança e retomasse a luta.
Quando voltei a Paris, Mendès-France assinara os acordos com o Vietnã, fora a Túnis e negociara com os dirigentes tunisinos. Incitara a Câmara a votar contra a CED. Embora tivesse recusado o apoio dos comunistas, sua política era a que a esquerda desejava.
Sartre ainda não estava inteiramente recuperado quando, no fim de agosto, parti de carro com ele; na primeira noite, em seu quarto de Strasbourg, permaneceu um longo tempo sentado numa cadeira, com as mãos nos joelhos, os ombros curvados, o olhar fixo. Jantamos num restaurante da pequena França: “A literatura”, declarou-me, “é uma merda”; e durante toda a refeição exalou sua repulsa. A fadiga o tornava miserabilista; escrever exigia-lhe tal esforço que não encontrava mais nenhum sentido em fazê-lo. Atravessamos a Alsácia, a Floresta Negra, a Baviera. Quantas ruínas! Ulm estava aos pedaços. Nuremberg, em migalhas. Cruzes gamadas flutuavam em todas as janelas. Rothenburg, habilmente restaurada, transportou-nos para vinte anos antes: em 1934, andávamos sobre aquelas muralhas, recusando-nos a enfrentar a catástrofe iminente, incapazes — mesmo Sartre, que tinha a faculdade de imaginar a desgraça — de pressentir a enormidade dela. Nas ruas pintadas de Oberamergau, podia-se pensar que nada havia acontecido. Em Munique, reencontramos as cervejarias gigantes e a alegria bávara. Em 1948, em Berlim, a angústia dos habitantes extinguira meus rancores; mas detestei Munique, ruidosamente opulenta, onde se pavoneavam, alegres, os aproveitadores da derrota. Só guardei de lá uma lembrança divertida: certa manhã, no meio do rio quase seco, dois homens de cartola e casaca debatiam-se na água; com seus negros trajes de cerimônia, seu ar desvairado, seus esforços desordenados para chegar à margem, encarnavam o fantástico incongruente da Alemanha.
Em Salzburg, num hotel da velha cidade, que refletia todas as suas graças, Sartre recomeçou a trabalhar; reencontrava-se. Visitamos de novo os arredores, lagos e montanhas e, ao cabo de uma semana, partimos para Viena. Em consequência de contratos assinados por Nagel sem o consentimento de Sartre, estava sendo preparada ali a encenação de As mãos sujas; o Movimento da Paz preveniu-o: Sartre protestou e explicou-se, no decorrer de uma entrevista à imprensa. Enfim, vi os Bruegel do museu, o Danúbio, o Ring, o Prater e os velhos cafés, dos quais tanto me haviam falado; à noite, sentávamos às mesas de adegas medievais, no coração da cidade, ou em cabarés dos subúrbios, ao pé das colinas cobertas de vinhedos louros.
Eu tinha vontade de rever Praga; Sartre conseguiu vistos com facilidade; a ideia de atravessar a verdadeira cortina de ferro atiçava minha curiosidade; não se tratava de uma metáfora; a pequena estrada cheia de relva que nos conduziu a um pasto fronteiriço isolado esbarrava numa grade flanqueada por espessas e ameaçadoras redes de arame farpado; no alto de um mirante, uma sentinela andava de um lado para outro, displicentemente; buzinei: ela não se moveu; insisti; um soldado saiu do posto e examinou nossos passaportes, através das grades; fez sinal à sentinela, que remexeu nos bolsos e lhe jogou uma chave; abriu a grade como se empurrasse o portão de um parque privado.
Era domingo; não se viam carros; mas muita gente fazia piquenique nos declives, nos prados e sob os pinheiros. Eu rodava através de campos e aldeias, espantada por sentir de repente uma intimidade tão fácil com uma democracia popular. Em Praga, Sartre pediu em alemão a um passante o endereço do hotel que sabíamos ser reservado aos estrangeiros; telefonou ao poeta Nezval, que pareceu aliviado quando Sartre lhe disse para não se incomodar, pois sua mulher estava prestes a dar à luz. Pedimos dinheiro emprestado ao porteiro e caminhamos pela cidade, emocionados por reconhecer tudo — as avenidas, a ponte, os monumentos, mas também os cafés, os restaurantes — apesar de tudo estar mudado. (Fora diante dessa taberna, exatamente, que lêramos, por cima do ombro de alguém, o nome de Dollfuss e uma palavra que começava por M.) Havia anúncios luminosos, vitrinas cuidadas, uma multidão animada e muitas pessoas nos cafés, bastante parecidas com as de Viena. Perambulamos por muito tempo pelas ruas e pelas nossas recordações.
No dia seguinte, o gordo poeta Nezval — que gostava tanto de Paris que ficava sentado durante horas, de boina, no terraço do Bonaparte — mostrou-nos o petit coté, as igrejas, o cemitério judeu, o museu, antigas tabernas; alguns amigos o acompanhavam. Passamos diante de uma imensa estátua de Stalin; prevenindo qualquer comentário, uma jovem disse secamente: “Não, ela não nos agrada, em absoluto.” Vimos uma ópera, medíocre, e, em sessão privada, alguns filmes representados por marionetes; o mais divertido exortava os motoristas à sobriedade; era encantador o pequeno motociclista embriagado que ultrapassava os carros, os trens, e que se arrebentava ao querer ser mais rápido do que um avião em velocidade. Partimos cheios de presentes: livros de arte, discos, rendas e cristais. Uma única sombra, mas significativa; quando visitávamos uma biblioteca, um dos administradores ficou sozinho um instante conosco; murmurou, ab-ruptamente: “Coisas terríveis estão acontecendo aqui atualmente.”
Na volta, passamos sem dificuldade por uma alfândega banal; mas, do lado austríaco, um jovem soldado russo recusou-se a nos deixar passar: havíamos esquecido de pedir autorização para circular na zona soviética; enquanto ele telefonava ao seu comandante, um soldado austríaco entabulou uma conversa com Sartre: “Conheço bem Paris”, disse ele, amavelmente. “Estive lá em 1943.”
Lanzmann foi encontrar-nos em Viena. Eu nunca tivera essa experiência: esperar num aeroporto uma pessoa querida. É pungente o deserto do céu, seu silêncio, e esse murmúrio súbito, esse minúsculo pássaro que cresce, que se aproxima, que vira, que se afasta e que se precipita sobre nós. Entramos na Itália. Sugeri passar por Grossglokner, e Sartre se indignou: a estrada histórica era a do Brenner; enquanto a atravessávamos, ele evocou com eloquência a cavalgada de Maximiliano descendo da sombria Alemanha em direção ao sol romano e à coroa imperial. Em Verona e em Florença descansamos da Europa Central.
Sartre tomou o trem para Milão, onde passei uma breve temporada na casa da minha irmã. Voltei para a França com Lanzmann por Genova e pelo litoral. Parte dos presentes tchecos me havia sido roubada em Florença, onde eu os deixara, uma noite, no carro; restavam-me livros e discos que os fiscais da alfândega de Menton farejaram com má vontade; aquilo vinha de Praga, era suspeito. Expliquei: obras de arte, canções folclóricas. “Prove-o!”, responderam. Mostrei fotos que ilustravam uma das obras: “O senhor vê bem: são paisagens. Paisagens são coisa que não falta aqui”, disse um dos fiscais, designando com um gesto amplo a costa e o mar. Livros e discos foram confiscados.
