CAPÍTULO 36
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21 de outubro de 1721
Duas noites após a sua chegada, no domingo de manhã, Diego ainda sentia que a menina Belmonte se lhe escapava por entre os dedos. Embora nessa mesma manhã a febre tivesse baixado e a pulsação fosse mais constante, o doutor Evaristo não fora de todo otimista. Manteve-se junto dela o tempo todo, saindo do quarto a espaços e dividindo a preocupação entre ela e o irmão.
Desde a sua partida para El Escorial que não tinham notícias de Gabriel. De facto, nessa mesma manhã ao pequeno-almoço, Alfredo oferecera para ir procurá-lo àquele município. A mãe e Dom Enrique, por seu lado, não tinham parado de cochichar sobre a sua situação, como dois fantasmas curiosos que não entendem o que é ter o coração arrebatado. A mãe, à medida que os dias passavam, tinha-se vindo a mostrar cada vez mais preocupada com a menina Belmonte e, já que não podia fazer nada pelo seu outro filho, interessava-se ao menos pela saúde dela. Sempre foi assim, pensara Diego na tarde anterior. Uma mulher que não suporta mudanças, mas com um coração de ouro.
Aceitar Gabriel levara-lhe um ano de discussões com o marido. No fim, o que o amor marital não conseguira, conseguiu-o Gabriel quando correu para as saias dela e lhe chamou «mãe». Com a menina Belmonte começava a acontecer o mesmo, e ele sabia.
Alfredo, Francisco e a mãe, que tinham participado na estúpida aposta com Dom Enrique, pareciam sentir-se culpados pelo sucedido. Além do mais, no caso concreto da sua progenitora, tinha começado a fazer perguntas a Simón Casona e ao senhor Elquiza sobre Clara Belmonte.
Após a primeira noite, ao ver que possivelmente morreria, a mãe tomou a iniciativa e disse ao doutor Evaristo que devia ficar na fazenda dia e noite.
– Faça tudo o que puder para a salvar. Ficar-lhe-emos agradecidos.
Isto não significava que visse com bons olhos que ele pudesse chegar a pedir a mão da sua própria cozinheira em casamento. De facto, sabia perfeitamente que tentaria evitá-lo caso tivesse oportunidade, e não podia negar que motivos não lhe faltavam. Sabiam ambos que a aristocracia madrilena não deixaria de a ver como a cozinheira que fora.
A ironia da questão era que, caso, no seu tempo, ele tivesse tomado a filha do médico como esposa, a corte tê-lo-ia julgado como um casamento vantajoso para a família Belmonte, mas ela acabaria por ser aceite como duquesa. Com o passar do tempo, os mais chegados que conhecessem a sua afeição pela cozinha tê-la-iam visto como uma extravagância inevitavelmente herdada da classe social de onde provinha. No entanto, após ter sido a cozinheira da propriedade, aquilo passaria de um casamento vantajoso a um escândalo e, claro, a morte social para eles. Nenhum ilustre, e muito menos um Grande, quereria conviver com uma duquesa cujo passado estava nos fogões, e dificilmente tê-la entre os seus amigos. Não obstante, ele, que sabia o que significava amar com toda a alma, que conhecia o privilégio que isso implicava, não podia deixar passar a oportunidade de ser feliz de novo. Por isso, não lhe tremeria a mão, por mais que o resto da sociedade não o aceitasse.
Perdera Alba há uma década e só durante aquele ano é que o seu fantasma se fora diluindo. Acabou de a enterrar quando saiu em busca da menina Belmonte debaixo da tempestade. Desde esse momento, tomou plena consciência de quão apaixonado estava por ela. Por isso refletira sobre a questão e, na sua mente, foi-se desvendando o seu próximo objetivo: restaurar ante toda a sociedade a antiga menina Belmonte. Devia convertê-la de forma efetiva numa ilustre com a aceitação real antes de ser a duquesa de Castamar. Não queria que acabasse por levar a vida que Gabriel tivera, a viver numa gaiola dourada. Ela fora um anjo em todos os sentidos possíveis, e não merecia menos. Simón Casona tinha-lho dito há já um ano, e com razão. Todo o bem que ocorrera em Castamar viera da sua mão. Por isso, não queria deixá-la nem por um instante e, após ver como Alfredo partia à procura do seu irmão, Diego regressara ao quarto para observar como o seu pequeno e delicado corpo se consumia entre as febres e a inconsciência.
