CAPÍTULO 32
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18 de outubro de 1721
Após duas noites de festejos em Castamar, Enrique acordou no quarto de hóspedes de excelente humor. Embora os seus planos não estivessem a correr tão bem como desejava, conseguira aproximar-se do delfim, Luís de Borbón, com o qual já tinha relações, e pudera estreitar laços. Além do mais, divertira-se a aguilhoar Dom Diego durante a celebração com os seus comentários, a começar pelo sucedido com a descarada cozinheira. No entanto, depois de ler o bilhete que Hernaldo lhe fez chegar através de um pajem com o seu pequeno-almoço, pensou que talvez não tivesse motivos para tanto otimismo. Por isso, enquanto o resto dos convidados ia deixando Castamar, saiu a cavalo para se encontrar com o seu homem no seu lugar secreto. Ele, por seu lado, não se iria embora. Fazendo-se de difícil, Dona Mercedes insistira em que ficasse o mesmo tempo que ela, e ele aceitara, pois queria ficar junto da duquesa, afastado de tudo o que estava para vir, para que não pudessem relacioná-lo com isso.
Enquanto cavalgava até ao ponto de encontro, dizia a si mesmo que devia ter paciência. Embora o seu plano original com a menina Castro tivesse fracassado, Enrique vislumbrou uma evolução do mesmo que era também adequada às suas necessidades. Assim funcionavam as boas intrigas, pois deviam navegar num equilíbrio entre um bom plano e a capacidade de se adaptar às mudanças. O meu sempre esteve muito bem delineado, pensou. Agora só preciso de corrigir um pouco o rumo.
O seu antigo ardil passava por esperar até que o luto por Alba abatesse e, chegado esse ponto, encontrar uma jovem capaz de ocupar novamente o coração do duque. Por antigas referências de Dona Mercedes, a menina Castro era a escolha perfeita. Com a sua ajuda e a motivação necessária, ela seduzi-lo-ia e, uma vez comprometida com Dom Diego, Enrique revelaria à sociedade a sua relação paralela com a menina Amelia, provocando a vergonha de toda a família Castamar. Mesmo que, num golpe de sorte, ele a tivesse engravidado no momento oportuno, a vergonha seria já insuportável.
Enrique apareceria então como uma vítima, condenado a uma situação injusta por ter sido tão enganado como o próprio Dom Diego por uma astuta caçadora de fortunas. O que a menina Amelia pudesse contar não teria credibilidade: para todos, ela teria obtido de Enrique riqueza, o pagamento das suas dívidas e uma posição em troca de uma promessa de casamento que nunca pensara cumprir, e mantendo com ele uma relação amorosa, teria paralelamente seduzido o duque até o levar ao altar.
Além disso, confirmava-o a sua relação imaculada, a suas contas e os contratos com Amelia, e as visitas a horas intempestivas que muitos corroborariam; não importava que não se vissem há meses – claro que com muita pena de Enrique, juraria ele –, desde que lhe tinham cortado a cara.
Sem dúvida que os de Castamar saberiam que mentia no seu papel de vítima e ergueriam também a voz em vão, esgrimindo suposições sem o sustento de provas. Dom Diego compreenderia a armadilha e ver-se-ia obrigado pela sua obsoleta honra de Grande de Espanha a pedir-lhe satisfações. Por essa altura, o duque não poderia recorrer aos seus amigos para limpar a sua honra e a da sua prometida, pois estes estariam tão vilipendiados como ele graças a certas ações que havia preparado; nem ao seu pobre irmão, o escarumba, que teria desaparecido há já meses e se encontraria a caminho das colónias inglesas na América num navio negreiro.
