CAPÍTULO 20
—
20 de janeiro de 1721
Enrique contemplou a escuridão da tarde. O inverno cobria com um capuz o céu de Madrid, e o seu ânimo estava igualmente enlutado. A noite caíra sobre a sua fazenda e, enquanto esperava no salão do primeiro piso pela chegada de Hernaldo, andava às voltas com os seus pensamentos sobre a menina Castro enquanto a observava pela janela do primeiro andar. Ela, após um dos seus encontros, esperava agora que a berlina a recolhesse num dos pátios da casa.
Há três meses que assinara a sua independência, pouco depois de abandonar Castamar, e imediatamente, tal como ele esperava, a menina Amelia começara a pensar que o casamento com Dom Diego não era já tão necessário. Não queria perder a sua recém-adquirida independência. Enrique esperou mais uma semana para prolongar o seu romance antes de pôr em marcha a segunda parte do seu plano relativamente a ela. As suas dívidas passadas ou ver-se na exclusão social já não eram, em nenhum caso, as ameaças mais coercivas. Amelia, tranquila, instalada no falso pressuposto de que, sendo amantes, estava completamente a salvo dele, tentara arrancar-lhe de novo, e em tentativas desajeitadas, o motivo por que ele desejava que ela se comprometesse com Dom Diego. Enrique acabava sempre por dizer-lhe que apenas favorecia os seus desejos. Assim, encontravam-se clandestinamente em casa dela e na dele, até que ele a levava ao êxtase. Então, conduzida pela lascívia, cometia atos pouco castos. Depois sentia-se perturbada, como se não conseguisse reconhecer-se, e escandalizava-se consigo mesma por ter cometido pecados contra o decoro e contra Deus. Como desfrutara desses dias, ao ver como a educação da menina Amelia se revolvia como um chacal contra ela!
Pôs fim ao seu jogo de sedução precisamente na noite em que ela lhe tinha dito, sorridente, que aquele seu costume de a tratar na terceira pessoa só tinha como objetivo excitar a sua imaginação para os assuntos carnais.
– É uma razão, mas não é a única – abrira-se ele. – Trata-se de confiança, minha querida menina Amelia, e é óbvio que a menina ainda não ganhou a minha.
Ela virou-se, completamente admirada.
– Pensei que a nossa intimidade, ao menos…
– Pensou mal – interrompeu-a ele, secamente. – Deve regressar a Castamar. Já passou uma semana e é preciso que se comprometa com o duque.
– Temo que não esteja disposta a fazer tal coisa – dissera-lhe ela, lutando por iniciar a sua rutura. – Dom Diego é um…
– Julgo que a sua mãe goza de boa saúde e que a menina deseja que ela a conserve – interrompeu ele, taxativo.
Amelia, com a tensão carregada nos maxilares, perguntou-lhe a que se referia ele com semelhante frase.
– Desde que faça o que lhe peço, posso garantir-lhe que a sua mãe continuará a receber os melhores cuidados.
O pânico apoderou-se ainda mais dela, gelando-lhe o esgar.
– Pobre menina Castro – disse-lhe Enrique, zombeteiro. – Outra vez desvalida ante o predador.
Ela levantara-se, tremendo como um passarinho caído do ninho, e, com toda a coragem de que foi capaz, disse-lhe que a casa onde sua mãe descansava pertencia à amiga Verónica Salazar, e que não permitiria que ele lhe pusesse um único dedo em cima.
– Engana-se. Essa casa é propriedade minha, mas, se insiste em pô-lo em dúvida, posso entregar-lhe a sua mãe por partes.
– Vou… recorrer… ao duque – dissera-lhe ela, cheia de terror, com os olhos cheios de água, enquanto retrocedia, afastando-se dele com a mão na boca – e…
Ele levantara-se e seguira-a.