***
A partir de 1.º de outubro, esperei de um dia para outro o lançamento de Os mandarins; desde a publicação de O segundo sexo, adquirira experiência: os mexericos me sujavam os tímpanos com antecedência. Eu pusera tanto de mim nesse livro, que às vezes meu rosto ardia à ideia de que pessoas indiferentes ou hostis iriam folheá-lo.
Quando subia com Lanzmann de Nice para Paris, entrei, por volta de meia-noite, num hotel de Grenoble; havia um exemplar do Paris-Presse sobre o balcão da recepção; abri-o e dei com um artigo de Kleber Haedens dedicado a Os mandarins. Para grande surpresa minha — pois não víamos o mundo pela mesma perspectiva —, ele falava bem do livro. Quando telefonei a Sartre, no dia seguinte, ele me contou que um artigo muito amável fora publicado nas Lettres Françaises: iria eu então ser bem-acolhida de todos os lados? No conjunto, sim. Contrariando minhas previsões, foram os críticos burgueses que acharam que o meu romance apresentava bons traços de anticomunismo, enquanto os comunistas viram nele, justamente, um testemunho de simpatia; quanto à esquerda não comunista, eu tinha tentado falar em nome dela. Apenas alguns socialistas e a extrema direita me atacaram com mau humor. Em um mês, foram vendidos quarenta mil exemplares.
“Falam em você para o Goncourt”, disse-me Jean Cau. Fiquei chocada: eu havia passado da idade. “Você faria muito mal em recusar”, disseram-me todos os meus amigos. Se ganhasse o prêmio, eu atingiria o grande público. E ganharia dinheiro. Não tinha necessidades prementes, à medida que partilhava do dinheiro de Sartre: mas gostaria de dar minha contribuição à nossa caixa conjunta. Além disso, chovia cada vez mais no meu quarto: o Goncourt me permitiria comprar um apartamento. Concordei: se me oferecessem o Goncourt, eu aceitaria.
A julgar pelo que transpirou das discussões preliminares, disseram-me que eu tinha grandes chances de ganhar. Como não queria tornar-me presa de jornalistas, transportei-me com Lanzmann, na véspera da deliberação final, para um alojamento que Suzanne Blum arranjara para mim. Esperei o veredicto junto ao rádio, com alguma emoção, pois me haviam encorajado a fazer projetos que eu não teria abandonado sem desprazer: ao meio-dia, soube que ganhara o prêmio. Festejamos o acontecimento “em família”, com um almoço na casa de Michelle, onde Sartre me deu um presente de circunstância: um livro de Billy sobre os Goncourt, que acabava de ser lançado; e, à noite, com um jantar com Olga, Bost, Scipion e Rolland. Eu prevenira o júri e Gaston Gallimard de que, caso eu fosse escolhida, não apareceria na praça Gaillon, nem na rua Sébastien-Bottin. Aos trinta e cinco anos, na minha inocência, teria achado divertido exibir-me; agora, isso me repugnava. Não tenho bastante cabotinismo, nem indiferença bastante para servir alegremente de assunto aos curiosos. Jornalistas, sentados nos degraus da escada, sitiaram em vão uma porta, por trás da qual miava um gato e que, na verdade, era a porta dos Bost. Dois ou três dias mais tarde, fotógrafos postaram-se no Café des Amis, para me esperar: saí pela clínica veterinária, cuja porta dava para uma outra rua. Concedi apenas uma única entrevista, ao Humanité-Dimanche: fazia questão de sublinhar que meu romance não era hostil aos comunistas e não tinha suscitado a inimizade deles.
“Se você aceitou o prêmio, deve entrar no jogo”, disseram-me algumas pessoas. Não vejo em que a decisão do júri podia criar-me deveres para com a tv, o rádio, a imprensa, nem por que ela me teria obrigado a sorrir para câmeras, a responder perguntas ociosas, a publicar coisas íntimas. “Os jornalistas fazem seu papel.” De acordo; nada tenho contra esses profissionais, entre os quais tenho até amigos íntimos; apenas não gosto dos jornais deles. Além disso, benéfica ou malévola, a notoriedade desfigura aqueles dos quais se apodera: na minha opinião, as relações que o escritor mantém com a verdade proíbem-no de se dobrar a esse tratamento; já basta que este lhe seja infligido à força.
Esse prêmio me valeu uma enorme correspondência. Há um bom número de leitores que compram automaticamente o Goncourt e aos quais nada tenho para agradar. Enviaram-me cartas coléricas, desoladas, indignadas, moralizantes, insultuosas. Destaco, entre muitas, esta pérola, de origem argentina, o que lhe embaça um pouco o horizonte: “Por que é preciso que, numa tal obra, as cenas de amor sejam descritas quase a maneira do Roman d’une femme de chambre ou de La Princesse de Clèves?” Pessoas mais ou menos ligadas a mim antigamente me felicitaram, como por uma promoção; isso me surpreendeu, mas tive o prazer de ver surgir no fundo do tempo certos fantasmas: alunos, colegas de estudo, um professor de inglês do Curso Désir. Rouen, Marseille, a Sorbonne e minha própria infância: de repente, o passado se reunia. Muitos desconhecidos também me escreveram, da França, da Polônia, da Alemanha, da Itália. A embaixada de Portugal me fez sentir sua desaprovação, mas estudantes de Lisboa e de Coimbra me agradeceram. Jovens malgaxes enviaram-me uma estatueta de madeira, comovidos pelo fato de eu ter falado da repressão de 1947. Acredito radicalmente demais na morte, para me preocupar com o que acontecerá depois; a partir do momento em que se realizou o sonho dos meus vinte anos — ser amada através dos meus livros132 —, nada estraga o meu prazer.
Meus únicos aborrecimentos vieram da lenda, propagada pelos críticos, segundo a qual eu teria escrito uma crônica exata; minhas invenções tornavam-se indiscrições, ou mesmo denúncias. Como os sonhos, os romances são muitas vezes premonitórios, porque fazem jogar possibilidades; assim, Camus e Sartre brigaram dois anos depois que comecei a contar os avatares e a ruptura de uma amizade. Muitas mulheres quiseram reconhecer sua história na de Paule. Essas coincidências acabaram por dar crédito às minhas fábulas. Camus ou Sartre teria dado o falso testemunho que atribuo a Henri?, perguntaram-me. Quando havia eu exercido a psicanálise? Num certo sentido, agradava-me que minhas narrativas convencessem; mas lamentava que me imputassem indelicadezas. Um personagem secundário, Sézenac, provocou um mal-entendido muito desagradável para mim. Por certos traumas, ele evocava Francis Vintenon, de quem falei, e cuja morte violenta e estranha era atribuída a um antigo colaboracionista; em Os mandarins, Sézenac era liquidado de maneira análoga, mas por um companheiro, pois eu o transformara num agente duplo, culpado de ter entregado judeus. Uma amiga de Vintenon me pediu uma entrevista: pensava que eu tivesse informações secretas sobre ele; identificava o assassino imaginário com um de seus amigos. Deixou-me sem que eu tivesse conseguido convencê-la. Temo que meu livro tenha gerado muitos outros embates, de tanto que as pessoas se obstinaram em tomá-lo como um fiel decalque da realidade.
