CAPÍTULO 42
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27 de outubro de 1721
Gabriel abriu os olhos e sentiu que recuperara uma ínfima porção das suas exíguas forças. A luz do sol infiltrava-se pelos resquícios da caixa que havia sido a sua masmorra ao longo dos últimos dias. Após a sua captura, tinha acordado nu, com um saco negro de linho na cabeça e completamente preso a duas aspas de madeira, um cadafalso sobre o qual fora deixando tiras de pele. Ao chegar ao que supunha ser uma adega ou cave, a julgar pelo frio húmido que estava, tentara desembaraçar-se das argolas que o mantinham preso ao potro vertical, soltando impropérios. Cedo compreendeu que era inútil. Passados os primeiros dois dias, só para si pôde proferir os seus lamentos. Contava a passagem do tempo através das flagelações, pois desde que o tinham arrastado até ali que recebera duas sessões diárias com um chicote de couro endurecido nas costas, dos glúteos até aos ombros.
Ninguém lhe dirigiu a palavra durante todo aquele tempo, só um espancamento atrás do outro até que a sua vontade quebrou. Depois deste calvário, de cada vez que ouvia os gonzos da pesada porta a abrir-se, urinava-se, cheio de terror, e transformava os impropérios em preces, suplicando que não fossem os seus torturadores, mas o irmão que vinha para o resgatar. Assim que ouvia o estalar do chicote, porém, sabia que as suas preces não tinham sido ouvidas. Após cada flagelação, dava-lhe água suficiente para o manter consciente, pão de legumes e um caldo de verduras tão amargo que parecia ter sido feito com couves podres. Concluiu que aqueles homens queriam mantê-lo com vida, pelo menos por enquanto.
À medida que o seu cativeiro decorria, foram-no deixando ali abandonado, como se os seus captores tivessem descarregado o seu ódio e se tivessem depois esquecido dele. A debilidade acabou por fazê-lo perder a noção do tempo e não foi capaz de discernir há quantos dias estava suspenso daquelas aspas de tortura. O escuro e frio subterrâneo não tardou a converter-se num poço da sua própria imundície, pois ninguém vinha limpar a sua urina, os seus excrementos e o seu sangue seco, e o cheiro era já insuportável. Um exército de moscas surgiu em seu redor, zumbindo à volta da cogula negra, a fim de lhe devorar, pouco a pouco, as tiras das costas. Até os seus captores, ao entrarem para o chicotear, tinham soltado exclamações de repulsa. Soçobrou e começou a delirar, entre a debilidade próxima da morte e a perda de consciência.
No delírio, vieram visitá-lo o pai e a mãe, e julgara ter visto até o rosto do irmão a tirá-lo daquela prisão. Depois, surgiram sombras desproporcionadas em seu redor, arranhando-lhe a alma com garras frias e desejos cruéis. Dançaram, tentando roubar-lhe o espírito e a sanidade, e ele começou a gritar sem produzir qualquer som, prisioneiro do seu próprio corpo. Visitaram-no súcubos e íncubos que o arrastaram para um abismo cheio de imagens grotescas, de corpos concupiscentes e deformados que vendiam a carne e as almas. Febril, já sem qualquer consciência de onde estava, sobrevivera por pura determinação. Com os pulsos vazios de sangue, o corpo destroçado e o espírito quase derrotado, concentrou os pensamentos numa única ideia, que afastara os demónios e a sua dança macabra.
Ali, no poço da sua quimera, invocou a figura da menina Amelia. Surgiu para lhe pegar na mão e fazê-lo abrir os olhos sob o tecido do seu capuz. Acariciou-lhe o rosto e beijou-lhe os lábios, como se neles contivesse um néctar purificador. Ele abriu a boca e bebeu dela até à saciedade. Agradeceu-lhe a sua presença e, desconsolado, explicou-lhe o estúpido que havia sido ao julgá-la, como estava apaixonado por ela e o quanto se arrependia de lhe ter dirigido as palavras desabridas da sua última conversa. Fui o homem mais insensato que alguma vez pisou esta Terra, dissera na sua alucinação. Estou apaixonado por si e fui tão tonto ao deixá-la partir para Cádis… Ela não lhe respondera, limitara-se a cravar os olhos verdes nos seus olhos negros e a beijá-lo de novo. Confessou-lhe quanto lamentava tê-la magoado com a sua atitude completamente injusta, pois na verdade compreendia quanto havia sofrido, quanto sacrificara para sobreviver num mundo feito à medida dos homens brancos. Pouco a pouco, a menina Amelia esfumou-se, sorrindo e desvanecendo-se como um fantasma, para o devolver à crua realidade de que estava preso por grilhões de ferro a uma aspa de tortura. Compreendeu que a sua debilidade aumentara e que todo aquele delírio regressaria de novo para o destruir por completo. Pensou que as suas alucinações podiam ser resultado do asfixiante capuz que mal o deixava respirar, ou da comida, que talvez levasse algum tipo de emulsão alucinogénia. Fosse como fosse, pensou, tinha de fazer alguma coisa.
Assim, começara a roer o linho do capuz com a boca a fim de deixar entrar ar fresco. Demorara várias horas até que, finalmente, conseguira separar os fios com a língua e sentir o ambiente menos espesso em redor da sua cabeça. Foi então que se deu conta de que alguém entrara na cela entre arcadas ao sentir o cheiro.