– Não seja absurda, menina Castro. – Gargalhara. – Como explicará ao Dom Diego que veio a Madrid com o objetivo de o seduzir e casar-se com ele quando era já uma mulher sem honra? Eu tenho provas disso e toda Cádis o sabe. Ou talvez eu mesmo lhe conte que me enganou com uma promessa de casamento, quando na verdade só queria melhorar a sua posição ante Castamar. E também tenho provas disto, uma vez que saldei todas as suas dívidas e alojo a sua mãe na minha casa em El Escorial.
Ela, aterrorizada, virara-se e começara a andar depressa enquanto ele avançava em direção a ela, sala após sala. A cada olhar que deitava para trás, a sua necessidade de abandonar a casa crescia. Ao vê-la fugir tão vulnerável, gozou. Por isso correra até a alcançar. Agarrara-a pelos cabelos e puxara-os brutalmente. O seu pescoço fino arqueou-se para trás e ela gemeu de dor. Sem lhe dar oportunidade de reagir, enfiara-lhe o punho no estômago. Ela curvou-se de dor, cuspindo baba, e, com um som gutural, caiu ao chão. Montado em cima dela, vendo como tentava, em vão, defender-se, teve de fazer um esforço para não lhe pedir que lutasse com mais veemência. Prendeu-a com o seu corpo e tapou-lhe o nariz e a boca com as mãos. Ela esbracejava, numa tentativa fútil de as retirar. Contemplara o seu rosto enquanto desabava. Por um instante, sentiu que havia algo belo como uma obra de arte na menina Amelia: aquele desejo enorme de sobreviver a flutuar-lhe pelas veias inchadas das têmporas; sempre admirara a sua coragem. Ela convulsionara um pouco e foi perdendo força, até que começou a desfalecer. Então soltou-a e deixou-a respirar. Ela começou a tossir descontroladamente, aspirando golfadas do ar que lhe faltava, e ele deslizou até lhe roçar o lóbulo da orelha.
– Ouça-me com atenção, querida menina Castro – disse-lhe muito lentamente. – Toda a sua vida é minha, a sua mãe respira porque eu permito, a menina respira porque eu permito. Se, por alguma razão, tivesse a fraqueza de falar com o Dom Diego ou com qualquer outro, eu saberia imediatamente, e fique a saber que nunca mais voltaria a ver a sua mãe, a não ser em pequenos pedaços que os meus homens terão o prazer de enviar-lhe.
– O senhor é um monstro – disse-lhe ela entre tosses.
– Certo, sou – respondeu ele. – Por isso, se a vida da sua mãe não basta para lhe segurar a língua, ponha a sua neste desafio, pois os meus homens têm ordens para que abandone este mundo de Deus com muita dor. Pode assentir se me compreendeu.
Ela, incapaz de controlar a tosse, fitara-o, paralisada pelo medo, com o rosto vestido de noite pétrea. Após um breve momento em que tentava controlar os espasmos, engolira em seco e, após uma pequena pausa, aquiescera.
– Vejo que nos entendemos – dissera-lhe ele, levantando-se. – Quero que regresse a Castamar o quanto antes. Enquanto procura uma desculpa para entrar, proponho-lhe como incentivo que venha ver-me três noites por semana para eu satisfazer o meu apetite consigo. Espero que não me faça ir buscá-la.
Dito isto, esticara o fato e começara a afastar-se pelo corredor formado pelos salões ligados de sua casa.
– É isto, então, o que queria de mim – dissera-lhe ela do chão, sem fôlego e com as lágrimas a correr-lhe silenciosamente pelas bochechas. – Que fosse a sua barregã.
Ele parou e dedicou-lhe um meio olhar de longe.
– Oh, não, querida – respondera. – Isso só o quero a partir de agora. Antes, só quis seduzi-la para que fosse voluntariamente minha amante, a menina é uma criatura deliciosa. Agora pode ir, tenho coisas para fazer, menina Castro.