***
Bombas, atentados: os nacionalistas marroquinos não abandonariam a luta antes do retorno do sultão. Quando estourou a revolta nos Auras, pensei que pelo menos no norte da África o colonialismo não duraria mais muito tempo. Mendès-France enviava reforços para a Argélia; depois dele, Edgar Faure recusava-se a negociar; a polícia da Argélia prendia e torturava,133 Soustelle, nomeado governador-geral, convertia-se à “integração”; o exército jurava solenemente jamais abandonar a Argélia. O movimento poujadista,134 nascido 18 meses antes, crescia vertiginosamente. Mas a insurreição que acabara de se desencadear era irreversível, eu tinha certeza, por causa do precedente indochinês e da marcha do mundo, em geral; a conferência de Bandoeng confirmou essa convicção; ela anunciava a iminente descolonização de todo o planeta.
Vi mudar a fisionomia da minha rua. Africanos do norte, de casaco de couro, de aspecto cuidado, iam frequentemente ao Café des Amis; o álcool foi proibido; através das vidraças eu via os clientes instalados diante de copos de leite. Não havia mais tumultos à noite. Essa disciplina era imposta por militantes da FLN, cuja influência tornara-se preponderante sobre o proletariado argelino fixado na França. A influência do MNA135 declinara muito. Na Argélia, ele representava uma dissidência nociva, afirmavam Francis e Colette Jeanson em L’Algerie hors la loi; a esquerda francesa, em seu conjunto, hesitava entre a FLN e o MNA; em nenhum ponto, aliás, sua posição era nítida; desejava uma solução “liberal” para o conflito: a palavra podia ter muitos sentidos. De acordo com Jeanson, Sartre e a Temps Modernes reivindicavam a independência para o povo argelino, e estimavam que este se encarnava na FLN.
Os acontecimentos do norte da África e a queda de Mendès acirraram a oposição entre os franceses que desejavam mudanças e aqueles que tinham interesse no status quo. No primeiro campo, houve reagrupamentos. O Express reuniu em torno de Mendès a Nova Esquerda, apoiada também por Malraux e Mauriac. Mendès conseguira que fossem votados pela Assembleia, em 31 de dezembro, os acordos de Paris que ressuscitavam a Wehrmacht; ele se defendia da acusação de querer “abandonar” a Argélia; seu clã propunha acomodar o capitalismo e o colonialismo numa perspectiva tecnocrática: tratava-se na verdade de uma direita um tanto amenizada. A Nova Esquerda, cuja ideia fora lançada um ano antes por Bourdet, era mais digna do seu nome.
Pareceu-nos necessário distinguir na “esquerda” nossos verdadeiros aliados e nossos adversários. A equipe da Temps Modernes tratou de elucidar o sentido desse rótulo desvirtuado. Lanzmann encarregou-se de atacar de frente o problema, escrevendo um artigo sobre “o homem de esquerda”. Outros organizaram inquéritos ou estudaram pontos específicos. Quanto a mim, abordei a questão pelo avesso, tentando definir as ideias defendidas pela direita hoje. Sentira prazer em destrinchar os mitos tecidos em torno da mulher; também neste caso tratava-se de pôr a nu as verdades práticas — defesa dos privilégios pelos privilegiados — que dissimulam sua crueza por trás de sistemas e conceitos nebulosos; eu já lera muito, já engolira muitas tolices; arrecadei outras. Entediava-me, mas com satisfação, pois essa fumaça indicava a derrota ideológica dos privilegiados. Economistas aprimoravam, para seu uso, teorias mais hábeis que as de seus pais; mas, para justificar seu combate, não sabiam mais que tática ou ideal invocar. Seu pensamento, concluí, não é mais que um contrapensamento. O futuro me deu razão. Pela boca de Kennedy e de Franco, de Salan e de Malraux, o “mundo livre” não invoca outra razão de ser nem outra regra, a não ser a seguinte: derrotar o comunismo; é incapaz de propor uma contrapartida positiva. É lamentável ver o governo dos EUA procurar desesperadamente temas de propaganda: ele não pode esconder do mundo que os únicos valores defendidos pela América são os interesses americanos. Até mesmo a palavra “cultura” tornou-se inutilizável: contra Spender e Denis de Rougemont, os cientistas russos poderiam correr o risco de reivindicá-la. Certamente haverá sempre alguns Thierry Maulnier para agitar, contra o futuro, palavras trôpegas: essas missões contemporizadoras nunca contemporizam nada.
Em junho, em Aventures de la dialectique, Merleau-Ponty, a quem a atitude política de Sartre irritava, reconstruiu seu pensamento da maneira mais extravagante. Ligado na época à Nova Esquerda, ele a servia desmoralizando o “ultrabolchevismo” de Sartre; e assim satisfazia a mais extrema direita: escolhendo com segurança uma das frases mais infelizes de Merleau-Ponty — onde ele confunde necessidade e liberdade —, Jacques Laurent declarou que com aquelas poucas palavras ele liquidara o sartrismo. As ideias de Sartre já eram suficientemente mal compreendidas para que me parecesse deplorável que as desvirtuassem ainda mais: com tanta frequência esqueciam que em O Ser e o Nada o homem não é um ponto de vista abstrato, mas uma presença concreta; tantas vezes se reduzia a relação com outrem a um único olhar! Gurvitch, em um de seus cursos, recentemente pretendera que o outro, em Sartre, é um “importuno”. Quero restabelecer a verdade; Sartre aplicava em vários campos o método dialético; deixava a porta aberta a uma teoria geral da razão dialética; sua filosofia não era uma filosofia do sujeito etc. As frases dele que eu citava contradiziam, termo a termo, as alegações de Merleau-Ponty.
Disseram que Sartre era quem deveria responder. Nada o obrigava a isso; em compensação, qualquer sartriano tinha o direito de defender uma filosofia que assumira como sua. Reprovaram-me também pela virulência da minha resposta: mas o ataque de Merleau-Ponty era, no fundo, de grande agressividade. Quanto a ele, não ficou com raiva de mim, ou pelo menos não por muito tempo; podia compreender as cóleras intelectuais. Aliás, apesar de termos um pelo outro uma grande amizade, nossas discussões eram muitas vezes calorosas; eu me exaltava e ele sorria.
De um modo geral, sou muito categórica nos meus ensaios, disseram-me algumas pessoas: um tom mais comedido convenceria mais. Não acredito. Se quisermos que certos invólucros estourem, não devemos acariciá-los, mas meter as unhas neles. Não me interessa recorrer a apelos do coração quando julgo ter a verdade a meu favor. Nos meus romances, entretanto, apego-me a matizes, a ambiguidades. É que meu objetivo é então diferente. A existência — outros o disseram e eu já o repeti — não se reduz a ideias, não se deixa enunciar: só podemos evocá-la através de um objeto imaginário; é preciso, então, apreender de novo o seu jorro, suas reviravoltas, suas contradições. Meus ensaios refletem minhas opções práticas e minhas certezas intelectuais; meus romances, o assombro no qual me lança, no conjunto e em seus detalhes, nossa condição humana. Eles correspondem a duas ordens de experiências que não poderiam ser comunicadas da mesma maneira. Umas e outras têm para mim a mesma importância e autenticidade; não me reconheço menos em O segundo sexo do que em Os mandarins; e inversamente. Se me expressei em dois registros, foi porque essa diversidade me era necessária.