Claro que previra que Dom Diego tentaria desafiá-lo em diferentes ocasiões para forçar o duelo. Iria a sua casa, aos teatros, aos encontros nos palácios dos ilustres, mas ele nunca lá estaria. Seria mais tarde, num dos refrescos do Palácio do Bom Retiro, ou mesmo, caso tivessem terminado, no Palácio Real de La Granja, em Valsaín. Aí se concluiria a sua intriga, com meia corte como testemunha. O monarca interviria, claro está, pois tinha proibido os desafios, mas isso a Dom Diego não lhe importaria e a ele também não, e seria uma satisfação adicional ver como o grande duque traía a confiança do rei. Assim, diante de todos, Enrique aceitaria o desafio e o duque teria o orgulho tão ferido que não se importaria de arriscar a propriedade de Castamar. Desse modo, depois de lhe ter arrebatado o que mais lhe importava – a sua dignidade, a honra, os seus amigos e o irmão –, subtrair-lhe-ia aquele que havia sido o seu refúgio em vida. Para os restantes, Enrique, como ilustre, só assistiria ao amanhecer a um duelo injusto, que desde logo tinha intenção de ganhar com a inteligência antes de disparar o balote.
Para isso, mesmo antes de estabelecer o duelo, teria por bem pedir aos seus padrinhos uma conversa privada com o duque, com a desculpa de esclarecer qualquer mal-entendido e esquecer aquela insensatez. Este aceitaria devido à honra, e então, já a sós, explicar-lhe-ia ao pormenor que a morte de Dona Alba de Castamar era apenas culpa sua devido à estúpida decisão de trocar os cavalos; contar-lhe-ia porque se tornara público quem era realmente o seu amigo Alfredo, o desprestígio que Dom Francisco carregaria já, e o mais importante de tudo: a situação em que o seu negro se encontrava. Então, Dom Diego enfrentaria um problema irresolúvel: matar o único homem que podia dizer-lhe onde estava o irmão, o mesmo homem que desafiara publicamente para um duelo, ou perder a honra e não aceitar o lance, tentando encontrar o irmão. Enrique pensava, ainda assim, que, chegados a esse ponto, Dom Diego não poderia evitar querer matá-lo.
Nesse caso, outras eventualidades estariam a seu favor. Ao ser ele o desafiado, teria direito a escolher a arma, e evidentemente seria a pistola e não a espada, com a qual o Castamar era um mestre inquestionável. O desejo de vingança agitaria de tal forma o duque que lhe vibraria não só o pulso, mas o corpo inteiro, a ponto de falhar o tiro. Ele, pelo contrário, não falharia. Não era a primeira vez que utilizava uma argúcia assim; quando um homem ardia consumido pela raiva e pela vingança até limites insuspeitos, não pensava com clareza, e muito menos mantinha o sangue-frio. Nesse dia, o carácter de Dom Diego custar-lhe-ia a vida de uma maneira ou de outra. Não era em vão que, desde a sua chegada a Castamar, Enrique tinha vindo a cultivar a sua animosidade, desafiando-lhe o temperamento irado com pequenas e afiadas ofensas precisamente para isso, para que, chegado o momento, a aversão lhe turvasse mais o discernimento.
Mas os planos às vezes fracassam e o seu, que devia levá-los a esse final, tinha-o feito. Era suficientemente inteligente para saber que, se a menina Amelia não conseguira ainda aproximar-se do coração de Dom Diego, já não o faria. Além do mais, também não parecia que o negro fosse aparecer no Saguão, onde desde há meses que os seus homens esperavam impacientes para o fazer desaparecer. Só o plano que fiara sobre Dom Francisco e Dom Alfredo parecia encaminhado. No entanto, ao ver que ainda não obtinha os sucessos desejados com os primeiros, esperara oportunamente e mantivera a sua estratégia preparada, mas inativa.