Desde esse instante até àquela mesma noite, tinham passado o Advento e o Natal praticamente sem mudanças, e isso exasperava-o. Tal como esperava, a menina Amelia tentou regressar o mais cedo possível a Castamar para não se ver obrigada a enfrentar os seus encontros sexuais e cumprir os seus desejos. No entanto, todas as suas tentativas se haviam visto frustradas durante aqueles meses. Primeiro, pretenderam que simulasse um encontro casual com Dom Diego em vários refrescos, mas este não esteve presente; também no teatro e na corte, mas, mais uma vez, não apareceu; antes da chegada do inverno, fizeram várias saídas para a serra de Madrid, convidando-o a juntar-se a eles, mas uma e outra vez recusara amavelmente a oferta. Enrique chegara inclusive a fazer a menina Castro cavalgar perto de Castamar a fim de que se encontrassem. Nenhuma destas ações tivera sucesso. Arrependera-se de não a ter forçado a ficar depois da celebração de outubro. Agora, já era tarde. Após o último fracasso em casa da condessa de Arcos, em que Diego reiterou a sua ausência de umas leituras selecionadas da obra Selva das musas, de Eugenio Gerardo Lobo, Enrique teve a sensação de que aquele homem não ia sair da fazenda nunca mais na vida.
Por fim, compreendeu que a via galante deixava demasiadas variáveis ao acaso. Devia procurar um meio mais expedito. Além disso, com o passar do tempo, a menina Castro estava cada vez mais desluzida e apática. Os seus encontros, em que agora ela quase não punha entusiasmo, deviam ser, em grande medida, a causa. Ele não se importava muito.
Foi o negro, que parecia muito interessado em espiar cada passo que dava, quem o brindou com a sua oportunidade. Utilizá-lo-ia para fazer a menina Castro voltar a Castamar, jogando com o cavalheirismo dos dois irmãos. Estava certo de que ia despertar no seu inimigo o instinto protetor dos corações bondosos. Por isso esperava agora a chegada de Hernaldo para nessa mesma noite pôr o seu plano em marcha.
Este apareceu, pontual, para lhe dizer que estava tudo pronto e que só tinha de dar a ordem.
– A menina está no pátio das cocheiras – disse Enrique, antes de beber um trago de aguardente. – Lembra-te de que não a quero morta, só suficientemente assustada. E nada de a forçar, deve parecer um assalto casual.
Em seguida dispensou-o, afirmando que apenas ficaria tranquilo quando ele voltasse. Hernaldo virou-se e dirigiu-se à saída. Foi nesse instante que Enrique se lembrou de algo e sorriu para consigo, acusando-se de falta de memória por esquecer um dos pormenores mais importantes para que a sua estratégia conduzisse ao êxito. Além disso, aquele pormenor ensinaria à menina Castro que as mulheres que trocavam riquezas por favores carnais devem aprender o mais cedo possível qual é a sua posição na vida relativamente aos homens.
– Corta-lhe a cara – ordenou.
– Agradará menos – respondeu Hernaldo.
– Certo, mas inspirará mais pena – disse ele, acabando a aguardente. – E o Dom Diego tem uma fraqueza pelos seres indefesos. Uma vez apaixonado, o físico já não será um problema para ele.
Hernaldo assentiu com a cabeça, quase mais como uma saudação militar, e desapareceu pela galeria. Enrique observou as nuvens que, cansadas de suportar a carga, desabavam em força de aguaceiro sobre as ruas de Madrid. Nessa noite, dar-se-ia um avanço importante para a sua vingança. Os seus outros interesses, os políticos, estavam estagnados e só se poriam em marcha se na corte houvesse oportunidade para isso. Dado que a opção do imperador austríaco já não era válida, teria de sê-lo a do Borbón. Por agora, pouco se podia fazer, Espanha cedera ante meia Europa unida e a única coisa que isto evidenciara era a sua debilidade. Por seu lado, levara a cabo algumas missões diplomáticas de pouca importância, por ocasião do acordo bilateral que estreitaria os laços entre as nações de França e Espanha. José de Grimaldo, secretário de Estado e um bom conhecido seu, estava a preparar o tratado que em breve seria assinado a este respeito, certamente em Madrid, e pedira-lhe o seu conselho e intervenção em certos momentos. Aquilo era uma forma de aplanar o caminho para conseguir a grandeza de Espanha que tanto desejava enquanto encerrava o capítulo de Castamar, que já havia durado bastante.