No inverno, Lanzmann e eu descemos para Marseille; apesar das devastações e da feiura das reconstruções, eu ainda amava a cidade, e ele a amou também; era um prazer abrir os olhos toda manhã sobre a flotilha do Vieux Port e ver, à noite, suas águas calmas se tornarem douradas. Trabalhávamos em nossos artigos, passeávamos, conversávamos e líamos assiduamente os jornais. Certa manhã, uma manchete na primeira página informou-nos que Bulganin substituíra Malenkov, demissionário, na presidência do governo soviético; seu braço direito seria Khruchtchev. Novamente a indústria pesada tinha prioridade sobre a indústria leve. Na Hungria, Rakosi retomou o poder de Nagy. Mas não se voltou ao stalinismo. Começou-se a falar em coexistência. Em junho, Bulganin e Khruchtchev visitaram Tito.
Isso não impedia os comunistas profissionais de continuarem na França sua frutífera carreira. Inspiraram a Sartre uma farsa, Nékrassov. Não estava ainda terminada, quando Jean Meyer começou a encená-la, com Vitold no papel de Valéra, o falso Nékrassov; Sartre tinha dificuldades em terminá-la, pois não queria fazer do seu herói um salafrário declarado, nem convertê-lo. Depois de alguns ensaios, trouxe o texto de um novo quadro, onde pintava com um lirismo bufo o grande medo burguês. Enquanto o clube dos futuros fuzilados dava uma festa sombria na casa da Mme Bounoumi, grevistas desfilavam sob suas janelas e o catastrofismo nebuloso dos convidados transformava-se em verdadeiro medo. Simone Berriau empalideceu: “Vão quebrar minhas poltronas.” Meyer, assustado, protestava: “Está demorando demais!” Valéra, fugindo da polícia, iria saltar por uma janela e cair no meio dos grevistas que mais tarde lhe abriam os olhos. Reconsiderando a cena, esse otimismo jadnoviano desagradou a Sartre: ele suprimiu o motim; imediatamente a cena ficou mais suave. Estava também mais curta; entretanto, uma vez terminada, a peça durava ainda mais do que convinha: sacrificou-se o prólogo. Meyer montou Nékrassov sem invenção nem alegria, e Sartre censurou-se depois por não ter centrado a intriga mais no jornal do que em Valéra. Isso não impede que, representada por excelentes atores, fosse uma comédia muito engraçada; os terrores, os delírios, as fantasias, os deslumbramentos, os slogans, as fabulações dos anticomunistas — entre outras, a lenda da “maleta de pólvora” contada certa vez por Malraux — ele tirara de tudo isso efeitos irresistíveis. Na noite do ensaio geral, os críticos e a alta sociedade presentes na sala mostraram-se hostis: não puderam impedir-se de rir, embora declarassem mais tarde que haviam bocejado. Mas a imprensa não perdoou Sartre por ter ousado zombar dela; quis vingar-se. Françoise Giroud conseguiu ser convidada para o ensaio dos figurinos e antecipou-se à crítica teatral do Express, Renée Saurel, que pediu demissão; ela desancou avidamente Nékrassov. Todos ou quase todos os jornais a imitaram. Uma peça pode desafiar os críticos quando tem os favores do público; é o caso do teatro de Anouilh: ele agrada aos ricos. Mas Nékrassov investia justamente contra as pessoas que garantem as boas receitas; os que compareceram divertiram-se; mas impuseram-se o dever de dizer a seus amigos que se haviam entediado. A burguesia digere, sob pretexto de cultura, muitas afrontas: aquele espinho ficara-lhe na garganta. Nékrassov não passou de sessenta representações.
Meus artigos daquele ano tomaram-me tempo, por causa das leituras que exigiram de mim. Mesmo assim, eu tinha lazeres. Passeava com Lanzmann, saía, via amigos. Conhecera seu irmão Jacques, de volta da América. Ele contava, gaguejando, aventuras engraçadas, nas quais se misturavam seus sonhos e a realidade. Seu primeiro livro, La Glace est rompue, pintava a Islândia com extravagância e exatidão. Lamentamos que o embaixador se sentisse ofendido com alguns fragmentos publicados na Temps Modernes. Lanzmann também tinha uma irmã, Évelyne Rey, que pertencia ao elenco do Centro do Oeste; ela representava quase sempre na província; mas o Centro montou em Paris As três irmãs, e eu a vi, então, pela primeira vez. Pouco depois, retomou o papel de Estelle, em Entre quatro paredes, no teatro do Athénee. Aos vinte e dois anos, sem dinheiro nem experiência, era ruiva, gorda, maquiava-se como uma vamp e usava vestidos de veludo preto. Paris logo lhe moldou o gosto. Em um ano eu a vi loura, magra, juvenil e elegante. E, o que é raro nas mulheres, era espirituosa; e tão bonita, que sua inteligência espantava. Saíamos muito juntos, e eu gostava muito dela.
Eu ia ao cinema com Lanzmann. O sal da terra era uma história pungente, contada com rudeza. Apreciei a divagação de Buñuel sobre Robinson Crusoé e a obra-prima de Fellini, Os boas-vidas. Sartre me transmitira outrora o gosto pelos westerns e eu o conservara. Colocava acima de todos os outros O tesouro de Sierra Madre, rodado por Huston com base no romance de Traven, esse misterioso autor de best-sellers que vivia no México, e cuja identidade ninguém conhecia. Mas também Gary Cooper, em Matar ou morrer, Marilyn Monroe em O rio das almas perdidas, os tumultos de Os brutos também amam haviam me emocionado. Nesse ano, em Johnny Guitar, reencontrei Joan Crawford, mais bela do que nunca, no brilho dos seus cinquenta anos. Entretanto, quase sempre os americanos estragavam esse tipo de filme, sobrecarregando-os com uma “mensagem” política, sempre a mesma. Um dos heróis, homem, mulher ou criança, por uma espécie de neurose, repelia a violência; durante uma hora e meia, por vezes duas, a maldade de seus inimigos não conseguia convertê-lo: de repente, no último minuto, para salvar seu amigo, seu noivo, seu pai, ele matava. O espectador voltava para casa convencido — esperava-se — da necessidade da guerra preventiva.
Fui ver Porgy and Bess, apresentado de maneira deslumbrante por uma companhia americana, e As feiticeiras de Salem, muito bem montada por Rouleau. Ping-pong, da qual participavam alguns amigos, pareceu-me a melhor peça de Adamov. Não sei por que eu perdera, em 1954, Mãe Coragem, que apresentara Brecht ao público francês; ele me foi revelado,136 em junho de 1955, pelo Círculo de giz caucasiano, que o Berliner Ensemble apresentou, no teatro Sarah-Bernhardt.
Afora aqueles que me informavam sobre meu tempo, poucos livros me prendiam. Houve O belo verão, de Pavese, que me trouxe tudo aquilo que se pode pedir a uma obra romanesca: a recriação de um mundo que envolve o meu e que lhe pertence, que me desambienta e me ilumina, que se impõe a mim para sempre com a evidência de uma experiência que eu teria vivido. Em Fourbis, de Leiris, reencontrei o que me havia atraído em Bifur, essas volutas de palavras que se enrolam nelas mesmas e se desenrolam até o infinito, penetrando nos abismos do passado e do coração, e, no entanto, cintilando em pleno dia, remetendo de imagem em imagem a um segredo que se desvanece no momento em que se anuncia, não tendo a busca outra saída senão ela mesma, no torvelinho de seus mil espelhos.