Ciente de que estava longe de cumprir os seus objetivos, duas noites antes, Enrique tinha-se aproximado, sigiloso como um gato, do quarto da menina Amelia, mesmo antes da ceia. Tal como esperava, a porta estava fechada à chave, pelo que não conseguiu entrar. Foi então que ouviu a voz da criada que devia estar a ajudá-la a acabar de se arranjar. Esperou no corredor, escondido numa das arcadas dos salões, até que a criada de quarto saiu. Assim, enquanto a criada desaparecia pelo corredor, entrou. A pobre menina Castro, que nesse instante se aproximava da porta com a intenção de a fechar novamente à chave, deu um salto para trás e ameaçou gritar enquanto pegava num castiçal. Ele virou-se e, com a sua chave mestra, bloqueou a porta.
– Como conseguiu essa chave? – perguntou, enquanto ele encolhia os ombros. – Deixe-me em paz.
Intimidatório, aproximara-se dela, que tremia a ponto de ouvir os dentes a bater descontroladamente. Numa ação rápida, arrancou-lhe o castiçal da mão, avisando-a de que confiava que, no decorrer daqueles meses, não tivesse esquecido a sua missão. A menina Castro, encurralada, olhara para a porta sem conseguir responder senão com pequenos gemidos de pânico.
– Foi lamentável o assalto que sofreu, mas, segundo soube, no fim os bandidos acabaram todos mortos – disse-lhe, sarcástico.
– Foi o senhor quem o organizou. Era a melhor forma de me trazerem para Castamar.
– Nunca confessarei tal coisa – disse ele, sorrindo.
Ela cuspiu-lhe na cara, dizendo-lhe que o odiava. Ele encostou-a à parede e esbofeteou-a.
– Detesto-o com toda a minha alma – disse-lhe a menina Amelia enquanto os seus olhos expressavam o terror que invadia.
Tinha de reconhecer que adorava a sua coragem, tão inquebrantável. Quanto mais medo tinha, mais atos ousados cometia.
– Mas à sua mãe não a detesta, pois não? Manda-lhe cumprimentos desde El Escorial.
– Vá-se embora ou eu grito.
– Não se chateie tanto… Não gostaria que a sua pequena cicatriz ficasse mais feia – disse-lhe, acariciando a bochecha cortada.
– Não me toque.
– No ano passado, neste mesmo quarto, não dizia isso.
Foi então que a agarrou pelo pescoço e se lhe atirou à boca. A menina Amelia tentou debater-se sem sucesso, opondo-lhe toda a resistência de que foi capaz. Enrique sentiu prazer quando aquela gata selvagem, com o seu ódio exsudado, tentou escapar do seu labirinto. Afastou-se e encostou-a à parede, estrangulando os seus sonhos de liberdade. Apertou com força para que entendesse que, quanto mais porfiasse, mais apertaria a sua presa. Ela, ao sentir-se já sem ar, rendeu-se; abriu as mãos e deixou que ele satisfizesse a sua luxúria, pondo os lábios na sua boca. Ele posicionou-se a poucos dedos de distância, perscrutando o seu rosto congestionado, e ameaçou-a.
– Que progressos fez, menina Castro?
– Por favor… – sussurrou, abanando a cabeça. – Não faça mal à minha mãe. Deixe-nos em paz.
Foi então que entendeu que o seu plano com a menina Castro havia fracassado e que estava num ponto morto. Por isso, virou-se e dirigiu-se à saída com os estertores dela, que tentava mastigar o ar que lhe faltava, atrás de si. Mais tarde, no entanto, a sua deceção inicial converteu-se em júbilo. A menina Castro não tinha já qualquer utilidade para ele e por isso a sua estratégia devia evoluir, pelo que se concentrou em perceber as mudanças das quais podia efetivamente tirar proveito.
