CAPÍTULO 38

No mesmo dia, 23 de outubro de 1721

O vento mostrava-se agitado e fazia tremer os vidros das janelas. A Clara, dava-lhe a sensação de que o tempo desagradável queria infiltrar-se pelas frestas ou mesmo pela lareira, que, embora estivesse acesa, deixava ouvir por vezes o silvo do zéfiro. Entardecia e Clara debatia-se entre o desejo ardente de ver Dom Diego e o de que ele não aparecesse nunca. Há já um dia que recobrara os sentidos e tinha-o visto ali junto dela, com a barba meio crescida e evidentes sinais de preocupação pelo seu estado. Mal lhe pôde agradecer fosse o que fosse, pois chamou quase de imediato o doutor Evaristo.

Segundo Elisa, tinha estado a navegar no delírio, com a pulsação muito fraca e a temperatura disparada. Mal conseguia lembrar-se do que sucedera após ter saído da carruagem e desmaiado. Tinha apenas a imagem do campo aberto sob uma tempestade implacável, com a sua sanidade a desfazer-se a cada relâmpago e o corpo paralisado. A última coisa que vira, de olhos turvados, fora mais tarde, quando Dom Diego, como uma aparição, a obrigara a não perder os sentidos. Depois disso, não tinha mais do que visões quebradas e sem sentido, que a visitaram durante a sua convalescença; anjos da morte com os rostos deformados do seu falecido pai, da mãe, da irmã, de Dona Úrsula e até da bondosa senhora Moncada do hospital. Mas, de entre todos aqueles demónios negros com rostos conhecidos e perversos, erguera-se o de Dom Diego, ancorando o seu corpo à vida tal como Atlas, o titã, segurando o mundo nos ombros. Viu-o secar-lhe a fronte, pegar-lhe na mão e até mesmo prostrado a seus pés, rezando, quando era sabido que Sua Excelência não rezava desde a morte da sua amada esposa. Dom Diego preocupara-se desmedidamente com ela e tratara-a mais como se fosse a filha do doutor Belmonte do que como se fosse a sua cozinheira.

Este facto impressionou-a ainda mais quando, após ter ceado um consommé de ave temperado com ovo cozido e arroz preparado por Carmen del Castillo, viu que estava instalada nos aposentos privados do duque. A primeira coisa em que pensou foi na criadagem. De certeza que havia já um fervedouro de comentários. Só nessa mesma manhã é que Elisa, trazendo um cesto de prata enfeitado com chocolate quente, ovos cozidos e uma seleção de pãezinhos fofos acabados de fazer, lhe contou tudo mais ao pormenor. Mal soubera da sua partida, o duque partira em plena manhã à sua procura e, ao chegar no dia seguinte com ela nos braços, dera ordens expressas para a instalarem ali, o que armou um enorme rebuliço.

– Diz-se que está apaixonado por ti – dissera a amiga com um meio sorriso. – Andam todos numa roda-viva.

Clara não respondeu, debatendo-se entre a estupefação, a complacência e a contradição. Jurara esquecer Dom Diego para sempre e agora não sabia como assimilar que Sua Excelência tivesse saído à sua procura, a tivesse resgatado, assistido e instalado nos seus aposentos. A menina de bem que ainda habitava nela dizia-lhe que o duque se comportara como um cavalheiro, mais do que isso até, com uma diligência impecável que ia além do que as boas maneiras exigiam. A Clara Belmonte que sobrevivera às durezas da vida, pelo contrário, sussurrava-lhe ao ouvido que Sua Excelência permitira o seu escárnio sem mexer um dedo. Devia ponderar com muito cuidado até onde caminhava tudo aquilo. Ainda assim, era inegável que, se antes a dececionara ao tratá-la como se fosse mercadoria, e até mesmo por permitir que o marquês Dom Enrique a menosprezasse publicamente sem dizer uma palavra em sua defesa, agora atravessara fronteiras, demonstrando o seu afeto muito além do que a sua posição social lhe permitia. Antes que Elisa a abandonasse, pediu-lhe em sussurros que lhe trouxesse uma tina cheia de água quente, que pegasse num pouco do sabão de Castela que ela mesma havia feito e que guardasse o mais absoluto segredo.