No fim da primavera, foi publicado Ravages, de Violette Leduc: um romance crispado e violento, no qual a autora lança ao público sua experiência, sem lhe oferecer qualquer cumplicidade; foi por isso que o livro não chocou, apenas: desagradou. E, em primeiro lugar, aos leitores da casa Gallimard. A primeira parte contava sem rodeios — embora sem obscenidade — os amores de duas colegiais: exigiram sua supressão. Julgaram impublicáveis certas cenas que não ultrapassavam em audácia muitas outras que foram impressas: mas o objeto erótico era o homem, e não a mulher, e eles se sentiram ultrajados. Assim mutilada, a narrativa perdia realce, sem ganhar as graças que Violette Leduc recusara deliberadamente. No entanto, ela achou que o livro tivera um bom início. Passeávamos ao sol, nas aldeias de Bagatelle, entre canteiros de tulipas e jacintos, e, segundo os números fornecidos pela Gallimard, sonhávamos com um sucesso: os números eram falsos. Alguns críticos gostaram de Ravages e tornaram pública a sua opinião; o público não o comprou. “Sou um deserto que monologa”, escreveu-me, um dia, Violette Leduc. Em geral, ela é traída pela literatura que evoca a aridez: o leitor passeia à vontade por entre paisagens matizadas; quanto a ela, sob o brilho das palavras, conservava seu deserto nu, eriçado de seixos e espinhos; era o seu achado: foi o seu fracasso. E esse fracasso lançou-a num grande abatimento.
Eu tinha um grande desejo de ver a URSS; mas desejava mais ainda conhecer a China; lera a reportagem de Belden e todos os livros, ainda pouco numerosos, publicados em francês sobre a revolução chinesa; sonháramos diante das fotografias de Cartier-Bresson. Todos os viajantes que voltavam de Pequim falavam na China em tom deslumbrado. Quando Sartre me disse que tínhamos sido convidados a visitar o país, não ousei acreditar. Em junho, ao assistir à extraordinária representação da Ópera de Pequim, eu ainda duvidava.
Entrementes, fiz uma viagem mais modesta, mas importante para mim; o congresso do Movimento da Paz ia realizar-se em Helsinque; minha evolução política me levara a desejar tomar parte nele. Acompanhei Sartre. Paramos algumas horas em Estocolmo; depois sobrevoamos um mar de um verde tão frio, que parecia sólido: gelo em fusão. Eu percebia uma dispersão de ilhotas abandonadas, ainda mais solitárias quando uma casa se elevava na ponta; multiplicaram-se, e eu já não sabia se sobrevoava águas semeadas de terras, ou terras furadas pelas águas; o continente triunfou: pinheiros, lagos tão secretos como recifes. Meu olhar violava e unia esses lugares inacessíveis, invisíveis, fechados e separados, emprestando a esse pedaço de planeta uma fisionomia que só existia para mim, e que no entanto era bem real. Reencontrei a emoção da minha infância, quando meus olhos recriavam o mundo e essa arcaica tristeza: em um instante, para quem quer que fosse, aquilo não existiria mais.
Experimentei em Helsinque o que Sartre sentira em Viena. No vasto saguão, decorado de bandeirolas e bandeiras, todos, ou quase todos, os países estavam presentes; os membros do Bureau tinham assento no anfiteatro; os outros congressistas sentavam-se diante de carteiras munidas de fones, ou então andavam e cochichavam nos corredores. Muitos tipos de trajes: hindus, árabes, padres, popes. Era emocionante ver aquelas pessoas atraídas por uma mesma esperança, vindas muitas vezes com grandes riscos e perigos, de todos os cantos do mundo. Falei com estudantes americanos, vindos clandestinamente a Helsinque, correndo o risco de ter seu passaporte confiscado. Sartre me apresentou a Maria Rosa Oliver, uma bela argentina, paralítica, que se deslocava pelo mundo inteiro em sua cadeira de rodas: tivera que passar pelo Chile para chegar à Finlândia. Conheci Nicolás Guillen, o poeta cubano, e Jorge Amado, o escritor brasileiro cujos romances eu apreciava. Revi Anna Seghers e seus olhos azuis. Durante um jantar, Lukács travou com Sartre uma discussão sobre a liberdade, mais amena que as cartas trocadas alguns anos antes, mas pouco proveitosa: Sartre ouviu-o polidamente, enquanto expunha que o homem era condicionado por sua época; ainda não terminara quando se abriu a sessão da tarde. Jantei com Surkov e Fedin; bebendo vinho da Geórgia, no limiar de uma noite indecisa, escutando sob o céu pálido o murmúrio das árvores, eu me lembrava da curiosidade um tanto triste com a qual, quatro anos antes, havíamos visto, acima do cabo norte, os arames farpados russos e as sentinelas estreladas; para nós, a cortina de ferro fundira-se: não mais interdições, não mais exílio; o mundo socialista fazia parte do nosso universo.
Encontrei várias vezes Ehrenburg. Lembrava-me dele, no terraço do Dôme, antes da guerra, hirsuto, atarracado. Hoje, estava vestido com uma displicente audácia, que lembrava o antigo Montparnasse: terno de tweed verde-pálido, camisa laranja, gravata de lã; mas o corpo afinara, e, sob os cabelos brancos e cuidados, o rosto alongara-se. Sua voz era muito agradável, e o francês, sem mácula. O que me incomodou nele foi sua segurança: ele tinha consciência de ser o embaixador cultural do país que tem nas mãos o futuro do mundo; um bom comunista não duvida de possuir a verdade: não era de espantar que Ehrenburg falasse ex cathedra. Seu charme, ao mesmo tempo volúvel e agudo, atenuava seu dogmatismo. Censurou Sartre, num tom de amizade quase de avô, por certos detalhes da entrevista que este dera ao Libération sobre a URSS. Pediu-lhe insistentemente que, quando tomasse a palavra, não atacasse com demasiado ardor os EUA; a hora era de acomodações: ele tivera a intenção de recomendar a uma revista certos trechos de L’Amerique au jour le jour, mas agora essa publicação não lhe parecia mais oportuna. Falou-me de Os mandarins; em Moscou, todos os intelectuais que sabiam francês o haviam lido e discutido com simpatia, embora a história de amor lhes parecesse supérflua. “Entretanto”, acrescentou, “não podemos pensar em traduzi-lo agora”. Deu-me duas razões: em primeiro lugar, o pudor literário, tradicional na Rússia; e depois, as discussões sobre os campos não teriam incomodado ninguém alguns anos antes; teriam pensado, sorrindo: “Até mesmo os simpatizantes caem na esparrela do anticomunismo!” Mas agora sabia-se: a volta dos deportados colocava difíceis problemas; o público não suportaria que se pusesse o dedo nessa chaga. Ele contou histórias curiosas sobre Stalin, entre outras a que se segue. Stalin conversava calmamente com escritores: “Há duas maneiras de ser um grande escritor: pintar afrescos grandiosos e trágicos, como Shakespeare. Ou então descrever com precisão e profundidade os mínimos detalhes da vida, como Tchekhov.” Ehrenburg fazia um considerável esforço para “degelar” a literatura soviética; tentava, em sua revista, multiplicar os contatos com o Ocidente; protegia a pintura não oficial. Dotado de inteligência versátil, tendo o gosto formado pelo que outrora se chamava “vanguarda”, aplicava-se em conciliar eficazmente esse liberalismo com a ortodoxia soviética; a tarefa nem sempre fora sem perigo.