Enquanto adulava Dona Mercedes, fixara o olhar nos pormenores durante a ceia. Estes tinham-se fortuitamente sucedido diante dele, revelando-lhe o que não sabia: que a menina Castro, sem o procurar, tinha conquistado o coração do negro e que, sem saber, ela mesma se tinha apaixonado pelo escarumba. As suas mostras de cortesia, o abandono conjunto da ceia, a forma como os dois se haviam sentado, a dedicação do negro, sempre vigilante. O boçal era o seu novo guardião e, se o tivesse descoberto no quarto dela, teria tido problemas. No entanto, embora não fosse exatamente o que desejara, pensou que aquilo podia funcionar, nalgum sentido, como o seu plano original. Por isso adaptou a sua estratégia: se a menina Amelia não podia alcançar o coração do duque, podia, pelo contrário, deitar-se com o negro tantas vezes quantas fossem necessárias até ficar grávida. Se ele lho ordenasse, a rapariga faria qualquer coisa para salvar a vida da mãe, pois já o demonstrara sobejamente com o seu silêncio depois do assalto. Fornicar com o negro, por mais repugnante que lhe parecesse, não o seria para ela.
Se conseguisse esse objetivo, só o rumor na corte de que o negro livre de Castamar se tinha deitado ou, melhor ainda, deixado grávida uma mulher solteira e branca seria um escândalo insuportável para qualquer casa. Não haveria ninguém na corte, nem Sua Majestade o rei Filipe, que tanto apreço tinha pelo duque, que não lhe virasse as costas. Se alguma coisa a aristocracia tinha demonstrado ao longo do tempo era ser capaz de superar qualquer escândalo, e fazia-o repudiando o afetado como se nunca tivesse feito parte da elite. Por isso a nobreza permaneceria para sempre na terra dos homens.
Com Castamar em desgraça, poria outros recursos em movimento para provocar a queda definitiva de Dom Diego no seu ansiado duelo. Ainda assim, podia ser que toda a sua nova estratégia devesse ser novamente reformulada, pois a mensagem codificada de Hernaldo – um bilhete vazio com um xis traçado – fazia com que fosse imperioso que se encontrassem.
Subiu pelo caminho que serpenteava pela montanha até ao lugar combinado. Hernaldo devia estar há já algum tempo à sua espera. O lacaio cumprimentou-o sem protocolo e ele apenas levantou o queixo, mantendo-se a cavalo, sem desmontar.
– Excelência, tenho uma má notícia para os nossos interesses: a mãe da menina Amelia faleceu ontem à noite – disse-lhe com o chapéu entre as mãos inquietas. – Avisaram o padre para que lhe desse a extrema-unção. Temo que seja público, não o poderemos ocultar.
Amaldiçoou-se por ter deixado a velha ao cuidado de uma criadagem devota a Deus. A ele, que via a Igreja como outra forma de poder na Terra, pouco lhe importava que a defunta fosse para o outro mundo com o sacramento dado. Meditou por alguns instantes, compreendendo que não só a sua forma direta de controlo sobre a menina Amelia se tinha esfumado, mas também a mordaça que lhe aprisionava a língua. Assim que a rapariga chegasse a El Escorial, saberia da morte da mãe.
– Esta manhã, estavam a embalar os seus pertences e vi o boçal junto dela. É bem possível que queiram dirigir-se aí e que o negro a acompanhe – observou em voz alta.
– Assim que descobrir, irá contar ao Dom Diego as pressões que recebeu da sua parte – disse Hernaldo.
– Não, ao Dom Diego não dirá nada. Primeiro, contará ao escarumba – respondeu-lhe Enrique. Esse facto era já incontornável e mais uma vez a sua estratégia metia água. No entanto, podia controlar a situação de outra forma. Havia que precipitar os planos para o negro. – Prepara a gente do Saguão, vamos pôr-lhe o mel na boca para que caia de uma vez por todas na nossa teia. Por outro lado, quero que envies três homens experientes a El Escorial, e outro grupo à sua casa de Madrid, a de Leganitos. Qualquer comunicação com Castamar por parte do negro deve ser cortada pela raiz. Uma carta, um correio ou até ele mesmo se não for ao Saguão. Está na hora de ajudar o amor, querido Hernaldo.