A sua pele pálida e as suas órbitas encovadas não pressagiavam nada de bom. Limpava-lhe o suor e, de vez em quando, obrigava-a a beber, entre gemidos lastimosos, tal como o médico ordenara. Pela segunda vez em toda a sua vida, sentia-se paralisado, e a impotência devorava-lhe o espírito. Amaldiçoara Deus, increpara-O e insultara-O por lhe ter mostrado o caminho da sua salvação para agora lho arrebatar de novo. Depois, quando já não podia cerrar mais os punhos de frustração, disse a si mesmo que a culpa fora apenas sua, do seu estúpido orgulho.
Assim fora passando o tempo, entre gotas de suor e o seu desassossego. Diego mal comeu e, quando a febre da doente voltou a subir, a mãe e o médico julgaram oportuno que Antonio Aldecoa, o seu capelão, aparecesse de novo para lhe dar a extrema-unção. Só de o ouvir, antes que pusesse um pé no quarto, ordenou-lhe aos gritos que fosse embora. Aquilo recordou-lhe de imediato a cena ocorrida 10 anos antes, quando Alba respirava por um pequeno fio de vida e o sacerdote entrara para oficiar o sacramento. Nessa ocasião, o capelão entrara no seu quarto desobedecendo às suas ordens e, embora ele se tivesse precipitado para Dom Antonio, agarrando-o pela sotaina e ordenando-lhe que partisse, este tinha-se mantido firme.
– Não vou sair, Excelência. Pode bater-me, se isso faz com que se sinta melhor, mas a Dona Alba precisa de ir para o Paraíso e eu vou dar-lhe a extrema-unção. Cristo concedeu-lhe esse sacramento e o senhor não pode tirar-lho – dissera-lhe então o padre.
Da mesma forma, o capelão entrou no quarto com passos curtos. Fitaram-se e Diego viu novamente a eterna desculpa ao Altíssimo, aquele a quem mais culpava.
– Não permitirei que lhe dê ainda a extrema-unção.
O capelão assentiu com a sua serenidade implacável.
– Não estou aqui por ela. A Clara Belmonte está a travar uma batalha feroz contra a morte e não é tempo de ser ungida com o último sacramento.
Diego fitou-o, compreendendo que a presença do padre Aldecoa o tinha a ele como objetivo.
– Todos pensam que está apaixonado por esta rapariga – disse-lhe ele. – É verdade?
Ao ouvi-lo em voz alta, Diego sentiu-se estranho, como se não tivesse direito a apaixonar-se de novo. Baixou a cabeça e não pôde senão assentir, como se se confessasse. O capelão aproximou-se lentamente e pôs-lhe a mão sobre o ombro, como se fosse seu pai.
– Vou rezar pela menina Clara tal como há 10 anos rezei pela Dona Alba. Pode rezar comigo, se quiser.
Ele abanou a cabeça.
– Eu já não tenho mais rezas. Esgotei todas as que tinha com a Alba – murmurou. – Se então não serviram de nada, não faria sentido que agora servissem.
– Não posso obrigá-lo a rezar, mas lembre-se de que a prece é por ela – disse-lhe o capelão. – É pela menina Belmonte que ergue a sua voz ao Senhor.
Contendo-se a duras penas, fitou-o, evitando que as lágrimas lhe fugissem dos olhos, e assentiu como uma criança. Conduzido pelo sacerdote, ajoelhou-se junto à cama e voltou a rezar, sem esperança alguma, embora tivesse jurado que nunca mais voltaria a fazê-lo.
Ainda assim, a menina Belmonte não melhorou. A febre subiu ainda mais e só de vez em quando é que ela abria os olhos e levantava ligeiramente a mão, roçando-lhe o rosto. Depois, caía naqueles longos espaços de ausência. Prevendo o pior, deu ordens ao capelão para que dormisse num dos quartos vizinhos, para o caso de as suas pulsações ou respiração piorarem e ter de lhe ser administrado o sacramento.