Caminhou lentamente até se sentar num divã. Um relâmpago inundou totalmente o salão, projetando sombras fantasmagóricas, e ele sorriu, pensando na pobre Amelia Castro, que dentro de pouco tempo se veria agredida e com o seu doce rosto marcado para a vida, estendida nalgum lamaçal. Que instável e inconstante era a vida.
No mesmo dia, 20 de janeiro de 1721
Gabriel cavalgou a galope em direção ao bosque que combinava com o seu ânimo inquieto. Meses antes, combinara com o seu homem, Daniel Forrado, um sistema simples para se encontrarem em segredo. De cada vez que fosse preciso reunirem-se, ele ou o seu informador deviam fazer chegar ao outro uns cartões de visita subtilmente marcados. Assim, desta forma silenciosa, avisavam-se mutuamente de que era preciso reunirem-se num faial próximo do caminho de Móstoles, em direção a Castamar. Daniel, para maior cuidado, fazia-lhe chegar esta missiva à casa de Leganitos, sempre através de algum dos zagais, para que não pudessem relacioná-los. Após a entrega, cavalgava até a ponto de encontro. A maioria das vezes, para despistar possíveis espiões do marquês, rumava à Ponte de Segóvia; outras, como fizera nessa manhã, ia em direção a norte para depois descer pela fonte de Palo e seguir pelo Caminho do Rio ou pelo Prado Novo, até à orla do Manzanares. Tinha a certeza de que Daniel devia ter averiguado algo importante, talvez o suficiente para que o seu irmão se decidisse a atuar.
Daniel era bastante hábil a obter informações de toda a criadagem negra de Madrid, pois era respeitado e muito conhecido como benfeitor entre os seus. Ele conhecera-o há muito tempo, como escravo de um amigo da família que tinha chegado a Castamar de visita. Aos 60 anos, tinha as costas já curvadas de trabalhar a carregar pesos como carregador da bagagem do único amo que tivera desde pequeno. Gabriel, nessa visita, convencera Diego a comprar a carta de alforria de Daniel ao seu dono, dada a amizade, pois tinha consciência de que ninguém o levaria a sério se fizesse ele mesmo a oferta de compra. Queria fazer por Daniel o que o pai tinha feito por ele. Daí que, após conseguir a sua libertação, o tivesse ensinado a ler e a escrever, e embora o fizesse com dificuldade, agora podia ganhar a vida. Ainda assim, Daniel tinha de alguma forma interiorizado que ser criado livre de um homem negro era um posto mais baixo e degradante do que ser escravo de um homem branco. Por isso, acabou por preferir trabalhar fora de Castamar como capataz de escravos do que servi-lo a ele. Graças a isso, tinha uma situação invejável para poder inteirar-se de tudo o que fosse necessário.
Por fim, Gabriel entrou no faial. Daniel, com o cabelo comprido, esperava junto a uma mula de carga. Parecia um pouco nervoso e aproximou-se com um sorriso vazio ao vê-lo.
– Bons dias, senhor – disse.
– Bons dias, Daniel.
– Tenho algumas novidades para lhe contar – acrescentou, olhando para os lados para se assegurar de que ninguém podia estar a ouvi-los. – A menina Amelia mudou completamente o seu modo de vida desde há um par de meses. Como lhe disse, visitou várias vezes a escrivania para assinar certos documentos e, depois disso, contratou um alfaiate, uma dama de companhia e uma pequena berlina com o seu próprio cocheiro. Mas o mais interessante é que se instalou há pouco tempo na sua nova casa de Madrid com criados.
– Tem rendas próprias – concluiu ele.
Era evidente que aquela mudança de vida não era casual, e a intuição continuava a alertá-lo de que o marquês tinha algo que ver com aquilo.
– Assim parece, Dom Gabriel – prosseguiu Daniel. – As visitas continuam a ocorrer: o Dom Enrique manda a sua carruagem com serviço incluído a cada poucos dias e ela acorre, solícita, senhor.