O soldado arqueou as sobrancelhas, confuso, pois não conseguia entender exatamente o que lhe havia passado pela imaginação. Não há nada mais punitivo do que a tragédia quando se ama, pensou Enrique. Toda a discussão cessa de imediato e só o amor importa. Conhecedor dos desejos ocultos do negro e da menina Amelia, disse para consigo que, se a mãe da menina Castro não era já um instrumento de coação para o silêncio desta, sem dúvida que o negro o seria. No fundo, capturá-lo sempre estivera nos seus planos, agora só iam forçar a situação.
No mesmo dia, 18 de outubro de 1721
Nessa mesma manhã, Clara tinha deixado Castamar para trás na carroça do senhor Galindo, um dos cocheiros de Sua Excelência. Finalmente, com uma venda nos olhos e o terror instalado no estômago, atravessaram a Ponte de Segóvia e entraram pela Porta da Ponte. Depois, subiram até à central das cocheiras da posta. Como uma cega, auxiliada por uma vara, Clara saiu da carroça e o senhor Galindo conseguiu-lhe um refúgio no interior do edifício. Após despedir-se dele, comprara um bilhete numa diligência para Alcalá de Henares que sairia em breve. Ouvira dizer a muitos dos criados temporários de Castamar que Alcalá era já um município grande onde havia mais casas ilustres; mais rurais e de menos avoengos que a de Dom Diego, mas seguramente mais cómodas para trabalhar nas cozinhas, onde podia haver uma vaga como ajudante ou subajudante. Não lhe seria difícil conseguir isto, sobretudo porque Dona Úrsula se aproximara mesmo antes de partir e, para sua surpresa, lhe estendera umas referências insuperáveis sobre o seu trabalho em Castamar. Aquilo deixara-a atónita, pois nem as tinha pedido nem as esperava. Quando ia a perguntar o motivo das ditas referências escritas, a governanta adiantou-se, interrompendo-a.
– Não há nada nesse bilhete que não seja verdade – disse-lhe num tom hierático.
Fosse porque desejava que se instalasse noutra casa nobre para não a voltar a ver, fosse porque, pese embora o seu carácter combativo, Dona Úrsula não suportava a mediocridade, agradeceu-lhe o gesto, ciente de que, mais tarde ou mais cedo, aquela carta lhe proporcionaria um trabalho em qualquer cozinha decente. Agora, já não lhe importava muito se tinha de baixar o seu estatuto para abandonar a fazenda o mais cedo possível. Ainda se lembrava de como o amigo do duque, Dom Enrique de Arcona, abusara da sua proximidade e da sua posição para a humilhar. Fora obsceno e indecoroso, e o pior era que Dom Diego tinha ficado ali parado, completamente impassível, sem lhe importar minimamente que ela fosse vítima da sua grosseira aposta, dos comentários jocosos e de se ter visto exposta àquela humilhação pública. Qualquer cavalheiro decente saberia isto, dissera-lhe então, erguendo a voz. Agora, lamentava ter-lhe dedicado essas palavras desabridas. Era, porém, um defeito que não podia remediar: dizer o que pensava nos momentos de exaltação. Por isso, tinha, por sua vez, de partir novamente com os sonhos quebrados.
Recordou-se de estar na mesma situação quando saíram da casa alugada. Nessa ocasião, a mãe, a irmã e ela tomaram consciência de que o apelido Belmonte, que outrora era um símbolo de erudição médica entre os aristocratas, caíra no mais profundo anonimato. Tinham passado a fazer parte de um estrato social diferente, do qual nunca sairiam, que as afastara para sempre daqueles tempos em que só importava às mulheres conseguir um bom casamento. Não voltariam já as refeições com a alta sociedade madrilena, em que ouviam as composições de guitarra de Santiago de Murcia, nem as galas do Palácio do Bom Retiro quando atuavam os Trufaldines italianos ou as companhias espanholas de Juan Álvarez ou de José de Prado; nunca mais voltariam a ser convidadas para aquele grupo seleto. Ela teve saudades, mas a mãe, que tinha já um mundo feito nesses círculos, sofreu uma ferida que a acompanharia para o resto da sua vida. Para Clara, aquele grupo de privilegiados a que haviam pertencido acabara por converter-se apenas no «círculo da vaidade», onde todos queriam ser mais, comer e beber mais, possuir mais, e pelo caminho esqueciam-se de que a felicidade não se encontra em satisfazer grosseiramente os prazeres.