O indivíduo passeou-se pausadamente à volta dele e, aterrorizado, ele perguntou quem era. Pensou que se iria embora, mas, uma vez ali, ouviu, pelo contrário, o estalar do chicote. Gabriel, ciente do que o esperara, começou a chorar. O sujeito, sem dizer uma palavra, fustigou-o como um selvagem, deixando-lhe as costas em carne viva até que os seus sentidos se aletargaram com tanta dor. Aquela besta desatou a sua fúria entre arquejos, fazendo estalar o chicote uma e outra vez em cima dele, sem parar um único instante, nem mesmo para tomar fôlego. De todas as flagelações, fora aquela a mais selvagem, tanto que perdeu os sentidos.
Depois daquilo, não soube quanto tempo passou. Regressou da inconsciência com o peso a pender grosseiramente para um lado, as pernas curvadas contra os madeiros, sobre a urina, os excrementos e uma poça de sangue. Tentara levantar-se, mas sentia que o seu corpo era apenas uma massa lânguida de carne suspensa das argolas. De repente, ouviu os gonzos da porta e pensava que ia ser novamente flagelado por aquela besta selvagem quando dois homens lhe tiraram as grilhetas dos pés e das mãos. Gemeu lamentosamente, levado pelo alívio momentâneo de ver os pulsos e os tornozelos livres e pela dor de sentir as costas desfeitas contra o chão frio. Tão silenciosamente como o haviam açoitado, carregaram o seu corpo até o depositarem numa cela de barrotes que mal chegava à altura de meio corpo. Enrolado como um novelo naquele espaço reduzido, pôde finalmente tirar o capuz, sentindo que tinha já a barba de vários dias colada a ele. Por cima da cabeça, conseguiu ver apenas como colocavam uma tampa de madeira, como se a cela de barrotes estivesse totalmente revestida. Ainda assim, suspirou ao compreender que ao menos a sua tortura sobre aqueles dois madeirames terminara.
Fora da sua pequena masmorra, ouviu vozes e pequenos estalidos de uma fusta que lhe fizera arrepiar novamente os cabelos. Mal teve forças para se reposicionar sobre os barrotes, tentando apoiar o menos possível as costas. Assim, conseguiu dormir durante várias horas, até que acordou, reparando que se tinha urinado. A julgar pelos solavancos da cela, supusera que devia estar em cima de algum tipo de carroça que o transportava. Tentou pôr-se à escuta, mas, ao não ouvir nenhum bulício, compreendeu que estariam já fora de Madrid. Reuniu algumas forças para falar aos seus captores, que estavam do lado de fora à volta da carroça, mas só um deles lhe respondeu:
– Cala-te, preto, ou deixo-te pior do que estás.
Ele não disse mais nada. Caiu de novo na inconsciência, até que a luz do sol o despertou.
Por cima dele, um rapaz de cerca de 13 anos fitava-o com alguma curiosidade, tapando a boca devido ao cheiro que emanava. Levantou a tampa da caixa e, com uma certa amabilidade, deu-lhe uma escudela com queijo, azeitonas e fiambre e uma chávena de água. Gabriel devorou tudo e agradeceu-lhe. O rapaz, com os olhos cheios de compaixão, olhou para um lado e para o outro e deixou cair disfarçadamente na jaula uma linguiça de um palmo de comprimento enquanto recolhia a escudela e a chávena.
– Água, mais água – pediu ao rapaz. A voz mal lhe saía da garganta.
O rapaz, medindo os riscos, desaparecera para voltar a trazê-la cheia.
Assim haviam passado, aos solavancos por esses caminhos de Deus, duas noites e três dias. Estes pôde contá-los, talvez devido às forças que fora recuperando graças à comida e bebida adicionais que o zagal e o seu irmão mais novo lhe haviam ido dando. Além disso, tinham tido a deferência de lhe cobrir a caixa com mantas para que aguentasse melhor as temperaturas da serra, pois desciam assim que o sol se punha e, subitamente, dava por si a tiritar de frio.
Durante aquele tempo, com um pouco mais de forças, pudera identificar através de diferentes conversas os quatro homens e o maioral, que era o pai dos dois rapazes. Pelo que deduziu, o maioral aceitara levar a carga até algum ponto de Portugal, talvez Lisboa, mas sem saber que havia um homem dentro. Era verdade que para eles se tratava apenas de um escravo, mas o acordo não devia ter agradado ao pai dos zagais, pois queixara-se várias vezes, dizendo que não era um traficante de negros e que não fora aquilo o combinado. Ante o seu último protesto, o líder dos mercenários aproximara-se, ameaçador, dizendo-lhe que parasse de se queixar como uma velha, ou podia ser que os seus filhos o viessem a lamentar. O maioral não voltou a queixar-se. No entanto, Gabriel acreditava que incentivava os filhos a dar-lhe comida e bebida sem que os quatro destemperados se apercebessem.