A pobre Elisa, escandalizada e em palpos de aranha, demorou algum tempo a conseguir meia cuba de madeira e uma vasilha de metal para aquecer toda a água que fora trazendo à socapa. Ao terminar, secou-se com um pano e vestiu uma camisa de noite limpa. Depois, com a ajuda de Elisa, conseguira regressar muito devagar à cama de lençóis lavados e lavara a boca com um colutório da autoria de um amigo de seu pai, o doutor Pierre Fauchard, que conhecera em Angers numa das suas viagens. Habitualmente, preparava-o na cozinha, fervendo sumo de limão, um pouco de alúmen de rocha calcinada e sal comum, para o guardar depois em pequenos frascos junto ao sabão sob a cama do seu quarto. Quando Elisa levou a bacia do quarto, Clara ficou na mais profunda solidão até adormecer.

Acordou mesmo antes de a amiga voltar a aparecer com a comida e as coscuvilhices da criadagem. Ao despertar, estranhou que Dom Diego não a tivesse visitado em toda a manhã, e mais ainda quando não se tinha afastado nem por um segundo nos seus dias febris. Ainda assim, por receio de avivar os falatórios, decidiu guardar a sua curiosidade. Após o almoço, voltou a ficar sozinha e a vontade de mexer as pernas levou-a a tentar sair da cama. Bastou uma tentativa para sentir uma certa debilidade e cedo lhe começaram os suores. O doutor Evaristo, que a encontrara a meio do caminho, obrigou-a a regressar com uma severa reprimenda.

– Se o seu pai a visse cometer esta insensatez… – censurou-a.

Não lhe tirou a razão e regressou à cama. Após a revisão médica, ficara novamente sozinha, com o tempo a passar pouco a pouco. Gostaria de ter livros para ler, mas à falta deles, entretivera-se a admirar o tempo cinzento e macilento a partir da cabeceira aturquesada da cama. Lá fora, os últimos raios de sol deixavam ver as copas de alguns álamos a oscilar ao vento, e Clara sentiu-se como eles, balançando entre os sentimentos e a razão. O seu desejo de ver Dom Diego, de lhe agradecer por lhe ter salvado a vida, a sua dedicação e cuidados, tornavam-lhe cada vez mais difícil o cumprimento da sua promessa de o esquecer para sempre. Essa emoção surgira no fundo da sua vontade, muito mais do que as febres que, dias antes, se lhe haviam enraizado no corpo, e ela sabia perfeitamente de onde vinha. Era lugar para onde não queria olhar, onde Dom Diego se infiltrara quase sem ela dar conta, um lugar perigoso onde, desde a morte do pai, não deixava ninguém entrar e pelo qual podia ficar exposta, primeiro por ser mulher e depois por ser sua criada. Ainda assim, tentava enganar-se e evitava examinar os seus sentimentos por ele. Mas, de cada vez que alguém batia à porta, Clara agitava-se, desejando que fosse ele, enquanto negava querer vê-lo. Anoiteceu tão devagar quanto o dia decorrera, e ceou na mais absoluta quietude, rompida apenas pelo crepitar da lenha na lareira. Quando lhe retiraram o tabuleiro da ceia, refugiou-se entre os lençóis, percebendo a debilidade que ainda a embargava.

Eram já quase 11 horas quando os seus pensamentos se cortaram pela raiz ao ouvir duas batidas na porta. Engoliu em seco e teve a impressão de que o desagradável dia do exterior se agitava mais ainda. Assim que autorizou a passagem, Dom Diego apareceu, envolto em essências e alfazema, perfeitamente barbeado e vestido. Sorriu-lhe e pediu autorização para entrar. Ela só pôde assentir e ele instalou-se numa das cadeiras sem braços do quarto. Trazia um livro nas mãos e não parava de acariciar o couro da encadernação. Fez-se um silêncio intenso, como os que costumavam ocorrer quando estavam sozinhos e trocavam olhares cúmplices. Finalmente, ele, que não desviava os olhos dela, levantou-se.

– Peço-lhe autorização para me sentar perto da cabeceira da cama – disse.