Passou de novo a noite junto dela, pegando-lhe na mão, sem conseguir evitar ouvir a sua voz a martelar-lhe nas têmporas, ordenando-lhe que não saísse dali. Passou a noite inteira entre o sono e a vigília, dormindo a incómodos espaços, acordando com o coração agitado para verificar que ainda respirava, como se o facto de estar acordado impedisse que ela parasse de respirar. Afastou do pensamento o difícil que seria para si superar o seu falecimento. Já se havia enclausurado em vida atrás dos muros de Castamar devido à morte de Alba, abandonando a guerra, consumido pela dor e com a amargura como única companheira, e sabia que aquele segundo golpe seria ainda pior.
Desviou então o olhar para a menina Belmonte e, antes de conciliar o sono, desejou com todas as suas forças não se ver novamente de alma rasgada e coração partido.
Na manhã seguinte, acordou com os primeiros raios de sol a aquecer-lhe o rosto, abriu as pálpebras e aproximou-se, quase como um hábito, para lhe tocar na testa. Foi então que percebeu que já não ardia e que a sua pele tinha melhor cor. Suspirou de alívio. Ordenou que trouxessem água fresca para lhe dar de beber e que duas raparigas mudassem os lençóis e lhe lavassem o corpo com água quente e um pano. Esperou lá fora até que o doutor Evaristo acabasse de a examinar e, quando este saiu, manteve o coração em suspenso à espera do veredicto. Olhou-o nos olhos e o suspiro de alívio do médico foi o melhor dos augúrios.
– Se a febre não voltar a subir, penso que o pior já passou – disse, com um sorriso. – Deve continuar a beber e, se acordar, deve comer qualquer coisa. É um milagre que a rapariga continue viva depois de um resfriado daqueles.
Quase sem se dar conta, Diego deu graças ao Senhor fechando os olhos e não pôde conter um sorriso de alívio e de alegria. Com a boa notícia, decidiu descer para tomar o pequeno-almoço e tratar de averiguar se o irmão tinha dado sinais de vida ou se se sabia alguma coisa de Alfredo, que partira no dia anterior à sua procura. No entanto, quando a senhora Berenguer lhe disse que não tinha quaisquer notícias, passou da preocupação pela menina Clara à preocupação por Gabriel. Parece que não consigo estar tranquilo, pensou. Tomou o pequeno-almoço na esperança de receber em breve notícias do irmão e, antes que a governanta saísse porta fora, deteve-a, dizendo-lhe que devia informar a sua mãe, bem como o resto da criadagem, das melhoras da menina Belmonte.
– E diga-o também ao Dom Enrique, senhora Berenguer – acrescentou. – De certeza que está muito preocupado.
A governanta, percebendo o seu tom irónico, perguntou-lhe se desejava mais alguma coisa.
– Sim, espere um instante – respondeu ele. – Quando a menina Belmonte recuperar e regressar ao trabalho, quero que me informe de qualquer problema que possa ter nas cozinhas.
– Não compreendo, Excelência. Não sei que tipo de problema poderia a menina Belmonte ter nas cozinhas, pois…
– De certeza que nenhum se a senhora estiver presente – interrompeu-a Diego. – Além disso, nunca mais volte a aceitar uma demissão dela, e muito menos sem antes mo comunicar de imediato.
Ela assentiu, dando-lhe razão, e disse-lhe que a esse respeito seria melhor que soubesse o pormenor de que as cozinhas já não estavam sob a sua jurisdição por ordem do senhor Elquiza. Diego estranhou a decisão do seu mordomo. Desde sempre que Dona Úrsula geria aqueles assuntos com extrema diligência. Fitou-a, franzindo o cenho, e ela apressou-se a dar-lhe uma explicação:
– Sem querer aventurar-me demasiado, é bem possível que, depois do seu incidente, senhor, Dom Melquíades queira recompensar Sua Excelência com um maior esforço e eficiência no seu trabalho. Como é evidente, disse-lhe que era uma carga de trabalho adicional desnecessária para ele.