Apesar do desconforto do espaço e do cheiro emanado pelos seus próprios detritos, conseguiu dormir um pouco melhor nessa noite. O caminho do dia anterior não fora tão abrupto. Pararam à hora de almoço e conseguiu ver por entre os interstícios das madeiras que estavam num azinhal pouco denso, seguramente perto do caminho, pois podia ouvir o ruído de uma fonte natural de água. Esticou os braços intumescidos quando a porta superior da caixa se abriu. Ao levantar a cabeça, viu o mais novo dos zagais, que lhe pediu com o dedo que se mantivesse em silêncio. Atirou-lhe um pouco de pão e queijo e deu-lhe de beber. Gabriel sorriu-lhe e o rapaz correspondeu-lhe ao sorriso, assentindo, como se aquilo fosse um jogo. Ia a perguntar-lhe o nome quando, de repente, uma mão enorme o esbofeteou na cara e a criança caiu para o lado. O soldado que o surpreendera deu um pontapé na barriga do rapaz, que começou a chorar.
– O raio do miúdo está a dar comida a mais ao negro, caraças! – exclamou o mercenário com voz grave, voltando a incrustar a perna na barriga da criança.
Gabriel insultou-o da caixa, agarrando os barrotes com as suas exíguas forças para se levantar. O soldado ia a bater-lhe com a culatra do mosquete, mas parou subitamente ante a voz do maioral, que aparecera do outro lado do acampamento.
– Ei, filho de uma grande puta!
Gabriel pôde entrever como o pai do rapaz atravessava o local a passos largos com uma faca enorme na mão e, sem pestanejar, subia à galera para se postar diante daquele bastardo.
– Volta a tocar no meu filho e corto-te os tomates – ameaçou.
O soldado encarou-o e pôs a mão junto da espada, hesitando em cortar o pescoço ao condutor da carroça.
Atrás dele, os outros dois homens tinham-se levantado e preparavam-se para cortar as pernas ao maioral, que continuava a olhar, desafiador, para o mercenário que batera no filho.
– Tenham lá calma, caraças, e vamos a recolher, que vem aí a noite – disse o líder dos matadores do outro lado do local.
O maioral, tenso, agarrou o filho pela nuca e desceu da carroça, protegendo-o com o corpo, enquanto o soldado que lhe batera mantinha o olhar fixo no condutor, com vontade de lhe abrir a barriga. Mais tarde, ao recordar a tentativa de Gabriel de intervir a favor do rapaz, enfiou a cabeça dentro da caixa, fitando-o. Então, introduzindo a culatra do mosquete por entre os barrotes, começou a bater-lhe com ele na cabeça. Gabriel tentou levantar os braços para se defender, mas não conseguiu, e num dos embates sentiu que a cabeça lhe estalava devido ao impacto. Sentiu uma intensa vertigem e os olhos turvaram-se-lhe. Ergueu um pouco o queixo e recebeu outra pancada brutal junto à têmpora que o deixou prostrado, a babar-se descontroladamente. Sentiu que os ossos cediam e que tudo à sua volta escurecia. Julgou receber outra pancada no rosto, mais forte do que a anterior, e soube que ia morrer no meio das suas próprias fezes e urina, exatamente como quando o seu pai, Abel de Castamar, o encontrara há já mais de 30 anos na praça gaditana da Cruz Verde.
No mesmo dia, 27 de outubro de 1721
Clara costumava aguentar alguns minutos antes que a debilidade lhe atacasse as forças. Dessa vez, no entanto, sentiu algo muito diferente e ficou em pé, deixando passar o tempo sem que as vertigens aparecessem. Por fim, avançou um pouco mais para o centro do pátio, afastando-se da segurança do edifício. Sentiu então um pequeno enjoo que a fez cambalear, mas não se importou. Tinha mais força que das outras vezes. Embora tivesse começado a transpirar, nervosa, algo em si havia mudado. Intuiu que o facto de ter enfrentado a sua doença ao longo do último ano e a exposição a campo aberto que quase lhe custara a vida a tinham endurecido, e a sua doença parecia agora elanguescer. Finalmente, tentando acalmar a respiração, decidiu regressar para não tentar a sorte. Após o fim de semana, tinha recuperado forças e não queria perdê-las. Além do mais, decidira regressar ao trabalho nas cozinhas nessa mesma manhã e por nada no mundo queria ter uma recaída.
Acabou de ajeitar o toucado e saiu do quarto, pensando, como sempre, em Dom Diego. Desde que se despedira dele, havia já quatro dias, que só ansiava pelo seu regresso, pois arrependia-se um pouco de não ter sido mais veemente ao expressar-lhe os seus sentimentos após aquela declaração de intenções de ter com ela uma conversa privada. Devia ter-lhe dito o apreço e devoção que sentia por ele. Por isso, de cada vez que chegava alguém da criadagem, o seu coração agitava-se e as faces ruborizavam-se-lhe, para um instante depois regressar à espera. Assim passara os dois primeiros dias, entre as agradáveis visitas do senhor Casona e de Dom Melquíades, até que, no dia anterior, mais recuperada, decidira que o mais sensato era deixar o quarto de Dom Diego e instalar-se de novo no seu.
Entrou na cozinha e cumprimentou todos os membros, incluindo Beatriz Ulloa, que se aproximara, fingindo mais timidez do que realmente sentia, e lhe dissera que compreendera o seu erro e desejava aprender com ela tudo aquilo que pudesse.