Anos mais tarde, quando a mãe e ela trabalhavam já em casa de Dom Giulio Alberoni, com a sua situação económica ao menos normalizada, decidiram que a irmã continuaria com as suas aulas de música, a fim de poder ganhar a vida como professora de cravo. Foi assim que conheceu um rapaz tão doce como ela, Ramiro de la Riva, excelente cravista, que já tinha dado concertos para vários ilustres em Madrid e em Sevilha. O rapaz ficou encantado por Elvira e passou mais de oito meses a cortejá-la, até que a pediu em casamento. Ramiro encontrara, graças aos seus dotes, um posto de cravista no corpo de músicos de Jean-Joseph Fiocco, mestre de capela da arquiduquesa Maria Isabel da Áustria, solteira e amante da música. Elvira, por sua vez, mais apaixonada ainda do que ele, só pôde aceitar. Depois da boda, simples mas distinta, em que Clara cozinhou quase tudo com a mãe, ambas choraram, felizes, ao ver partir Elvira rumo a Viena. Embora fosse um casamento modesto, para a irmã aquilo significava deixar os problemas para trás. Tinha tantas saudades de ambas que às vezes não podia deixar de imaginar o que seria voltar a vê-las nalgum momento. No entanto, tinha sepultado essa ideia sob o peso da sensatez, convencendo-se de que isso jamais ocorreria e que ter esperança só lhe traria dor.
O facto de abandonar Castamar confirmava que a sua vida não estava a salvo de reveses e desenganos. O último era, sem dúvida, o do duque. Na sua tristeza, conjugava-se a desilusão que sofrera com Dom Diego e o facto de perder o seu posto de cozinheira.
Conseguiu controlar o choro antes de a avisarem que a carroça puxada por seis mulas partia para Alcalá de Henares. Atrás dela, subiu uma senhora obesa que não parava de espirrar para um avental de lavadeira, tão descuidado como as unhas, partidas e desbotadas pelo uso de sabões abrasivos. Tapou instintivamente a boca com a mão e a mulher, ao vê-la, gargalhou devido ao seu medo do contágio.
– É só o pó do caminho que se me meteu no nariz desde Toledo – disse, quase a gritar.
Ainda assim, por prudência, Clara afastou-se um pouco dela. A seguir, entrou um homem pequeno com rasgos de pássaro e que exibia uma tonsura natural.
– Casimiro García, para as servir – cumprimentou sem grande entusiasmo, enquanto segurava um cartapácio como se fosse o maior dos seus tesouros.