Sentiu uma certa estranheza ao concedê-la, pois continuava a ser uma criada e ele estava em sua casa, mas agradeceu que a tratasse com aquela cortesia. Dom Diego aproximou a cadeira, sentou-se e estendeu-lhe o livro. Tratava-se de uma obra de Domingo Hernández de Maceras, escrita no século anterior, intitulada Libro del arte de cozina. Segundo o seu livreiro, o autor fora cozinheiro do Colegio Mayor de Oviedo, em Salamanca, e concentrara as suas receitas em pratos menos elaborados que os da corte, mas muito eficazes. Quase sem se dar conta, Clara estendeu a mão para pegar no volume, mas ele tomou-lhe a sua. Dom Diego reteve-a por um instante e fitou-a com aqueles olhos pintados por Murillo.

– Se me permite – declarou –, antes de mais, gostaria de me desculpar por não ter podido visitá-la esta manhã, como sem dúvida teria feito caso não tivesse sido imperioso que partisse para El Escorial. Há dias que o meu irmão não dá sinal; o mesmo se passa com o Dom Alfredo, que saiu à sua procura, e vi-me obrigado a visitar esta localidade para ver se alguém podia dar-me alguma informação. Lamentavelmente, não consegui descobrir grande coisa.

– Não deve desculpar-se, Excelência – respondeu ela. – O seu irmão e o seu complacente amigo devem estar em primeiro lugar. Já muito fez ao cuidar de mim de forma tão diligente. Não sabe quão agradecida me sinto.

– Menina Belmonte, sou eu quem se sente agradecido por estar novamente aqui entre nós, e sou em quem pede desculpa pelo vergonhoso tratamento a que se viu sujeita devido ao meu estúpido orgulho.

Ia responder, mas ele interrompeu-a:

– Gostaria de poder falar primeiro e que me fizesse o favor de ouvir até ao fim – pediu, num tom conciliador. – Não espero que perdoe a falta de cortesia que cometi para consigo, mas desejo ao menos que me deixe emendar o mal que lhe causei. Em minha defesa, que sei que é escassa, devo dizer que nada me teria dado mais prazer do que defendê-la nessa noite ante Dom Enrique, mas não o fiz e houve duas causas para isso: a primeira é que esse homem não é meu amigo, muito pelo contrário. De facto, foi o meu orgulho que me levou a participar na sua estúpida aposta sem prever as consequências que isso teria para si.

Clara franziu o cenho ao ouvir aquela afirmação categórica. Dera como certo que Dom Enrique era seu amigo e que ele participara naquela pantomima como parte da sua índole nobiliárquica, indiferente ao sofrimento das classes mais desfavorecidas.

– Dom Enrique é um convidado desta casa por desejo expresso da minha mãe, a quem engana com as suas boas maneiras, mas tenho boas razões para crer que deseja o meu mal, o de Castamar e possivelmente o dos meus. É mesmo provável que esteja por trás do desaparecimento do meu irmão. A minha intenção ao não defendê-la em público era evitar mostrar os profundos sentimentos que tenho por si. Com a minha indiferença, tentei apenas… deixá-la fora de qualquer intenção maliciosa que Dom Enrique pudesse planear contra mim.

Clara sentiu-se ainda mais assoberbada por aquela declaração. A sua forma tão clara de expressar o afeto que sentia agitara-a como se fosse uma estúpida jovenzinha, comovida pela nobre ideia do matrimónio. Controla o nervosismo, ordenou a si mesma, deves acalmar-te para que não se note. Além do mais, o discurso de Dom Diego deixava claro que cometera o erro de aceitar a aposta, mas o facto de não a ter defendido da atitude perversa do marquês tinha mais que ver com o seu carácter protetor do que com a altivez de que a sua classe era acusada.

– A segunda causa – prosseguiu, tomando fôlego – é que não descobri o ato impudico do Dom Enrique para com a sua pessoa até ter lido o atencioso bilhete que me escreveu na sua despedida. Se tivesse sabido, pode estar bem certa de que não teria deixado esse ato escapar sem consequências, e pouco me teria importado o meu receio no momento de mostrar os meus sentimentos em público.

Clara fora-se encolhendo à medida que ouvia o seu discurso. Julgara-o mal e sentiu-se ainda mais comovida por tudo o que Dom Diego fizera por ela. Estava agora mais ciente de que abandonar Castamar para ir à sua procura denunciara o que o duque sentia por ela, indo além do decoro que o seu título exigia, e o pior de tudo é que o tornara notório também perante o marquês. Perguntou-se que motivo o levava a permitir que Dom Enrique permanecesse na propriedade, sobretudo se tinha aquelas dúvidas sobre as suas intenções, podendo mesmo ser ele o causador do desaparecimento de Dom Gabriel.