Clara alegrou-se pela rapariga. Depois, foi aparecendo o resto da criadagem, perguntando-lhe pelo seu estado com muita educação: Carmen del Castillo, sua direta subordinada, e os seus restantes oficiais; Lázaro Molás, florista-mor, e os seus ajudantes; o senhor Moguer e vários criados; o senhor Ochando, que se despediu dela quase a fazer vénias; o estribeiro-mor, Belisario Coral, juntamente com toda a sua quadrilha de palafreneiros, o primeiro estribeiro e os cocheiros; a chefe de sausaria, Matilde Marrón, e a sua ajudante, Galatea Borca, que apareceu com o despenseiro Luis Fernández. Sentiu-se comovida por ser uma pessoa tão querida, embora nunca tivesse lidado com muitos deles, como era o caso do mestre de capela, Álvaro Luna. Passou a manhã a trabalhar, até que Elisa entrou na cozinha com o seu sorriso reluzente e espírito desenfadado.
– Todos mostraram um interesse enorme, que agradeço, mas… – disse-lhe Clara, franzindo o rosto – não compreendo.
– E porque havia de ser, mulher? Deixaram de te ver como a cozinheira de Castamar. Alguns acham que o duque te pediu em casamento – respondeu Elisa. – Diz-se que teve uma grande discussão com a Dona Mercedes por causa disso.
Clara corou ao ouvir aquelas palavras. Muitos criados intuíam que talvez pudesse converter-se na próxima duquesa. Pareceu-lhe irreal e, só de pensar nisso, sentiu uma vertigem que a fez encostar-se à parede. Embora ninguém soubesse realmente das verdadeiras intenções de Dom Diego exceto ela – pois a conversa em que lhe manifestara a importância de falarem a sós havia sido privada –, todos davam já como certo que o duque pedira a sua mão.
– Se assim não fosse, porque teriam ele e a mãe discutido? – perguntou Elisa. – Bem, diz lá: pediu-te em casamento?
– Não, não, não! – exclamou, desorientada. Podia fazer frente a todos os desafios da vida, mas tinha de admitir que no campo do amor estava perdida e aterrada. – Ouve, Elisa – disse-lhe, cautelosa –, o Dom Diego não me fez qualquer pedido. Esse rumor é falso!
– Bem, depois de te ter instalado nos seus próprios aposentos e de cuidar de ti daquela maneira, não duvido de que o fará – respondeu Elisa. – É o mínimo.
– Santo Deus! Mas o que dizes…! – exclamou Clara, contendo os suores. – Sua Excelência não tem obrigação de fazer nada nem de me pedir nada, Elisa.
– Está bem, está bem – respondeu a criada. – Não mates o mensageiro.
Clara levou a mão à cabeça, tentando assimilar tudo aquilo, pensando na débil posição em que agora se encontrava. Toda a criadagem dava como certo que Dom Diego daria esse passo, e talvez assim fosse na conversa que combinara com ela. Mas, e se o pequeno toque dos seus lábios não fosse indicativo disso… ou se simplesmente ele se arrependesse do que tinha dito? Então, aquele rumor frustrado soltar-lhe-ia o escárnio em cima: «O que terá esta pensado?», «A pobre já se via duquesa e só serve para os fogões», «Uma cozinheira que pensava ser dona de toda Castamar». Quase podia ouvir os risos nas suas costas quando se cruzasse com alguns membros da criadagem. Estava numa posição muito perigosa, sob a espada daquela expectativa. Se afinal o duque não desse o passo, Clara compreendeu que todos aqueles falatórios a levariam inevitavelmente a abandonar Castamar. Mas como desmenti-los quando sabia que era possível que, quando Dom Diego regressasse, este a pedisse em casamento? Fitou os olhos de Elisa, cujo ânimo azedara devido à sua exclamação, e pegou-lhe na mão.
– Desculpa, Elisa, lamento o meu mau feitio – disse. – Só espero que isto não ultrapasse os limites de Castamar.
Elisa sorriu de novo e apertou-lhe a mão com força.
– Calma, não sofras com isso – respondeu. – O Dom Melquíades deu ordens para mantermos a boca calada sobre este assunto, sob pena de sermos despedidos. Suponho que não queiram que isto acabe nos mentideiros de Madrid.
Clara disse a si mesma que fora uma ingénua ao achar que os falatórios acabariam quando regressasse ao seu posto.
– Sabes se a governanta fez algum comentário sobre este assunto?
A rapariga abanou a cabeça.
– A única coisa que sei é dos gritos que trocou com o Dom Melquíades – respondeu. – Bem, eu e o resto da criadagem, claro. Aparentemente, a governanta tinha o mordomo subjugado porque tinha provas de que ele era um traidor.
– Menina Belmonte – disse uma voz fria ao fundo do corredor. – Compreendo que não esteja totalmente recuperada para prosseguir com os seus labores, mas não tolero que distraia o pessoal. Elisa, volte ao trabalho.
Dona Úrsula aparecera à porta dos fogões, interrompendo a atividade da cozinha. Todos a cumprimentaram com uma pequena vénia. Clara levantou a cabeça e verificou que havia um rapaz junto dela, um ajudante de limpeza de apenas 15 anos que a acompanhava servilmente de cabeça baixa.
– Peço desculpa, Dona Úrsula – disse. – A culpa foi minha por distrair a Elisa.
Esta desapareceu o mais rápido que pôde. A governanta aproximou-se e parou diante dela. Perscrutou-a como se pudesse ver-lhe a alma, com certa curiosidade, perguntando-se decerto o que tinha Dom Diego visto nela. Fitaram-se em silêncio, o mais tenso que alguma vez haviam tido.
– Siga-me – ordenou. – Há alguém que quer falar consigo.