Sentiu-se um pouco mais confortável ao fechar a cortina da janela e sentir-se isolada no interior do carromato, que felizmente era completamente fechado. Reclinou-se e dispôs-se a dormir, mas, assim que fechou os olhos, uma maré infinita de imagens efervescentes brotou-lhe na mente e, sem poder evitá-lo, os olhos encharcaram-se-lhe de memórias. Viu-se assaltada por uma imensa vontade de chorar ao recordar o dia em que Dom Diego estivera quase a beijá-la; ou quando os seus dedos se tocaram na entrega dos volumes; ou quando recebera cada uma das suas afáveis palavras em todas as suas visitas ou nos seus bilhetes secretos; ou quando a fitava daquela forma tão poderosa e inebriante. Tinha de fazer um esforço enorme para se convencer de que todos aqueles pormenores não haviam sido uma miragem, que se quebrara duas noites antes, quando ele apostara a sua pessoa como se fosse um jarrão decorativo e, pior, permitira aos amigos, concretamente ao marquês, que a humilhasse sem mexer um único dedo. Por isso, abandonou até mesmo os livros que ele lhe tinha oferecido. Ainda assim, não quis que ficasse a saber por outros da sua renúncia e dedicara-lhe algumas palavras escritas de despedida, para que entendesse o motivo da sua partida e quão profundamente arrependida estava por lhe ter faltado ao respeito ao levantar a voz. Apesar da sua necessidade de esquecer, não pôde deixar de reviver a sua chegada a Castamar precisamente quando saía de Madrid pela Porta de Alcalá e os bois mugiam, cativos do jugo, puxando a carruagem. Saí como entrei, pensou. Virou o rosto e encostou-o ao tabique de madeira da carruagem, tentando conciliar o sono para evitar a situação embaraçosa de que os demais passageiros detetassem as suas lágrimas. Fechou os olhos e tentou não pensar em Dom Diego e nos seus olhos claros. Talvez fosse o cansaço da voragem daqueles dias, ou o não ter podido conciliar o sono durante a noite devido à amargura de ter de deixar Castamar, mas, assim que a imagem do duque se desvaneceu, sentiu as pálpebras como duas lajes de pedra e caiu num sono profundo.
Acordou sobressaltada pelo estrondo de um trovão que inundou toda a campina. A mulher bojuda, após assoar novamente o nariz vermelho, riu-se mostrando a dentadura desmontada, e o homem pequeno sorriu-lhe.
– Não tenha medo, é só uma tempestade – disse, agarrando ainda o cartapácio. – Já deixámos Torrejón para trás.
Clara espreguiçou-se um pouco e pôde sentir como o aguaceiro golpeava duramente o teto da carruagem. Alegrou-se por ter estado a dormir, pois a lavadeira tinha aberto a cortina. Agradeceu que a tarde e a tempestade lhes tivessem caído em cima e não pudesse ver nada através dos vidros cobertos de vapor.
– Não falta muito – acrescentou a mulher –, em breve chegaremos a Venta de Los Viveros.
Mal tinha acabado de falar quando, de repente, a carruagem passou num buraco fundo que lhe cortou a frase e o fôlego. O impacto fez com que a carruagem bamboleasse e um poderoso rangido percorreu o habitáculo, fazendo com que todos se segurassem. Com certa calma, o maioral e o zagal que o acompanhava deram vários gritos desde a boleia para fazer avançar as mulas. A carruagem recuperou uma certa horizontalidade ao sair do buraco onde se havia incrustado.
– Tudo indica que nos vamos molhar – disse o homem do cartapácio, abanando a cabeça.
Clara sentiu um terror profundo ao ver-se debaixo da tempestade num espaço aberto, sem nenhum tipo de proteção. Lá fora, podia ouvir-se a respiração do maioral, lançando impropérios e inspecionando a roda. Rezou para não ter de abandonar a segurança que lhe ofereciam as quatro paredes de madeira, enquanto sentia que os seus suores aumentavam. A portinhola abriu-se sem aviso prévio e o cocheiro, um homem gordo de ombros largos e cara plana, fitou-os encolhendo os ombros.
– Temo que terão de sair todos. O eixo estilhaçou-se e acho que vou precisar do menor peso possível, tenho de regressar a Madrid e levar o carro às cocheiras para que o arranjem – disse, com voz rouca. – Em Alcalá, não há onde o fazer.
Sem conseguir controlar-se, Clara engoliu em seco e começou a respirar entre pequenos suspiros, sentindo que o coração acelerava e que se sentia desorientada.
– Oiça, se está a chover a cântaros – queixou-se a lavadeira.
O maioral, ensopado até aos ossos sob a sua casaca de couro, voltou a encolher os ombros.