– Continua a levar a acompanhante? – perguntou-lhe Gabriel.
– Sim, sim. Não se preocupe, sei tudo o que acontece na nova casa da menina Castro. O meu primo é um dos seus lacaios e diz-me que a menina dorme pouco, tem o rosto e a figura cansados. Não parece feliz.
Algo não batia certo. Ela era uma rapariga livre e ele um ilustre solteiro, pelo que podiam manter uma relação em público como parte de uma amizade, um cortejo ou sob a premissa de um futuro casamento. Daí a acompanhante, para garantir a honorabilidade desses encontros. Ainda assim, se ela já tinha saldado as dívidas e essa amizade com o marquês era sincera, não fazia sentido que se mostrasse abertamente infeliz. Fosse como fosse, era claro que estavam em conivência, e por isso formavam parte da mesma ameaça, se é que esta existia e ele não tinha enlouquecido. Isto não se aproximava da tese defendida por Diego, que nada via nela de obscuro.
– Por outro lado, o homem do marquês, Hernaldo de la Marca – disse –, deslocou-se já por duas vezes a um prostíbulo dos subúrbios chamada O Saguão, pelo barranco de Lavapiés, onde se reúne com outros matadores como ele. Dá-me a sensação de que podem estar a preparar alguma.
– Bom trabalho, Daniel – felicitou-o. – Mantém-te vigilante. Talvez amanhã precise de ti para me levares ao prostíbulo.
– Não é lugar para um cavalheiro – aconselhou-o Daniel, baixando a cabeça –, e muito menos se for negro.
– Não te preocupes com isso.
Fez cabecear a sua montada e cavalgou de regresso à capital.
Apesar de toda esta informação, duvidava que Diego arriscasse. Não queria dar um passo em falso e Gabriel reconhecia que nisto era prudente, mas também pensava que era necessário tomar a iniciativa. Se o irmão o tivesse deixado, por aquela altura saberiam já o que tramava aquela serpente de Dom Enrique. Teria pegado em Hernaldo de la Marca e tê-lo-ia feito contar tudo. Não ignorava que fazer isso era um risco, pois, se Dom Enrique não tivesse intenções ocultas, seriam eles quem cometeria o delito. Intuía, contudo, que quanto mais demorassem a atuar, mais hipóteses de sucesso teriam os planos do marquês. Por isso, assim que chegou à sua mansão na capital, escreveu convites a Dom Alfredo e Dom Francisco para cearem com ele nessa noite. Bem sabia que, se o irmão soubesse que estava a avisar os seus amigos, acabaria por lhe gritar «Não me ouves, Gabriel!». Mas estava tão certo de que o marquês tinha alguma intenção oculta que precisava de ajuda para chegar onde ele não conseguia. Desconfiava que Dom Enrique tinha conquistado o afeto de sua mãe a fim de se posicionar dentro da propriedade antes da celebração. Intuíra-o ao descobri-lo junto à menina Amelia no salão; pelos seus olhares silenciosos, carregados de um significado que lhe escapava; pela pouca cortesia dos seus comentários ferinos, que constantemente procuravam contrariar Diego, como se estivesse a pô-lo à prova.
Depois de comer e dormir um pouco, chegaram-lhe dois cartões com a confirmação de que Dom Francisco e Dom Alfredo viriam cear com ele. Aquele convite era atípico, pois eram amigos por parte de Diego e normalmente era este quem os convidava. Ao cair da tarde, apareceram ambos com uma expressão interrogativa no rosto.
Gabriel esperou até depois da ceia para lhes contar as suas suspeitas, altura em que se instalaram num dos salões e em que sobre eles se abria um céu coberto de nuvens negras. Quando terminou, nenhum dos dois fez qualquer comentário. A sua expressão interrogativa carregara-se de um certo pesar. Dom Francisco, sentado de pernas cruzadas e com a mão apoiada na bengala, acabava de beber um anis. Do outro lado da divisão, Dom Alfredo observava a tempestade pela janela. Gabriel desviou o olhar para a lareira por alguns instantes e sentiu-se novamente como um ser alheio à realidade que o circundava. Não sabia dizer se era uma conclusão racional ou apenas um sentimento. Às vezes, todo o mundo que o rodeava perdia qualquer significado objetivo e não conseguia discernir porque é que ele estava ali, porque havia sido agraciado com aquela vida de brancos.