Passeei, sozinha ou com Sartre, pela cidade feia, mas fustigada por um mar verde, barrado de escolhos e rochedos. À sua porta havia um imenso parque plantado de bétulas e pinheiros; ali jantamos, certa noite, em mesinhas, num grande pavilhão envidraçado, e eu tinha prazer em conversar com uns e outros. Vercors e sua mulher me falaram de Pequim, do mercado coberto, do palácio imperial, e eu me dizia: “Daqui a três meses!” Fomos dar uma volta nas alamedas, com Dominique Desanti, Catherine Varlin e Guillen, que chegara no fim da refeição, morrendo de fome; às onze da noite ainda estava claro, era uma noite de festa, e cruzávamos, sob os pinheiros, com bandos de finlandeses que iam cantando celebrar um de seus heróis e ver a queima de fogos de artifício. Quando voltamos a Helsinque, Guillen sonhava com cachorros-quentes; mas não havia sequer um bar aberto, nem mesmo um armazém, nem ambulantes: por toda parte o silêncio; o bar do hotel estava fechado; quisemos comprar uma garrafa de vinho para beber no meu quarto: “É meia-noite e dois”, disse-nos severamente um empregado. Contentamo-nos com água natural. Guillen protestava contra o puritanismo nórdico. Outra noite, como Sartre estava retido numa comissão, subi para o bar do hotel, no 15.º andar. Por muito tempo, diante de um copo de uísque, contemplei o sol suspenso na linha do horizonte, a costa e os recifes, batidos por uma água revolta, cuja espuma pouco a pouco fundia-se na noite. Era belo e eu estava feliz. O que Ehrenburg me dissera de Os mandarins me agradara. Os estudantes americanos previam grande sucesso do livro nos EUA; eu estava com sorte: a calmaria internacional fora útil a esse livro, que a guerra fria, enquanto eu o escrevia, fadava ao fracasso. Depois de anos lutando contra a corrente, sentia-me de novo sustentada pela história; e tinha vontade de misturar-me mais a ela. O exemplo dos homens e das mulheres com os quais eu convivia estimulava-me. Durante três anos eu concedera muito à minha vida privada. Não me arrependia de nada. Mas velhas palavras de ordem despertavam em mim: servir a alguma coisa.
As sessões do Congresso não tinham interesse; havia oradores demais: não tinham vindo do fim do mundo para calar-se. O verdadeiro trabalho se fazia em comissões. A delegação argelina quis entender-se com a delegação francesa; Bumendjel presidia-a. Eles nos expuseram a situação de seu país. Lembraram que, poucos dias antes, a insurreição entrara em nova fase; ganhava o país inteiro; os cento e vinte mil soldados franceses que no momento se encontravam em território argelino seriam impotentes para contê-la. Nós mesmos, dizia ele, mal conseguimos controlá-la: amanhã não a controlaremos mais. Exortaram os franceses a quebrarem imediatamente o círculo infernal repressão-rebelião: “Negociem conosco!” Vallon e Capitant sorriam: “O problema é econômico: se fizéssemos as reformas necessárias, suas reivindicações políticas não teriam mais razão de ser.” Os argelinos balançavam a cabeça: “Realizaremos nós mesmos as reformas. Nosso povo quer a liberdade.” Conseguiram algum apoio entre os franceses. Sartre não interveio, por não conhecer suficientemente a questão, mas sabia que nenhuma reforma econômica válida podia ser realizada no quadro do colonialismo.
O círculo ainda não fora quebrado quando voltamos a Paris. Um deputado do MRP,137 o padre Gau, denunciou à Assembleia os métodos empregados na Argélia pela polícia, dignos da Gestapo. Ouviram-no distraidamente,138 e pouco mais tarde decretou-se estado de alerta. O marechal Juin criou um Comitê decidido a manter a Argélia como colônia francesa a qualquer preço. Por toda parte, o colonialismo era solapado: volta triunfal de Burguiba a Túnis, assassinato de Lemaigre-Dubreuilh no Marrocos, levantes nos Camarões. Mas essa evidência não atingia aqueles que tinham interesse em ignorá-la.
***
Voltei à Espanha com Lanzmann. Estávamos decididos a assistir a touradas. Nesses tempos em que as palavras custam tão pouco, aprecio essas provas nas quais o homem empenha seu corpo, num corpo a corpo. Com a condição, é claro, de que o faça por livre e espontânea vontade. Na nossa sociedade, a vontade dos explorados nunca é livre; e os vícios do capitalismo repercutem de mil maneiras, tanto no ringue como na arena. Feita essa ressalva — ela é importante —, julgo sem fundamento os ataques dirigidos, em nome da moral, contra o boxe ou a tauromaquia. Os moralistas burgueses são puros espíritos, ou quase; de seu corpo, ignoram as necessidades, as fadigas, os recursos, os limites, a força, a fragilidade; só o reconhecem sob a figura do sexo ou da morte: essas palavras surgem logo de suas penas quando interpretam um acontecimento em que o corpo se empenha até o sangue, sem intermediário mecânico, em sua presença bruta. Se clamam contra o barbarismo e o sadismo, é porque a identificação de um homem com seu corpo os escandaliza. Atribuem instintos “baixos” e “turvos” à multidão que a aceita naturalmente, porque tal identificação responde à sua experiência íntima. Esquecem-se de que festas tradicionais não poderiam ser explicadas por perversões individuais; quanto à morte, está menos presente numa arena do que num autódromo. Os partidários da tourada geralmente me aborrecem tanto quanto seus adversários, porque retomam os mesmos mitos, exaltando-os, em vez de se indignarem contra eles. Esses mitos não existiam nas comunidades camponesas onde nasceu a tauromaquia; foram cultivados quando a aristocracia rural e sua clientela se apoderaram dela, em proveito próprio. Se são afastados, a despeito dos falbalás, das cerimônias, de toda uma literatura, a tourada conserva seu sentido original: um animal inteligente esforça-se por vencer um animal mais poderoso, mas irracional. É justamente porque tenho do homem uma visão materialista que tal combate me interessa. Ele é prejudicado por truques, pelo fato de se ter tornado (como o boxe) um empreendimento financeiro em que prevalece a busca do lucro. Mas algumas vezes a audácia e a sinceridade de um toureiro lhe restituem a pureza.
Começamos por Barcelona, onde vimos Chamaco, ainda novillero, que os barceloneses idolatravam. Depois, fomos a Pamplona; havia feira, que não se assemelhava muito às descrições de Hemingway. Nas praças, nos cafés, em grupos, bandos, confrarias, apenas homens, cantando e dançando pesadamente, rejubilando-se por estarem entre homens. Passamos três tardes nas arenas; eu gostava muito de Gijon, que naquele ano ganhou a orelha de ouro.