– Quanto a isso não posso fazer nada. Venta de Los Viveros fica a pouco mais de meia légua – disse-lhes.
Clara aninhou-se em posição fetal ao imaginar-se naquele espaço de proporções ilimitadas que teria de percorrer sozinha. Começaram os tremores e sentiu uma certa fraqueza muscular. A mulher bojuda inclinou a carruagem ao apear-se e o homem chamado Casimiro seguiu-a, soltando grunhidos entrecortados ao sentir a chuva, como se assim pudesse evitar ensopar-se. O moço estava já a tirar as bagagens para as dar aos seus donos quando o maioral ficou a olhar diretamente para ela.
– Vamos, desça – ordenou.
– Senhor, não me é possível… eu não posso. É demasiado espaço aberto – balbuciou ela, procurando nos bolsos da saia a venda para os olhos.
O maioral fitou-a sem entender, como se estivesse meio atordoada ou lhe faltasse inteligência.
– Demasiado quê? – perguntou, de cenho franzido.
– Senhor, oiça, eu… – tartamudeou Clara com a voz embargada ao vislumbrar o abismo para lá da portinhola. – Preciso de ficar aqui dentro. Há…
– Oiça, saia da carruagem – advertiu-a o cocheiro, perdendo a paciência. Ela tentou dizer-lhe que não tinha forças, que não podia sair dali. – Olhe, menina, eu disse para sair. Não posso levar peso!
Clara tentou falar, mas sentiu uma convulsão que quase a fez regurgitar a comida. Então, o maioral entrou na carruagem e agarrou-a pelos pulsos.
– Saia, caramba! – gritou, e puxou-a com tanta força que ela se viu expelida para o exterior.
Sentiu que a chuva lhe ensopava todo o corpo de terror, enquanto tropeçava nos degraus e, quase sem forças para esticar as trémulas pernas, caiu de bruços na lama. Mal abriu os olhos e verificou que tinha perdido a venda na queda. Tateou o terreno enquanto o zagal a ajudava a levantar-se até a colocar num pequeno talvegue perto do caminho. Aterrorizada, manteve-se de joelhos abraçada a um velho toco de olmo, com o pânico a devorar-lhe as entranhas e a debilidade a crescer-lhe nas veias. Atrás, o cocheiro gritou ao rapaz que deixasse de a ajudar e se pusesse à frente das mulas para puxar o cabresto. Clara, de olhos fechados, procurou a venda entre as moitas vizinhas, sem sucesso, percebendo que as forças lhe fugiam rapidamente do corpo. Supôs que o forte vento a teria deslocado. Abraçada ao toco, tentou pedir ajuda com as suas últimas forças, desfiando um fio de voz quase inaudível sob a tempestade. A lavadeira e o homem pequeno do cartapácio tinham desaparecido pelo caminho atrás da cortina de água e da escuridão da tarde. Atrás dela, os bois começavam o caminho de regresso a Madrid. Quase a desfalecer, com um exército de formigas a percorrer-lhe braços e pernas e a roubar-lhe até o fôlego, entreabriu os olhos por um instante e vislumbrou entre a penumbra rompida pelos relâmpagos um bosque afastado do caminho. Pensou que, se chegasse até lá, lhe serviria de refúgio.
Levantou-se, débil, encostando o rosto à casca antiga e quebrada do olmo. Sem pensar na sua bagagem, que abandonou atrás de si, deu alguns passos em direção ao bosque cerrado. Compreendeu a inutilidade do seu esforço quando abandonou o talvegue e entrou no páramo de erva alta. Poucos mais passos tinha dado quando os joelhos se lhe quebraram e lhe sobreveio um desmaio. Caiu com a respiração sufocada, as náuseas dentro do corpo e a vista desfocada. Soube então, antes de perder os sentidos, que provavelmente nessa noite encontraria a morte sob a tempestade, o frio e a debilidade.