– Seja como for, o meu delito imperdoável de não a ter defendido e, sobretudo, de a ter exposto àquela estúpida aposta não tem desculpa possível. Como muito bem disse, qualquer cavalheiro decente o saberia. Devo dizer-lhe que todos os presentes, e muito especialmente o Dom Alfredo, pois foi ele quem deu início à aposta, me comunicaram que lamentam o sucedido e desejam que lhe peça perdão em seu nome.

Ela assentiu sem desviar o olhar, enquanto se instalava um silêncio que lhe competia a ela quebrar. Presa às avassaladoras pupilas de Dom Diego, que parecia não ter medo de nada, esforçou-se por falar. Com a voz seca e os nervos embrulhados no estômago, reclinou-se um pouco sobre a almofada.

– Excelência, eu… em primeiro lugar, devo agradecer-lhe por me ter salvado a vida e, ao mesmo tempo, pedir-lhe novamente desculpa por lhe ter faltado ao respeito ao ter erguido a voz naquela noite. Fui uma estúpida ao não permitir que se explicasse. Estou certa de que, caso o tivesse feito, nada disto teria acontecido – disse com serenidade. – De modo que não tenho de lhe perdoar nada, Excelência. Nenhuma criada na minha posição poderia ter melhor senhor.

– A menina não é só… uma criada – disse-lhe ele. – Pelo menos não para mim.

Mantiveram-se como estátuas de jardim, de mãos entrelaçadas, envoltos numa densa nuvem de delicioso desconforto e quietude. Por um momento, pareceu-lhe até que faziam parte de uma gravura do pintor de câmara José García Hidalgo, falecido pouco tempo antes e responsável por parte dos retratos dos Castamar. O rosto aprazível de Dom Diego transportava-a para as refeições de inícios do século, quando dançava o minuete nos salões de Dom José Antonio, o amável conde de Mora, para as educadas maneiras da corte e a despreocupação com o futuro que esquecera já ante a necessidade de sobrevivência. Devia, no entanto, guardar consigo o espírito da prudência, pois embora ele tivesse dito que albergava por ela sentimentos profundos, se abrisse a caixa do seu coração seria depois demasiado tarde para a fechar. Deu-se conta de que, naquele instante de silêncio, não tinham tirado os olhos um do outro.

– Tem o olhar mais intenso que já vi num homem, Excelência – afirmou, sem conseguir controlar o pensamento.

– Limito-me a devolver-lhe o seu – respondeu-lhe ele, sucinto, esboçando um meio sorriso.

Sentiu que um medo profundo a invadia, ciente de que, caso seguisse por esse caminho, uma simples indecisão da parte dele nesse período condená-la-ia para sempre ao ostracismo social. Mas o seu olhar era tão poderoso, tão seguro, que acalmava todos os seus demónios só de pousar nela as suas pupilas. Temendo pelo futuro, ia a desviar o olhar quando, com uma suavidade impecável, ele lhe agarrou o queixo e obrigou-a a continuar a fitá-lo.

– Não tenha medo de nada – disse. – Se mo permitir, nunca a deixarei.

Teve de fazer um esforço para respirar ao ouvir aquelas palavras e cerrou as pálpebras para que não se enchessem de lágrimas. Tentou acorrentar os lábios para não lhe revelar os seus sentimentos, o terror que sentia de se perder entre as ruelas que dividiam os seus mundos, de acabar de novo na mais absoluta pobreza, sujeita ao escárnio que implicam as expectativas frustradas. Ele pôs-lhe um dedo nos lábios e abanou a cabeça para que não dissesse nada de que pudesse arrepender-se. Depois, aproximou-se muito lentamente e ela fechou os olhos, deixando-se arrastar pelo mais profundo dos desejos e pelo terror mais intenso que alguma vez sentira, um terror que a avisava de que devia sair dali o mais cedo possível. Mas não o fez e, no momento em que os seus lábios roçavam nos dela, com o seu cheiro a alfazema a invadi-la por completo, ouviram-se duas batidas na porta.