Ganhamos a costa oeste e paramos em Toja, seduzidos pelo pinheiral e pela solidão das imensas praias. Mas naquelas regiões a Espanha não sorria. Quando andávamos no cais do pequeno porto vizinho, os rostos dos pescadores, curvados sobre suas redes, endureciam; nas cidades e aldeias das Astúrias, em torno das minas, todos os olhares eram reprovadores; algumas crianças atiraram pedras no carro. Preferíamos essa raiva à resignação, mas não era agradável servir-lhes de alvo. E, mais do que no ano anterior, detestávamos as mistificações. Foguetes em excesso, por toda parte, imitavam a alegria; padres em demasia passeavam, pelas pequenas aldeias famintas, as miragens do além: pululava na região esse clero de chapéu peludo, que só pela força das armas reduzira os ódios ao silêncio. Em Oviedo, quando ali entramos, uma procissão enchia as avenidas de salmodias e de vozes fanhosas, órfãs, mulheres de negro, tristes adolescentes de vestidos longos: nenhuma luz nesses rostos bestificados pelas mais mesquinhas devoções. Santiago de Compostela, apesar de sua catedral e do brilho do nome, nos fez fugir: as ruas cheiravam a água benta e a venalidade. Atravessamos florestas cujas bolotas servem de alimento aos homens, e quisemos visitar o vale dos Hurdos, revelado antes da guerra pelo filme de Buñuel. Chegava-se lá por uma estrada sem saída, tão ab-rupta que, de baixo, a muralha por onde serpenteia parecia intransponível. Sobre uma espécie de pórtico, lia-se: “Você está entrando no vale dos Hurdos”; e pareceu-nos que um mundo para sempre apartado do mundo fechava-se sobre nós. Na montanha, a alguns quilômetros, eu sabia que se construíra recentemente um luxuoso mosteiro: a solicitude pública parava ali. As casas eram estábulos onde viviam, misturados, cabras, galinhas e um gado humano, crianças, adultos, gente atacada de bócio: em todos os rostos era um mesmo desespero animal; e, no entanto, vimos apenas o fundo do vale, onde corre um filete de água, onde o solo produz algumas plantas; mas, nos pedregulhos dos planaltos, os homens tinham que levar nas costas água e até mesmo terra. Na volta, estava escuro; nem uma luz sequer, nem uma voz; algumas portas se abriam para uma silenciosa escuridão onde se amontoavam animais e pessoas; também em nossas bocas os sons gelavam.139
Salamanca era bela: praças, arcadas, pedras, mármores, de um classicismo incomum na Espanha. Partimos direto para Valência através da Mancha de ventos tumultuosos, onde se erguem os moinhos de Dom Quixote. A feira estava se abrindo; agradou-nos muito mais do que a de Pamplona; nada de folclórico: a efervescência de uma verdadeira cidade de hoje. Na primeira manhã, assistimos ao apartedo e depois a todas as touradas. Entrementes, passeávamos na Albufera e contemplávamos as velas brancas no meio das laranjeiras da huerta. Faltou água em Valência durante esses três dias; bebiam cerveja, vinho, e nós tomávamos banhos de mar, que deixavam nossa pele lustrosa. Lanzmann comprou um soberbo cartaz vermelho e amarelo, no qual Litri enfrenta um touro e que preguei em uma de minhas paredes.
Depois de visitarmos de novo a Andaluzia, fomos para Huelva; Litri fazia ali — uma vez mais — uma entrada ruidosamente anunciada pela imprensa. Era um filho da terra, e no dia da tourada havia à sua porta uma multidão de homens e mulheres que esperavam sua saída com devoção. Guardei uma imagem muito viva das arenas rústicas, rebocadas a cal, dominadas por uma colina de cores africanas; entre os rochedos fulvos e os eucaliptos, algumas pessoas, vestidas com tecidos berrantes, de pé, olhavam. Nada de muito interessante acontecia. Ortega, louro, barrigudo, parecia um matador de ópera; Bienvenuda poupava seus riscos e sua dor; e Litri, as faces rosadas como uma virgem de Zurbarán, não merecia inteiramente os aplausos que provocava. De repente, como um novo touro surgisse na arena, um jovem saltou a balaustrada, armado de um lenço vermelho; diante do touro, ainda inexperiente, mas intacto, deu alguns passes ousados e me parecia já sentir dois chifres no seu ventre; nenhum dos toureiros, nenhum dos homens de suas quadrilhas mexeu-se. Enfim, um carabineiro, por cima da barricada, deu uma paulada no adolescente; ele caiu e levaram-no.
Um grande bosque de eucaliptos, um planalto cinza plantado de araucárias, serras nuas: Madri. Naquele ano nós a amamos, talvez porque ali vagássemos em companhia de madrilenhos. Certa noite, enquanto bebíamos manzanilla num balcão, sob a cabeça de um célebre touro, um deles, através do seu mau francês e do nosso mau espanhol, tomou-se de simpatia por nós; foi acordar o irmão, que falava francês fluentemente; numa antiga taberna, de paredes pintadas, comemos juntos aqueles camarões ao alho e óleo que são servidos fervendo, em tigelas de arenito; até a madrugada, conversamos e bebemos ao som dos violões nos pequenos bares próximos da Puerta del Sol; aqui e ali, uma mulher ou um homem, repentinamente inspirado, punha-se a cantar ou dançar. Nossos amigos eram pequenos-burgueses abastados, não gostavam do regime. “Ninguém gosta”, afirmavam; mas preocupavam-se pouco com política. Um deles acreditava piamente em Deus: “Do contrário”, disse-nos, “eu me mataria agora mesmo”. Não nos deixaram pagar uma única consumação: “Estamos em casa.” No domingo seguinte, nós os levamos com as esposas ao Escurial, para ver uma tourada, aliás, bem fraca.
Já contei minha viagem à China.140 Não foi semelhante às outras. Não foi nem um passeio, nem uma aventura, nem uma experiência, mas um estudo, realizado no local, sem fantasia. O país me era radicalmente estranho; mesmo com o Yucatán e com a Guatemala eu descobrira em mim, através da Espanha, algumas conivências: ali, nada. Os escritores que encontrei, aprendi lá mesmo a conhecê-los um pouco, através das traduções inglesas; mas até então eles não haviam existido para mim; e — com exceção de dois ou três especialistas em literatura francesa — nem o nome de Sartre nem o meu tinham qualquer significado para eles; os jornais noticiaram que Sartre acabava de escrever uma “vida de Nékrassov”,141 e nossos interlocutores muitas vezes demonstravam por essa obra um polido interesse; depois, falava-se de gastronomia. Mais ainda que os constrangimentos políticos, essa ignorância recíproca atrapalhava nossas conversas. Por outro lado, a cultura chinesa — já me expliquei longamente sobre isso — é essencialmente uma cultura de funcionários públicos e de magistrados: tocou-me pouco. Gostei da Ópera, da graça ritual dos gestos, da iminência trágica da música, do gorjeio das vozes. Gostei, na glória do outono, dos huntungs cinzentos de Pequim e de suas noites imaculadas. Por vezes no teatro, ou numa esquina, as coisas me invadiam; eu esquecia. Mas, em geral, eu estava ali, diante de um mundo que me esforçava por compreender, e onde não conseguia penetrar.