Caminhou a passos curtos junto ao aspirante, seguindo o rumor dos tacões de Dona Úrsula, que faziam ressoar os degraus de madeira ao subir para o segundo andar. Uma vez aí, percorreram os corredores que conduziam à ala esquecia de Castamar, que só era aberta para hospedar os convidados durante a celebração anual. Dirigiram-se aos grandes salões e ao pequeno coliseu anexo, onde Dona Alba desfrutava em vida de representações teatrais privadas. Avançaram pelos corredores já esquecidos até chegar a um dos salões privados da antiga duquesa, nos confins da fazenda.
A governanta fê-los parar aos dois diante de duas grandes portas engalanadas com quartos em folha de ouro e indicou a Clara que devia entrar. Esta assentiu e, quando ia a tocar na maçaneta, Dona Úrsula agarrou-lhe suavemente o braço e reteve-a por um instante, como se ponderasse as palavras que ia dizer. Esperou, admirada, enquanto a governanta, de lábios cerrados, a perscrutava com um certo pesar interior. Deu-lhe a sensação de que, depois de tudo, havia em Dona Úrsula algum tipo de agitação, algo que a tornava verdadeiramente humana.
– Não é segredo que ambas possuímos espíritos contraditórios e impossíveis de governar, menina Belmonte – disse-lhe finalmente, num tom severo. – Mas não quero, de forma alguma, que entre no salão às cegas, pois o Dom Enrique espera-a atrás dessas portas e ambas sabemos que é um homem perigoso.
Clara inspirou fundo ao compreender o seu nervosismo. Lembrava-se perfeitamente do rosto atraente do ilustre, com aquele sorriso que ocultava um olhar ameaçador. A ideia de ter de se ver a sós com ele fez com que o estômago se lhe encolhesse.
– Quero que saiba que ficarei de vigia até que saia – concluiu Dona Úrsula.
Clara compreendeu que a governanta devia ter recebido ordens para a levar até ali, possivelmente de Dona Mercedes, já que Dom Diego não estava em casa. Agradeceu-lhe com sinceridade, pois era óbvio que Dona Úrsula não era uma oportunista que quisesse ganhar os seus favores devido ao seu possível casamento com o duque. A governanta portara-se com o mesmo tom e a mesma atitude desabrida de sempre, e não ia alterar a sua forma de fazer as coisas só porque ela podia vir a ser a duquesa de Castamar. Embora tivesse toda a certeza de que Dona Úrsula gostaria que esse casamento não se realizasse, deixava claro que em nenhum caso queria tomar parte no que pudesse acontecer naquele salão, nem que ela sofresse qualquer dano às mãos do marquês. Era evidente que tivera esse gesto para com ela devido à sua própria condição de mulher e porque, de alguma forma, se sentia responsável pelas gentes de Castamar por ostentar a sua autoridade. Clara assentiu a Dona Úrsula em jeito de despedida, suspirou e entrou no salão.
Efetivamente, a olhar pela janela na direção dos canteiros de trás da propriedade, estava Dom Enrique, entre os panos brancos que cobriam todo o mobiliário. O marquês mal virou a cabeça quando ela abriu a porta.
– Fecha a porta e aproxima-te – ordenou. – Senta-te.
Ela fez-lhe uma vénia segundo a etiqueta.
– Prefiro estar de pé, Excelência – respondeu, mantendo a cabeça baixa.
Ele virou-se, pousando nela os seus olhos de predador, e indicou-lhe com os dedos que se aproximasse. Clara avançou, inquieta, ciente de que aquele ilustre podia engoli-la com um único gesto. Dom Enrique perscrutou-a em silêncio, como se estivesse a contemplar um objeto e não uma pessoa.
– Que cego estive contigo, cozinheira – disse-lhe.
– Não consigo entender de que forma assim foi – respondeu Clara, cautelosa.
O marquês aproximou-se ainda mais, imbuído de um silêncio hostil, e ela teve a sensação de que era como os animais selvagens na serra, quando iam avançando lentamente a fim de devorar as suas presas. Parou diante dela como se lhe agradasse sentir o seu desassossego. Clara evitou mostrar a sua agitação e manteve-se cabisbaixa, à espera de que ele falasse. Não o fez, com a evidente intenção de incomodá-la, e começou a andar em círculos em torno da sua figura, como se a qualquer momento se fosse precipitar sobre ela.
– Tens consciência do mal que fazes ao Dom Diego? Trarás a desgraça a Castamar assim que se tornar público que o duque saiu atrás das tuas saias como um animal com o cio. Mais ainda se decidiu pedir-te em casamento… Fê-lo? – perguntou o marquês.
Clara preferiu não dizer nada. Então, caminhando atrás de si, ele pousou-lhe a cabeça da bengala debaixo das nádegas, tal como fizera semana e meia antes na ceia da festa. Não aguentou e afastou-se dele. O marquês, sem abandonar a sua atitude ameaçadora, parou atrás dela, perto da sua nuca.
– Exijo que confesses se o Dom Diego te pediu em casamento e em que termos – sussurrou.
Ela resistiu, de olhos acesos e corpo tenso, voltando a desafiá-lo com o seu silêncio. Dom Enrique obrigou-a a virar-se e ergueu-lhe a cabeça com o punho da bengala. Finalmente, ela fitou-o, mantendo os olhos ao alto, ciente de que agora o marquês lhe bloqueava o acesso à saída. Aproximou o rosto do seu até ficar a poucos dedos.