Diego estalou a língua, aborrecido. Já tinha bastantes problemas sem que agora o mordomo de Castamar quisesse recompensá-lo por um passado que ficara enterrado e isso acabasse com uma criadagem descontrolada. Deu ordens à governanta para que as cozinhas ficassem novamente sob a sua competência e disse-lhe para se retirar. Após terminar o pequeno-almoço, deu um pequeno passeio a cavalo e regressou para guardar a paciente, desejando que a febre não subisse de novo. Graças a Deus, não o fez e já de tarde, enquanto ele ceava, disseram-lhe que a menina Belmonte tinha finalmente acordado e que dissera ter fome. Assentiu e ordenou que o deixassem sozinho. Então, sem conseguir conter-se, as lágrimas que não se permitira derramar na presença do capelão transbordaram da represa das suas pálpebras. Cobriu o rosto com as mãos e permitiu-se chorar da única maneira que os homens podiam fazê-lo: a sós.
22 de outubro de 1721
O bilhete que acabava de receber da parte de Hernaldo devia ter-lhe arrancado um sorriso. Com a sucinta frase «Não foi fácil, mas está feito», indicava-lhe que Gabriel de Castamar estava já fora de jogo. Por baixo, uma segunda linha avisava-o de que a segunda parte do plano estava a ser executada com sucesso: «Conte um dia desde a receção da mensagem que tem na mão e tornar-se-á público. As cartas estarão em circulação dentro de dois dias.» Ambas as frases não tinham representado para Enrique o prazer esperado. Pelo contrário, recordou-se de Alba algo entristecido. Sentira-se vazio ao pensar que, por mais êxito que tivesse, não havia nada capaz de trazer Alba de volta. Esse vazio era um velho conhecido que lhe assolava a alma mesmo antes da sua perda.
Desde sempre que sentira que dentro de si se aninhava um poço que tudo devorava e o fazia sentir-se vazio. Só por duas vezes sentira que aquele torvelinho devorador diminuía. A primeira fora ao conhecer Alba. A segunda fora precisamente com a sua morte, quando se mantivera fechado no quarto, bêbedo, compadecendo-se da sua miserável existência. Curiosamente, a sua salvação viera pela mão de Hernaldo. O soldado entrara na sua câmara, apesar da sua proibição, e movera-se pela penumbra do quarto desordenado e sujo. Ao vê-lo, gritou-lhe que saísse do quarto, mas Hernaldo ficara diante dele, fitando-o sem qualquer temor. O marquês levantou-se e desembainhou o espadim, apontando-lho ao pescoço.
– Vou matar-te por isto, sabes?
– Pois faça-o, mas não vou sair.
Quisera descarregar naquele infeliz todas e cada uma das suas penas, e que o seu vazio o engolisse por completo. Mas a coragem que os seus olhos demonstravam, fitando os seus, depositando a vida nas suas mãos mesmo estando ele bêbedo, fizeram com que o admirasse. Em toda a sua vida, nunca tivera ninguém ao seu serviço que o contrariasse uma vez que fosse, que se tivesse insubordinado e não aceitasse as suas ordens como lei. Começou a rir-se ao compreender que Hernaldo fora o primeiro e seria seguramente o último.
– Acabo de me dar conta de que não posso matar-te, Hernaldo – disse-lhe entre risos embriagados, atirando a espada para o outro lado do quarto. – É muito patético, mas… sinceramente, és o único amigo que tenho.
Ao dizer aquilo, soube que Hernaldo se havia convertido no único companheiro fiel da sua vida, algo que nunca suspeitara quando o resgatara da prisão sevilhana e procurava apenas um matador para as suas intrigas. O soldado conduziu-o à cama, perguntando-lhe há quanto tempo não dormia. Ele encolheu os ombros e jurou-lhe que ia destruir Dom Diego de Castamar, nem que isso lhe custasse a vida. O soldado assentira de forma mecânica enquanto abria os lençóis. Ele agarrara-o pelo peitilho.
– Não me estás a ouvir! – gritara. – Ele tirou-me tudo: a vitória na guerra, a mulher que amava, o título de grandeza a que estava destinado! Não pararei até ele ter perdido tudo o que possui, ainda que me custe a vida fazê-lo!
Hernaldo apenas suspirou, cravando nele o seu olhar de pedra.
– Não conseguirá nenhuma vingança se não descansar primeiro – disse.