Não era um mundo fácil de decifrar. Pela primeira vez eu tinha contato com o Extremo Oriente; pela primeira vez compreendi o sentido das palavras: “país subdesenvolvido”; fiquei sabendo o que significava a pobreza na escala de seiscentos milhões de homens; pela primeira vez assisti a esse duro trabalho: a construção do socialismo. Essas novidades sobrepunham-se e se embaralhavam; a penúria chinesa só me aparecia através dos esforços feitos para superá-la; as realizações do regime deviam sua severidade a essa miséria. Sobre as multidões que passavam por mim, sobre seus prazeres e seus sofrimentos, o exotismo lançava um véu. Mesmo assim, observando, consultando, confrontando, lendo, escutando, uma evidência rompeu essas semitrevas: a imensidão das vitórias alcançadas em alguns anos sobre os flagelos que outrora oprimiam os chineses, a imundície, a verminose, a mortalidade infantil, as epidemias, a subalimentação crônica, a fome; as pessoas tinham roupas e casas limpas e comiam. Uma outra verdade se impunha: a energia impaciente com a qual aquele povo construía o futuro. Outros pontos se esclareceram. Por mais incompleta que fosse minha experiência, comecei a pensar que talvez fosse interessante relatá-la.
Na ida, eu passara apenas um dia em Moscou, mas sem que nada ou ninguém perturbasse aquela visão; guiada por Sartre, caminhei pelas ruas, de manhã até a hora em que se acendem nas torres do Kremlin estrelas de rubis. Passamos ali uma semana, ao voltarmos de Pequim. Depois de dois meses de pobreza chinesa, Moscou me deslumbrou, como acontecera outrora com Nova York, ao sair da penúria europeia. Já era noite, quando Simonov veio buscar-nos no aeroporto; a Universidade, tão feia à luz do dia, resplandecia; ceamos com ele e a mulher — uma atriz conhecida, que todos olhavam — no Sovietskaia, cuja sala de jantar transformava-se à noite em cabaré. Que alegria reencontrar comidas e bebidas que embriagam! Havia uma orquestra, atrações; casais dançavam e se apertavam, as faces em fogo; Estávamos longe da fleuma confuciana. Por toda a cidade construía-se dinamicamente, mas não com trolhas e pequenos cestos de terra: caminhões, cilindros, bulldozers, nada faltava; as velhas isbás, que subsistiam em quase toda parte, estavam eriçadas de antenas de televisão.
Olga P., nossa intérprete, levou-nos a passear, sem programa, ao sabor de nossos desejos e de suas inspirações. Conduziu-nos ao mosteiro de Zagorsk, nos arredores de Moscou; as igrejas, belíssimas, estavam cheias de velhas mulheres resmungonas; nas salas de aula, seminaristas barbudos e sujos folheavam livros; os popes com os quais cruzávamos lá fora, nas aleias, não pareciam mais limpos; assim que uma beata via um deles, atirava-se para sua mão e beijava-a avidamente. No entanto, o arquimandrita que nos convidou para almoçar era soberbo: túnica roxa, cabelos compridos bem penteados, longa barba cuidada. “Hoje é dia de abstinência, perdoem-nos”, disse, enquanto um mongezinho enchia nossos pratos de caviar; imensas fotografias de Lenin e de Marx estavam pregadas nas paredes. O arquimandrita nos explicou os serviços que a revolução prestara à religião: hoje, o povo sabia que se chegava a ser pope por vocação, e não por interesse. Olga P., israelita, sufocava de ódio: “Estou traduzindo”, dizia, com voz dura; e repetia, sem qualquer entonação, as declarações do sacerdote. “Sei que é preciso instruir o povo, e não violentá-lo”, disse-nos, à saída, como se quisesse convencer-se; “devemos respeitar suas crenças, mas mesmo assim eles abusam”.
Encontramos Carlo Levi. O lado antiquado de Moscou encantava-o: as cortinas enfeitadas, os abajures estampados a fogo, as pelúcias, as borlas, as franjas, os lustres: “É a minha infância, é Turim em 1910”, dizia ele. Contemplamos longamente um bêbado que se encostara a uma parede e que os passantes tentavam caridosamente manter de pé: os que se deitavam no chão eram recolhidos e guardados até o meio-dia e chegavam atrasados ao trabalho.
Assistimos a alguns espetáculos: A ralé, classicamente montada na tradição de Stanislavski; uma comédia de Simonov, interpretada por sua mulher, e O percevejo, de Maiakóvski, no teatro da Sátira. Olga P. nos contara detalhadamente a peça e traduziu, na hora, grandes trechos; o texto recebera uma encenação rápida, desenvolta, rica de invenções, e por um ator notável, que representava “à distância”,142 num estilo brechtiano. No intervalo, ao dar uma olhada no público, reconheci o belo nariz de Elsa Triolet; mas não eram seus olhos e o cabelo era ruivo: tratava-se de sua irmã, velha amiga de Maiakóvski. Ela trocou algumas palavras com Sartre: “Disseram que era uma peça contra o comunismo”, comentou ela, com voz aguda, “mas não: é apenas contra uma certa higiene”. No final, Prissipkin vinha até o proscêncio e interpelava os espectadores: “Por que vocês não estão também na gaiola?” Saltando bruscamente do imaginário ao real, envolvia todo mundo. Olga P. censurava o caráter edificante de O percevejo. Para nós o sentido da peça era claro: impossível aceitar a sociedade burguesa, seus vícios, seus excessos; mas quando se foi formado por ela, impossível submeter-se à “higiene” que os primórdios da construção socialista haviam exigido na URSS. O suicídio do autor nos parecia confirmar essa interpretação que, aliás, era a interpretação do diretor do teatro e de sua companhia. Mais tarde, disseram-me, a peça foi representada num outro palco moscovita, que lhe desfez a ambiguidade e fez dela uma lição de moral.143
Compreendi por que Sartre encalhara um ano antes num hospital: os escritores russos gozavam de uma saúde assustadora e era impossível furtar-se à sua imperiosa hospitalidade. Um congresso de críticos vindos de todas as regimes da URSS realizava-se em Moscou; Simonov pediu a Sartre que participasse, uma tarde, de uma das sessões; almoçaríamos antes com ele e alguns amigos georgianos. “Está bem! Mas não vou beber”, disse Sartre. De acordo. Mesmo assim, havia sobre a mesa do restaurante quatro garrafas de vodca de diferentes tipos e dez garrafas de vinho. “Você vai provar só as vodcas”, disse Simonov, que inexoravelmente encheu quatro vezes nossos copos; depois, tivemos que beber vinho, para acompanhar um chachlick bárbaro e suntuoso: um enorme quarto de carneiro enfiado num espeto e escorrendo sangue. Simonov e os outros três convivas contaram rindo que haviam festejado durante toda a noite, georgianos e moscovitas desafiando-se na vodca e no vinho; Simonov não dormira, começara a trabalhar às cinco da manhã. E ainda esvaziaram todas as garrafas sem parecer afetados. Olga P., que, no entanto, fizera tudo para se defender, ficou muito cansada para traduzir quando chegamos ao Congresso; eu estava com a cabeça em fogo e fiquei admirada ao ver que Sartre conseguia falar lucidamente sobre o papel da crítica. Discutiu-se sobre o espaço que convém conceder, num romance rural, aos tratores e aos homens; achei a discussão penosa, mas não muito mais do que é comum nesse tipo de lengalenga. Não creio que no Leste, tanto quanto no Oeste, um escritor tenha algum dia aprendido alguma coisa sobre seu ofício conferenciando com outros escritores.
Tive que fazer dois artigos, dar entrevistas, falar no rádio; passei meu último dia de cama, com um resfriado, sem dúvida, mas sobretudo por me sentir esgotada. Li O caminho dos tormentos, de Alexis Tolstoi, saboreando minha solidão e o silêncio.