– O Dom Diego tratou-te como uma menina, mas não passas de uma criada.
Clara deu um passo atrás, perguntando-se se Dona Úrsula continuaria realmente lá fora, no corredor, tal como lhe prometera. Agora que se via fechada e afastada de tudo, pensou que talvez a governanta só se tivesse protegido ante Dom Diego ao avisá-la da armadilha. Subitamente, sentiu-se indefesa e recuou de novo ante o avanço do marquês.
– Só quero que me respondas à simples pergunta de se te pediu em casamento ou declarou o seu amor, cozinheira – exigiu ele.
– Excelência, não esperará que responda a essa pergunta, pois não o faria nem que fosse o rei de Espanha a formulá-la, muito menos um convidado desta casa que não é o meu senhor direto – respondeu, engolindo o medo que aquele indivíduo lhe gerava. – Se tem tanta vontade de saber, pergunte-lhe o senhor.
– Não preciso de perguntar. Ama-te, basta ver a forma como olha para ti.
– Se assim for, não lhe compete dizer-mo, Excelência – respondeu Clara, sem desviar o olhar.
Ele sorriu, como se aquilo lhe desse mais prazer, e travou os seus avanços junto a um dos sofás. Aí, depositou suavemente a bengala e a casaca sobre o lençol branco que o protegia. Foi então que Clara soube que ele tinha intenções de fazer algo mais do que intimidá-la e distanciou-se, a fim de gritar caso se atirasse a ela. Dom Enrique não se importou.
– Tens, sem dúvida, uma atitude altaneira que não corresponde à tua posição nos fogões.
Clara limitou-se a olhá-lo fixamente. Dom Enrique encolheu os ombros e esboçou-lhe um sorriso de hiena.
– Acredita quando te digo que nunca evitarei o teu casamento, muito pelo contrário: estou profundamente satisfeito com a sua celebração e até já pensei no presente de casamento que vos vou dar. Não dirás que não sou generoso, cozinheira – observou, com um sorriso zombeteiro. – Não queres saber qual é o presente?
Clara deteve a sua fuga ao sentir a parede atrás das suas costas e engoliu em seco.
– Responde – exigiu o marquês num sussurro glacial. – Não queres saber qual é o presente que idealizei para o aborto do teu casamento?
Clara franziu o sobrolho com o medo no estômago e, presa entre o marquês e a parede, disse a si mesma que tinha de sair dali. Percebeu que o seu mutismo inflamava ainda mais Dom Enrique, sorrindo e avançando para ela de braços abertos. A poucos passos, parou, fitou-a a dispôs-se a atirar-se a ela. Clara, sabendo que o conflito era inevitável, tentou contorná-lo para se dirigir à porta e gritar com todas as suas forças. Não conseguiu. A mão do marquês fechou-se como uma argola de aço em redor do seu pescoço enquanto, com a outra, a agarrava pelos cabelos. O golpe seco na garganta deixou-a sem fôlego e produziu apenas um gorgolejo.
Puxando-a como um selvagem, Dom Enrique encostou-a à parede. Ela tentou novamente pedir ajuda a Dona Úrsula, mas os dedos enluvados do marquês deixaram escapar apenas uma exclamação. Sentiu outro golpe seco, agora no estômago, e dobrou-se com a dor a percorrer-lhe as entranhas. Apesar disso, sentiu que o punho do marquês se lhe dirigia ao resto e mexeu-se o suficiente para que lhe levantasse apenas parte do cabelo solto. Ainda assim, a pontada aguda no estômago subiu-lhe à cabeça. A debilidade dos dias passados surgiu na forma de suores frios e esteve quase a perder os sentidos. Dom Enrique levantou-a e deu-lhe umas palmadinhas nas bochechas para evitar que desmaiasse. Ela, com a visão desfocada, disse uma prece silenciosa para que Dona Úrsula abrisse a porta e interrompesse a cena.
– Shhh, responde à pergunta. Não sejas mal-educada, não suporto que se deixem conversas em suspenso – disse-lhe ele com uma frieza glacial, como se a sua pergunta fizesse parte de uma cena que compusera na sua cabeça. – Não queres saber qual é o presente que tenho pensado para o duque e para ti?
Ela fitou-o, congestionada pela falta de ar, subjugada pela debilidade. Tentou cuspir-lhe, mas só conseguiu que a baba lhe deslizasse pelo queixo. Ele riu-se como se aquilo o divertisse e disse-lhe que assentisse ou partir-lhe-ia o pescoço. Ela resistiu, mas, ao sentir que as mãos dele lhe apertavam a garganta com mais força, assentiu no limiar da inconsciência.
– Isso. Vês como não foi assim tão difícil, cozinheira? – Sorriu enquanto ela tentava libertar-se das suas garras e respirar um pouco.
Clara, com o discernimento toldado pela falta de ar, os golpes e a pressão na garganta, que mal deixava passar um fio de vida em cada golfada, compreendeu que, quanto mais tempo passasse, menos força teria para resistir. Após uns estertores secos e sussurrados, as lágrimas amontoaram-se-lhe nas pálpebras, prontas a transbordar, e, de maxilares cerrados, Clara disse a si mesma que chorar só daria mais satisfação àquela besta.