Deitou-se, mas não tardara a sentir que, caso o soldado saísse daquela sala, o seu vazio tornar-se-ia ainda maior. Por isso, pediu-lhe que não fosse embora. Assim haviam passado a última noite daqueles dias infernais, ele deitado e o matador sentado no nicho da parede. Assim haviam passado os anos, com dias melhores e outros em que lhe dava vontade de abandonar aquela vida, até que algo no seu interior se alterou e, uma manhã, saiu daquela penumbra decidido a procurar a sua vingança.
Desde então, acreditara que quando tivesse completado a sua estratégia, a sua felicidade iria aumentando até ser completa. Agora, a complacência era apenas gratificante. Finalmente o destino do asqueroso negro de Castamar estava nas suas mãos. Para preencher o vazio da sua alma, ordenou que lhe açoitassem as costas quando o capturassem, para que jamais esquecesse o lugar que lhe correspondia naquele mundo de Deus. Quando o negro tivesse recebido o que merecia com o flagelo, levá-lo-iam de Madrid para Portugal metido numa caixa, para ser vendido como escravo com um nome diferente e embarcado rumo às Américas.
Talvez com um pouco de sorte o seu gozo aumentasse em breve. As cartas estarão em circulação dentro de dois dias, pensou novamente. Mal podiam Dom Alfredo e Dom Francisco imaginar que as suas vidas iam mudar irremediavelmente, submetidos ao mais absoluto escárnio ante a corte de Madrid. O primeiro, um homem irrepreensível, grande conhecedor da política, amado e respeitado por toda a corte e por Suas Majestades os reis, cairia na mais absoluta ignomínia por ser um sodomita que cometera um nefando delito, do qual tinha provas evidentes. O segundo, porque além de libertino – pois essa fama já a conquistara a pulso e entre os homens era algo valorizado – era um degenerado. Como prova disso, tinha a correspondência que Dona Sol, marquesa de Villamar, trocara com ele. Nas suas cartas, ela punha em evidência a sua amizade e confidências com Dom Francisco e, na última carta em concreto, contava a Enrique, muito preocupada, que o seu amigo lhe revelara num dia de embriaguez as orgias sodomitas que praticava com Dom Alfredo de Carrión.
Pouco importava que fosse falso, pois o de Dom Alfredo era verdadeiro e isso faria com que, por contágio, não houvesse defesa possível: toda a corte sabia que andavam sempre juntos. As provas contra um e outro circulariam juntamente com panfletos jocosos por toda a vila de Madrid e, a partir daí, era só uma questão de se sentar à espera de que a natureza mórbida da própria gente fizesse o resto.
Quanto ao assunto de Dom Diego, por outro lado, ia pô-lo em marcha nesse mesmo momento e, para isso, dirigir-se-ia ao encontro de uma angustiada Dona Mercedes. Poderia ter perdoado qualquer coisa àquela mulher, mas não que sofresse pelo desaparecimento de um escarumba. Os seus pensamentos viram-se interrompidos por um fidalgo que o informou de que Dona Mercedes o esperava, montada já no seu cavalo, para darem um passeio pela propriedade. Assentiu e disse que iria lá ter dentro de um instante. Queimou a carta que acabava de receber de Hernaldo e saiu para as cavalariças.
Cavalgou com Dona Mercedes até aos limites de Castamar, perto de Boadilla. Passada meia hora desde a sua saída, desmontaram e, na solidão proporcionada pelas azinheiras, a dama guardava um silêncio desagradável. O marquês trocou com ela alguns olhares, tentando romper o seu mutismo, até que ela referiu finalmente o desaparecimento do seu filho adotivo. Ele mostrou-se recetivo, esperando que essa conversa terminasse em breve para se centrar na relação problemática entre o duque e a cozinheira. Perscrutou-a por alguns instantes e verificou que, para lá das maneiras exageradas, do toucado elegante e da máscara ornamentada da sua cara, a idosa sofria uma grande perturbação. Aquele negro imundo apoderara-se do seu coração. Pobrezinha, pensou, é uma pena que uma mulher como ela sofra assim por um destroço daqueles.
– Deduzo pela sua expressão que não chegaram notícias de Dom Alfredo.
Dona Mercedes abanou a cabeça e colou o queixo ao peito.
– Não deve preocupar-se. De certeza que tudo acabará bem.