Afastou-se, envergonhada, e ele, mais seguro, sorriu-lhe como se aquilo não o preocupasse. Esperou uns segundos, levantou-se e deu ordem de entrada. Dona Úrsula apareceu no umbral. Como de outras vezes, lembrou a Clara um dragão negro, capaz de a fulminar com o olhar.

– Lamento incomodá-lo, Excelência, mas chegou uma carta do Dom Alfredo e pensei que quereria vê-la de imediato – disse, com suma diligência e educação.

Dom Diego levantou-se da cadeira. A governanta desviou então o olhar para Clara.

– Alegra-me que o seu estado de saúde tenha melhorado – disse-lhe, enquanto ela lhe devolvia o olhar e lhe agradecia com um gesto. – Todos desejamos que recupere por completo e que volte rapidamente à cozinha – acrescentou a governanta, deixando ler nas entrelinhas que era aí que devia estar e não no quarto do senhor.

Ela não respondeu. Dom Diego disse-lhe que podia retirar-se e deixar a carta no seu gabinete, que iria imediatamente. A governanta lançou-lhe o seu olhar aterrador de almas e partiu, após fazer uma vénia a Sua Excelência.

Clara esperou alguns segundos para constatar que Dona Úrsula não espiava a sua conversa e olhou para Dom Diego, que, ante a notícia da carta, tinha a urgência estampada no rosto. Engoliu em seco antes de lhe dizer que, na sua opinião, era melhor que no dia seguinte se mudasse para os seus aposentos. Ele assentiu, como se compreendesse a situação delicada em que ela se encontrava, e fitou-a de novo como se admirasse um anjo.

– Não espero boas notícias daquela carta e temo que terei de partir – revelou-lhe. – Mas, para sua tranquilidade, quando regressar, altura em que espero que esteja mais recuperada, gostaria de ter consigo uma conversa privada.

Clara só conseguiu assentir, algo congestionada, reprimindo um impulso brutal de lhe pedir que a beijasse de uma vez. Manteve-se imóvel, esperando encontrar forças suficientes para se despedir. Ele pegou-lhe na mão, acalmando novamente as suas angústias.

– Agradeço-lhe as suas palavras – disse ela, por fim – e aguardarei ansiosamente a nossa conversa.

Dom Diego levantou-se e, sorrindo, despediu-se.

Clara ficou então sozinha, com um terror profundo nas entranhas, tentando não acreditar demasiado que, nessa conversa futura, ele podia pedir-lhe a mão em casamento. Dizia a si mesma que era uma loucura irreal, longe de todo o sentido. Dom Diego parecia tão seguro que, quando se perdia na sua força, dava-lhe a sensação de que não tinha de se preocupar com nada, pois, de alguma forma, ele ocupar-se-ia de tudo. Deixou-se levar por esse pensamento, imaginando uma vida que não era sua entre as imensas galerias de Castamar, refeições no Palácio do Bom Retiro e visitas ao Alcácer. Viu-se, como no seu sonho, a dançar com Sua Excelência num grande salão, enquanto lá fora, no mundo, rugiam os canhões. Nem nos seus melhores sonhos o meu pai teria sonhado com um casamento desses, pensou, e sem qualquer dote.

Os seus lábios esboçavam um sorriso quando, do outro lado da porta, lhe chegaram vozes erguidas. Poderia jurar que, nos pisos inferiores, duas pessoas discutiam acaloradamente. O sorriso que instantes antes esboçara desapareceu por completo e o peso da realidade esmagou-a contra os lençóis. Por um lado, sentia-se confusa e aterrorizada, completamente sobrepujada pelas palavras de Sua Excelência vaticinando uma conversa aquando do seu regresso. Por outro, devia conter um entusiasmo que não sentia há anos. Se o motivo daquela discussão era ela, isso significava que Sua Excelência não se importava com a sua condição social nem com o facto de ser sua criada; significava que Dom Diego era corajoso a ponto de pôr em risco a sua linhagem. Rezou para que só ela tivesse ouvido aqueles gritos e não toda a criadagem. De súbito, sentiu que no seu interior se havia rompido a represa com que atara os seus sentimentos, e agora, desbocados, não conseguia controlá-los. Encolheu-se entre o linho e, sem conseguir evitá-lo, desatou a chorar, ciente, por fim, de que estava irremediavelmente apaixonada por ele.