– O presente que quero dar-vos é muito especial, pois é composto por três partes consubstanciais – disse o marquês, continuando com a sua interpretação. – A primeira é para ti, pois tenho a intenção de te tirar a virgindade, para que saibas o que é um homem e sintas a minha falta na tua noite de núpcias.
Completamente aturdida e sem forças nos braços, Clara agitou-se ao ouvir essas palavras, cravando as unhas nas faces do marquês. Este, sem abandonar o seu sentido festivo, soltou-lhe uma mão do pescoço e voltou a bater-lhe no estômago para que deixasse de forcejar. Uma dor aguda espalhou-se-lhe pelo abdómen e por parte do peito, fazendo com que a sua asfixia fosse mais angustiante.
– Deixa-me acabar – prosseguiu, sereno. – A segunda parte é para o Dom Diego, pois desejo que, ao descobrir que te bati e montei, me desafie.
Tentou curvar-se, mas ele impediu-a, segurando-a contra a parede, e só conseguiu encolher um pouco as pernas.
– Mas o melhor de tudo é a última, cozinheira, pois esta é para os dois. Tenho a intenção de te entregar hoje a minha semente, e talvez dentro de nove meses possamos celebrar o nascimento de uma nova vida. Certamente que por essa altura o Dom Diego já não estará entre os vivos, mas podemos sempre celebrar, tu e eu, e recordar este dia inesquecível.
Nesse momento, Clara compreendeu muito melhor o porquê de Dom Diego não ter intercedido em sua defesa naquela noite. Era evidente que aquele indivíduo não queria matá-la. Queria provocar um duelo e convertê-la a ela no motivo desse desafio, desafio esse em que o duque podia perder a vida. Chamou-se estúpida por ter confiado na promessa de vigilância de Dona Úrsula, estúpida por ter obrigado Dom Diego a ir à sua procura, provocando a sua ruína, e estúpida por não lhe ter declarado o seu amor incondicional.
Mal lhe restavam forças para se debater quando Dom Enrique a golpeou no peito esquerdo e uma pontada de dor lhe paralisou o corpo inteiro. Já só via o sorriso no rosto do seu agressor, como se a cena que acabava de interpretar fosse apenas o preâmbulo que soltaria uma besta ainda pior.
Dom Enrique soltou uma das mãos e tirou a luva com os dentes. Clara tentou libertar-se, cada vez com menos forças, ao sentir que as suas garras lhe procuravam o entrepernas. O marquês sorriu, afadigando-se a levantar-lhe as saias e as anquinhas. Ela, um pouco mais livre dele, pois já só lhe prendia a garganta com uma mão, rodou o pescoço e conseguiu sorver um pouco de ar. Soltou alguns gorgolejos e sentiu as têmporas a latejar com força e os vapores da debilidade a percorrê-la.
Tentou novamente gritar, mas foi-lhe impossível desembaraçar-se da argola que era a mão de Dom Enrique. Sentiu como lhe manuseava o sexo por baixo da saia, com o rosto petrificado num esgar horrível, como se uma violência fria e completamente desumanizada se tivesse desatado dentro dele. Ao sentir o seu toque seco, fechou as pernas o máximo que pôde e deu-se conta de que o forcejar parecia dar-lhe mais prazer. O seu espírito inundou-se de um profundo asco e terror, enquanto ele lhe sussurrava indecências para que se deixasse montar contra a parede. O ilustre interpôs a sua coxa e, usando-a como alavanca, conseguiu que os joelhos de Clara cedessem, metendo-se-lhe entre as pernas e levantando-a um pouco. Sentiu-se colada às ancas do marquês, e ele agitou-se contra o seu sexo, dando duas investidas que a fizeram sentir-se viscosa, inundada pelo seu tato repelente, submetida ao império do fôlego da sua boca, que só cheirava a carne. Soube então que era inevitável que a tomasse à força e a desvirginasse.
A impotência deste pensamento levou-a a debater-se com toda a energia que lhe restava. Ele pressionou-lhe mais o pescoço contra a parede e Clara percebeu que os seus pés já mal tocavam no solo. Não deixou de o fitar na sua alma repugnante, odiando-o profundamente e mostrando-lhe um desprezo que superava amplamente o medo. Finalmente, vendo a sua derrota, não pôde evitar que várias lágrimas de ira lhe percorressem as faces. Ele, ao ver o seu desespero, colou-se a ela e lambeu-as, deixando-lhe colado à pele o seu glaciar impudico. Clara sentiu náuseas enquanto o marquês, vendo que já não lhe oporia muito mais resistência, se preparava para se desembaraçar dos calções.
Foi então que parou. O esgar frio e contraído transformou-se em ira e, sem que ela entendesse porquê, soltou-a de imediato. Clara caiu ao chão, entre tosses e sorvendo ar às golfadas, e ergueu os olhos turvados para descobrir Dona Úrsula, a mulher dragão, tão firme como um farol na tempestade, encostando um afiado abre-cartas à nuca do ilustre.
– Solte-a, seu bastardo filho de uma cadela, ou juro que lhe corto o pescoço ao meio – ordenou Dona Úrsula. – Ponha-se atrás de mim, menina.
O marquês cerrou os maxilares como se não pudesse acreditar que uma simples governanta ia deitar a perder os seus planos de a desvirginar. Clara, arrastando-se, saiu da zona de Dom Enrique e, tentando tomar fôlego, pôs-se atrás da governanta. Esta, com o abre-cartas ainda encostado ao pescoço do marquês, continuava atenta a qualquer movimento deste. Clara levantou-se, cambaleante devido ao enjoo. Dona Úrsula olhou rapidamente para ela, tentando verificar se estava ferida.