Mais uma vez, deu por si a mentir-lhe a fim de mitigar a angústia refletida no seu rosto. Disse para consigo que talvez fosse um dos poucos sinais de humanidade que lhe restavam, e tinha de admitir que o fazia sentir uma agradável sensação de normalidade.
– O senhor é um amigo leal – disse Dona Mercedes em resposta ao seu consolo. – Sempre esteve comigo nos momentos difíceis.
– E nunca deixarei de estar – respondeu ele. – De certeza que o seu filho está em perfeitas condições.
Ela manteve-se em silêncio, com os olhos claros carregados de imagens do passado. Ele acomodou-se e não disse mais nada. Finalmente, ela abriu os lábios.
– Lembro-me de quando o meu Abel o trouxe para casa – disse. – Tão pequeno, sempre tão calado, tão moreno… Pensei que o meu marido tinha perdido o juízo.
Bastou-lhe ver a expressão de pesar de Dona Mercedes para Enrique saber que o seu coração se partiria caso viesse a saber que estavam a marcar a pele do escarumba a chicotadas.
– O seu marido não devia tê-la feito passar por isso. – Pegou-lhe na mão para a reconfortar. – Adotar um filho de cor é só uma fonte de problemas. Ninguém de entre os nossos o aceitará jamais como igual. É um disparate.
– Sim – concordou Dona Mercedes. – Mas agora, ainda que pareça estranho dizê-lo, o Gabriel é meu filho, Dom Enrique.
Deixou passar uns minutos de silêncio.
– Se quiser, posso ir procurá-lo pessoalmente. Não suporto vê-la nesta situação.
Ela agradeceu-lhe com um gesto e aproximou-se-lhe da testa para aí depositar um beijo. Aquilo apanhou-o de tal modo desprevenido que ficou gelado. Os pais nunca lhe haviam demonstrado afeto. A mãe dedicava-se aos seus amantes e o pai ao poder. Por um instante, ficou paralisado, pois assaltou-o a necessidade de libertar o negro e proteger aquela idosa da sua angústia. Indo ao seu encontro, quase com a voz embargada, recompôs-se.
– A verdadeira fidelidade só pode ser provada nos piores momentos – respondeu-lhe, tentando acalmar-se.
Continuaram a cavalgar até ao córrego de Cabeceras e esperou até se recompor do terror que aquela demonstração de carinho lhe produzira. Compreendeu que os seus sentimentos pela dama podiam pregar-lhe uma rasteira, pois ela nunca poderia ser sua mãe, ainda que às vezes desejasse que o tivesse sido. Talvez, se assim tivesse sucedido, o seu espírito fosse outro, menos cruel e mais cândido. Tomou fôlego, descartando aqueles pensamentos.
– Ao menos a cozinheira safou-se – observou. – É um motivo de alegria.
Não mentia, certamente. Sem a menina Belmonte, o seu plano teria de passar pela infrutífera menina Amelia, e esse era terreno ermo. Dona Mercedes suspirou e Enrique leu-lhe os pensamentos.
– Está numa situação difícil, minha querida amiga.
Ela assentiu, segurando as rédeas do cavalo, e agitou-se nervosamente na sela.
– Bem sei. Não é normal que o Diego, depois de tanto tempo sem mulher alguma, acabe com uma cozinheira do seu próprio pessoal – confessou de súbito.
Enrique sentiu-se aliviado ao ouvir aquela frase, que lhe dava pé para dar início à sua pequena estratégia.
– Talvez o Dom Diego esteja confuso.
– O meu filho nunca esteve confuso na vida, e é isso que realmente me preocupa.
Ele viu o flanco aberto e, com a precisão de um alfinete, fitou-a com a sua melhor expressão de preocupação.
– O seu verdadeiro problema é essa rapariga insolente. Quanto mais cedo partir de Castamar, mais cedo o seu filho começará a sentir-se melhor.
Para Enrique, era já óbvio que Dom Diego estava apaixonado por ela. Bastava ver que não se afastara da sua cama nem por um momento desde a manhã de domingo, e era já quarta-feira. Ainda que a cozinheira tivesse sido em tempos uma senhorita – algo que ninguém questionava – a verdade era que já não o era e, apesar da sua educação, que a levava a opinar quando não devia, era apenas uma criada a cheirar a cebola. Esperou que Dona Mercedes concluísse o que todos já sabiam e aquilo que o seu velho coração mais temia.