– Compreendo o motivo por que nos mandou chamar. – A voz de Dom Alfredo fê-lo regressar à sua complexa e estranha vida. – E fez bem, ainda que o seu irmão não vá gostar que o tenha feito. É necessária a nossa intervenção, não de forma direta, mas cautelosa. Devemos assegurar-nos de que o marquês trama algo antes de dar um passo em falso.
Dom Francisco brindou a isso, erguendo o copo.
– Posso perguntar na corte a certas… damas que partilharam o leito com o Dom Enrique – disse Dom Francisco. – Talvez esclareçamos algo acerca da sua personalidade.
– É precisamente isso que eu precisava – disse Gabriel do cadeirão. – A corte não é lugar para a minha cor de pele.
Riram-se um pouco da sua maneira de o dizer.
– Dom Gabriel… – disse-lhe Dom Alfredo, com o olhar ausente na tempestade. – Estou convencido de que, no futuro, a escravatura será vista como uma abominação, mas, até chegar esse tempo, a sua posição na alta sociedade é absolutamente extraordinária.
Gabriel assentiu e ia a acrescentar algo quando bateram várias vezes à porta do salão. Deu ordem de entrada e um dos camareiros cruzou o umbral trazendo numa pequena salva de prata o seu próprio cartão de visita. Ficou a olhar para ela, admirado. Era novamente o cartão do seu homem. Ou Daniel Forrado tinha averiguado algo da máxima importância ou algo de grave havia ocorrido para ele lhe enviar o cartão pela segunda vez em menos de 10 horas, sobretudo já noite avançada e com aquele aguaceiro a fustigar Madrid.
– É do meu homem, deve haver algum problema. Tenho de sair – disse-lhes Gabriel.
– Permita-nos ir consigo – disse Dom Francisco, levantando-se.
Desceram as escadas em silêncio até ao pátio interior, contagiando-se do ânimo dos relâmpagos. Já nas quadras, enquanto vestia o pesado capote de couro e o tricórnio, teve a sensação de que algo de mau havia sucedido. Após ordenar aos criados que lhes fossem buscar várias lâmpadas de pavio achatado, Gabriel pensou que talvez Dom Francisco e Dom Alfredo acorressem a uma armadilha preparada só para ele. Enquanto montava, ajudado pelo palafreneiro, parou por um instante.
– Os senhores não têm o dever de acompanhar-me e entenderia, sem prejuízo para a nossa amizade, que não o fizessem – disse-lhes.
– Não diga tolices – respondeu Alfredo, esporeando o seu cavalo.
– Julgo não ter mais nada a acrescentar, querido Dom Gabriel – declarou Dom Francisco, cavalgando já atrás de Dom Alfredo e sorrindo como se aquilo fosse mais um jogo do que um lance perigoso.
Gabriel espicaçou o corcel e desceram os três a Rua Leganitos em direção a norte, com a água a cair-lhes a cântaros em cima. Seguiram pelo caminho mais curto e saíram para campo aberto. Cavalgaram até à orla do Manzanares e daí em direção a sul. A noite estava tão cerrada que mal se viam dois palmos, pelo que, assim que cruzaram a Ponte de Segóvia e deixaram para trás a fonte do Anjo da Guarda, reduziram a marcha. Gabriel olhou para trás. Madrid surgiu decorada pelos relâmpagos como uma tela tenebrosa emergida do negrume. Mal se distinguiam algumas luzes do Alcácer, ténues e desordenadas. Adentraram-se, cavalgando a trote acelerado, pelo caminho de Móstoles em direção ao ponto de encontro. Cedo as roupas começaram a ficar ensopadas e o capote de couro ganhou peso.