– Saia – ordenou.
Dom Enrique tentou virar-se e a governanta, ciente do perigo que tinham em cima, fez pressão com a ponta do abre-cartas para que soubesse que lhe trespassaria o pescoço sem hesitar, ainda que isso a fizesse subir ao cadafalso. O marquês parou.
– Saia daqui, menina Belmonte – repetiu a governanta. – O rapaz que me acompanhava foi dar o alarme.
– Não saio daqui sem a senhora, Dona Úrsula – respondeu ela.
– Saia, já disse! – ordenou.
– Não insista – repetiu Clara.
Então, o marquês saltou para a frente e para o lado, tentando evitar a lâmina, e dirigiu-se à bengala que tinha em cima do sofá. Dona Úrsula, ao sentir que ele se mexia, desferiu o seu ataque sem hesitar. O fio do abre-cartas passou ao largo, cortando a bochecha de Dom Enrique, que emitiu um gemido de surpresa. Clara agarrou no braço da governanta e puxou-a em direção à porta. O marquês, com a urgência no rosto, correu a impedir-lhes a passagem. Clara, de mão dada com Dona Úrsula, avançou para a saída com a intenção de chegar à maçaneta. Colada às costas, podia sentir a respiração agitada da governanta e, um pouco mais longe, a do marquês.
Corria com a alma a sair-lhe do corpo, ouvindo Dona Úrsula gritar por socorro atrás de si, quando, de repente, sentiu que as pernas lhe vacilavam devido à debilidade e se precipitava descontroladamente para o pórtico. Então, antes que pudesse tocar no puxador, as portas engalanadas com quartos de folha de ouro abriram-se de par e par e, diante dos seus olhos, apareceu Dom Melquíades, armado com uma pistola de carregar pela boca, juntamente com vários homens da guarda armada de Castamar. Ela, levada pela inércia do tropeção, caiu em cima de um tenente que a segurou de imediato. Ao olhar para trás, viu como Dona Úrsula se deixara proteger por Dom Melquíades, que, de arma em riste, apontava ao marquês, segurando-a pela cintura.
– Excelência, temo que o seu tempo nesta casa se tenha esgotado – disse o mordomo. – Estes homens escoltá-lo-ão até à saída.
O marquês torceu a cara e, desatando a fúria, bateu com a bengala num dos jarrões cobertos por panos brancos. Depois, passeou pela sala e, com sumo cuidado, voltou a vestir a casaca e a ajeitar as mangas. Aproximou-se de Dom Melquíades e cravou os olhos nele.
– Dá a mensagem ao duque – disse, tocando no pequeno rasto carmesim da sua face. – Entendo que queira satisfações por isto.
Dom Melquíades, baixando já a pistola, respondeu-lhe com um cumprimento de cortesia.
– Tenha a mais absoluta certeza de que não haverá lugar no mundo onde possa esconder-se do meu senhor.
Dom Enrique ia a dirigir-se à saída quando Dom Melquíades se postou diante dele.
– E tenha por certo que, se tivesse feito um mal irreparável a qualquer destas duas mulheres, eu mesmo lhe teria metido este balote na cabeça, Excelência – disse. – Apesar de não ser seu igual e de isso me custar a forca.
A forma tão direta e resoluta como se havia expressado fez com que Dona Úrsula olhasse para Dom Melquíades de uma maneira que Clara nunca vira na governanta, uma mistura de surpresa e de admiração. Dom Enrique olhou para o mordomo como se estivesse a ponderar acabar com ele pela sua ousadia e, após encostar-lhe a bengala ao peito, obrigou-o a afastar-se, mas ele manteve-se no sítio.
– Reza ao Todo-Poderoso para que o teu senhor continue vivo, pois, caso isso não aconteça, lembrar-me-ei das tuas palavras – sussurrou o marquês.
Clara levantou-se, apoiando-se nos braços do tenente, e olhou para a governanta.
– Agradeço-lhe a sua intervenção, Dom Melquíades – disse Dona Úrsula.
O mordomo assentiu sem desviar a vista do marquês, que, escoltado por quatro guardas de Castamar, se ia tornando cada vez mais pequeno. Quando estava prestes a sair do corredor, parou. Rodou três quartos, com a sua habitual elegância, para a perscrutar diretamente, pondo no rosto a sua mais perigosa expressão e apontando-lhe o dedo. Clara ergueu o queixo, embora se sentisse amedrontada por aquele indivíduo, e manteve-se firme até que o perderam de vista. Então, respirou agitadamente, sentindo ainda a mão do marquês no entrepernas. Um acesso de profundo nojo instalou-se-lhe na boca do estômago e teve vontade de vomitar. Viu-se invadida por um sentimento de urgência que a fez sair a correr quase sem se despedir dos presentes. Com arcadas na garganta, mandou preparar meia cuba de água quente e esperou que lha levassem ao quarto. Esperou engolindo em seco, com o corpo destemperado e os nervos tensos. Quando os dois moços saíram deixando-lhe a cuba cheia, não resistiu mais e, sem tirar a saia nem a crinolina, mal contendo os vómitos, meteu-se lá dentro e lavou a fundo o sexo.