– Talvez seja assim. Mas o Diego não permitirá que a menina Belmonte parta – explicou-lhe a duquesa. – Conhecendo-o como conheço, é possível que esteja a pensar em desposá-la… e isso seria desastroso. O apelido de Castamar no ventre de uma cozinheira! E isso se a rapariga chegar a poder conceber, pois já tem uma certa idade e, segundo me disse o meu criado, a mãe dela só produziu filhas.
– Não se aflija – disse-lhe ele, compreensivo. – Não suporto vê-la sofrer dessa maneira.
– Não consigo pensar nisso sem sentir um baque.
Sentiu-se um felizardo por Dona Mercedes ser tão capaz de ver os problemas e as suas consequências. Enquanto atravessavam uma das pontas sobre o córrego, Enrique fez uma pausa dramática para dar mais ênfase à sua proposta.
– Se me permite sugerir-lhe uma solução…
– Diga, seja o que for – respondeu-lhe ela, ansiosa por ouvir. – Se puder ajudar…
Ele fez-se de hesitante. A dama, com a angústia no seu interior, remexeu-se na sela de amazona.
– Não se cale, por Deus, Dom Enrique – pediu-lhe.
– O melhor que poderia fazer seria conseguir que alguém falasse com ela, que a fizesse ver o mal que está a provocar ao Dom Diego com a sua presença. Fazê-la entender o escândalo que seria para Castamar se chegasse aos ouvidos da corte que o duque saiu a cavalo à chuva para ir atrás dela e acabou por a instalar nos seus próprios aposentos. Se, além disso, se espalhasse o rumor de que talvez queira pedi-la em casamento, seria algo irrecuperável – disse, esperando que ela confirmasse que seria um desastre. – Se a rapariga decidir partir por sua livre vontade, o seu filho sairá da sua influência.
O rosto de Dona Mercedes iluminou-se.
– Talvez bastasse conseguir-lhe um posto noutra casa. No fundo, essa gente da plebe só se importa com essas coisas – acrescentou. – O importante é encontrar a pessoa adequada para tão delicada missão.
Dona Mercedes já o fitava como se ele fosse o melhor candidato possível: um ilustre, de fama e fortuna, e com a sua arte no dizer e no fazer! Não demorou muito a pedir-lho:
– Talvez o senhor, com a sua eloquência, pudesse tentar.
Finalmente, as palavras que desejava. Agora, teria a permissão de Dona Mercedes, e portanto da criadagem, que lhe proporcionaria a oportunidade de se aproximar da rapariga. Fitou-a com todo o carinho que foi capaz de demonstrar, abriu as mãos e respondeu-lhe com diligência que teria todo o gosto em ajudá-la em qualquer assunto. Claro que ia tentar, e tencionava fracassar por completo! Minha pobre velhinha… Terá um enfarte quando souber que o filho é o centro de todas as críticas.
Chegado o momento, tinha intenção de promover o escândalo. Uma vez lançado o rumor por terceiros, seria complicado demonstrar que fora ele o artífice do boato. O duque deixara tão evidente a sua inclinação pela cozinheira que qualquer elemento da criadagem de Castamar poderia tê-lo espalhado. A única coisa que precisava de saber agora era se este tinha realmente intenções de contrair matrimónio. Se a impertinente jovem rejeitasse o duque, só aumentaria o boato, e se aceitasse, consumaria uma relação impossível de aceitar por parte da sociedade. Ainda assim, não moveria nem um dedo até ter a certeza do pedido de casamento ou pelo menos da sua intenção, pois os rumores mal lançados podiam voltar-se tão rapidamente contra uma pessoa como um incêndio quando muda o vento. Por isso, precisava de falar com a jovem a sós e sem interrupções, e averiguá-lo da boca da própria. Se o duque tivesse essa intenção, o seu plano de o arrastar pela lama e de forçar a sua honra a ponto de o fazer desafiá-lo para um duelo ver-se-ia de novo a céu aberto.
– Calma, minha querida amiga, de certeza que tudo se resolverá. Diga-me quando e farei tudo o que puder para convencer a bendita cozinheira de que deve partir.