Passada mais de uma hora a suportar a nevasca, subiram em direção ao córrego de Cabeceras até chegar ao local. Entraram a cavalo, a passo, com os sentidos tensos e alerta. Desmontaram a um sinal de Alfredo e, com a luz das lâmpadas, algo exíguas apesar do óleo, entraram a pé no bosque cerrado. Com passo firme e a outra mão no pomo da espada, avançaram alguns metros até que, diante deles, surgiu uma figura negra estendida sobre uma pequena represa tingida de vermelho. Pararam imediatamente, olhando para todos os lados, e Gabriel dirigiu a vista ao rasto desfiado de sangue. Aproximaram-se com cautela até que entenderam que aquele era o corpo de um homem morto.
– Daniel – murmurou Gabriel, perturbado.
Tinha cravadas na barriga várias balas de aço de algum maldito, e apresentava uma segunda perfuração seca e concisa entre os pulmões. Agachou-se e cerrou-lhe as pálpebras para lhe cobrir os olhos vidrados. Dedicou-lhe algumas palavras enquanto Dom Alfredo lhe perguntava se era o seu homem. Gabriel assentiu, no momento em que um raio rasgou o céu ao meio, iluminando até para lá do horto de Las Minillas.
Foi então que se apercebeu de uma segunda figura estendida um pouco mais longe. Levantou-se de repente e Dom Francisco e Dom Alfredo desembainharam os espadins, atentos a qualquer movimento que pudesse provir dos bosques. Gabriel aproximou-se e ergueu a lâmpada. Era o corpo de uma mulher. Ali, com a roupa rasgada, um corte profundo na bochecha, as maçãs do rosto pisadas e os lábios rebentados em carmesim, afundava-se na lama e na tempestade a figura tolhida e castigada da menina Castro.
– Santo Deus! – disse Gabriel em voz alta.
Correu para ela e protegeu-a com o seu capote de couro. Dom Alfredo verificou o seu estado, pondo-os como testemunhas por causa do decoro. Parecia inconsciente.
– A pulsação é débil. Não vejo fraturas de ossos, mas está fria. Deve estar à chuva há bastante tempo. Temos de dar-lhe o máximo de calor possível – disse ele.
Gabriel tomou-a nos braços sem hesitar e levou-a até à sua montada. Pensou em dirigir-se imediatamente à casa de Leganitos, mas parou. Levaria mais de duas horas, pelo menos, entre chegar a casa, instalá-la, procurar um médico decente e não um qualquer mata-sãos. O doutor Evaristo vivia perto de Castamar, precisamente para emergências, e era um homem muito reputado. Estariam aí em menos de uma hora.
– É preciso levá-la a Castamar – disse. – Dom Francisco, faria o favor de se adiantar para ir avisar o doutor Evaristo?
– Deixe isso comigo – respondeu-lhe este, partindo imediatamente.
Dom Alfredo disse-lhe que ficaria para lhe guardar as costas. Acomodaram a jovem sobre o cavalo depois de Gabriel ter subido, e agasalharam-na com uma manta extra que Dom Alfredo levava sempre debaixo da sela nos dias de inverno. Apesar do temporal inclemente, a manta conservava o calor do corpo do cavalo. Isto deve ter reconfortado a menina Castro, pois soltou um gemido para perder depois totalmente os sentidos.
Cavalgaram, forçando devidamente os corcéis, que já respiravam de forma entrecortada, até que, depois de uma longa hora e ensopados até aos ossos, contemplaram os muretes da fazenda de Castamar. Gabriel recordou o pobre Daniel, estendido num lamaçal e encharcado no seu próprio sangue, e cerrou os punhos. Ocupar-se-ia mais tarde de lhe dar um enterro cristão. Aquela vilania não tinha sido casual. Agora tinha a certeza de que a sua intuição com a ameaça de Dom Enrique estava certa. Apesar da falta de provas, sabia que os sequazes do marquês tinham enviado com o seu cartão de visita uma mensagem clara, que traçava uma linha vermelha que não devia passar, sob risco de maiores problemas: «Não se investiga Dom Enrique de Arcona».