CAPÍTULO 47
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6-7 de novembro de 1721
Enquanto entrava pela Rua Leganitos, cavalgando entre transeuntes, burgueses e moços que transportavam de um lado para o outro todo o tipo de artigos, Hernaldo não podia deixar de pensar que a filha estivesse em segurança. Passara todos aqueles dias em casa de Dom Enrique, à espera de que este tomasse uma decisão sobre o que fazer com Dona Sol, e se não fosse pela mensagem que recebera de Dom Diego, teria continuado a perder tempo naquela mansão, lúgubre e triste como o ânimo do marquês. Este continuava fechado num mutismo extremo, afetado por uma melancolia que, a continuar assim, o levaria à morte sem que fosse necessário que Dom Diego lhe metesse uma bala na cabeça. Além do mais, o problema agora era outro. Hernaldo vira-se obrigado a escolher entre a lealdade a Dom Enrique ou à sua filha, e nesse duelo só podia haver um vencedor. O simples facto de aquela carta ter vindo dirigida a si confirmou-lhe que tudo quanto alegava era absolutamente certo:
A Hernaldo de la Marca:
No dia de hoje, dois dos meus guardas reais apresentaram-se à porta de sua casa para entregar uma carta escrita pelo meu próprio punho à sua filha Adela. Nela, descrevia-se a necessidade de que a escoltassem até à minha casa de Leganitos, de onde lhe escrevo estas linhas.
Antes de causar mais dor e feridas do que as que já provocou, peço-lhe que pense no futuro da sua filha, pois não seria agradável que esta vivesse sob o desprestígio a que os seus vizinhos a submeteriam caso se soubesse que é filha de um assassino. Para que compreenda a situação em que realmente se encontra, dir-lhe-ei que são já conhecidos os seus atos ilícitos para com a minha esposa, para com os meus amigos e para comigo. Estamos a par de que, pela sua mão, foram assassinados, por ordem do seu senhor, Daniel Forrado e uma prostituta chamada Zumbaieira, entre outros, bem como de que perpetrou o assalto à menina Castro e a captura do meu irmão, Dom Gabriel de Castamar.
Desejando que não siga de novo pelo caminho errado avisando Dom Enrique deste bilhete, espero que se apresente o mais cedo possível na minha casa de Leganitos a fim de se entregar à justiça. Caso o faça, dou-lhe a minha palavra de que o futuro da sua filha não será comprometido.
Aguardando a sua chegada, despede-se,
Dom Diego de Castamar, duque de Castamar
Ao ler a carta, Hernaldo sentiu o sangue gelar e um terror profundo instalou-se-lhe nas vísceras. Começou a suar e, com o queixo a tremer, teve de se sentar. Nunca sentira um medo como aquele, e toda a serenidade que demonstrava na hora de arrebatar a vida aos pobres desgraçados que se cruzavam com ele desvanecera-se num piscar de olhos. Tremiam-lhe as pernas só de pensar na desgraça da filha. Algo lhes escapara, alguma ponta solta.
O negro estaria já a caminho das Américas, e a Zumbaieira, a Jacinta e o Canhoto estavam mortos. A única possibilidade era que este último tivesse deixado provas que, em caso de morte, chegariam a Dom Diego. Mas nem ele era tão inteligente nem tinha ninguém em quem confiar, e mal sabia escrever. Quando lhe partira a espinha ao meio no casebre e o deixara ali estendido, agonizando junto à sua puta morta, não lhe dera a sensação de que guardasse esse ás na manga. Se assim fosse, ter-se-ia ao menos gabado disso, e o que sucedera fora precisamente o contrário, estava cheio de ira e de rancor. Só Dona Sol poderia ter revelado os dados da missão que o marquês lhe atribuíra e os factos envolvidos na morte da esposa do duque, mas era algo mais complicado.
Além do mais, o duque nada dizia no seu bilhete sobre ela. Só o Canhoto sabia tudo. Teve de ser ele, pensou. Era o único que já não tinha nada a perder. Ainda assim, era inexplicável. O Canhoto já não podia andar e tinha a vida por um fio quando ele o deixara. Fosse como fosse, já não tinha grande importância; Dom Diego sabia da conspiração. Só o espantava que uma horda de aguazis, zeladores e algum alcaide, com Dom Diego à cabeça, não se tivesse apresentado na quinta do marquês a fim de os prender. Era óbvio que o duque tinha o poder e as influências necessárias para fazer girar a maquinaria da justiça contra eles de forma demolidora. Sua Excelência preferira a mais absoluta discrição para desfazer a urdidura que eles haviam tecido. De facto, ao reler o que dizia sobre a captura do negro, deu-lhe a sensação de que este já havia sido libertado.
Agora, não tinha outra escolha a não ser a traição. Não consentiria que a filha se convertesse numa pária, pois, se a dor de Dom Diego assim o impusesse, podia, com um mero estalar de dedos, propagar o desprestígio de Adela a todo o reino de Espanha, incluindo as Américas. Seria estigmatizada quando o seu pai fosse açoitado e enforcado em praça pública; onde quer que fosse, seria a filha de um traidor e uma empestada que ninguém contrataria; ninguém quereria casar com ela e acabaria por se tornar prostituta. Com a sua própria morte destruiria o sonho da sua vida, o único que tivera, de ver a filha prosperar. Não permitirei que Adela pague pelos meus crimes, pensou. Ele, e mais ninguém, era o único culpado dos seus atos vis.
De pouco serviria já informar o marquês. Por isso, sem dar explicações, levara um dos cavalos de Dom Enrique e partira sem demora em direção à Rua Leganitos.
Chegou à entrada da capital ao cair da tarde, pela porta noroeste do Conde, e desceu a galope por San Juan Bautista até à fonte de Leganitos. Daí, avançou, deixando para trás a Rua do Almirante e a da Flor. Quando vislumbrou o palacete de Dom Diego, descobriu um grupo de guardas reais postados à frente, esperando para tomar o seu cavalo, desarmá-lo e escoltá-lo à presença do duque. Hernaldo parou e saudou o tenente com um certo ar marcial enquanto lhe indicavam que os seguisse. Abriram um portão de cavalaria que dava acesso a um grande implúvio que servia de vestíbulo tanto para a casa principal como para as casas limítrofes, o jardim e as quadras. Era aí que Dom Diego o esperava, encostado, com um certo ar de tranquilidade, à balaustrada de uma fonte, semelhante à de Orfeu na praça da Província. Tinha nas mãos uma pequena navalha com a qual descascava uma maçã tenra. Ele aproximou-se, sossegado, ciente de que os guardas que o rodeavam eram soldados de elite e de que, desarmado, pouco poderia fazer. Dom Diego examinou-o, catalogando o seu andar, idade e força física, como faziam os soldados experientes. Não esperava menos do nobre. Temendo que Dom Diego pudesse ter feito algum mal à sua filha, perguntou-lhe onde estava Adela sem sequer o cumprimentar.
Dom Diego não lhe respondeu e fez-lhe sinal para que se mantivesse em silêncio. Levantou-se, mastigando um pedaço de maçã, e aproximou-se dele. Foi então, ao ver de perto o carácter das suas pupilas, ao manter com ele um silencioso duelo de olhares, que entendeu que o homem que Dom Enrique quisera destruir tinha um tigre no espírito, que Dom Diego jamais se renderia ante deles e que morreria antes de o fazer.
– Ouve bem, matador – disse-lhe ele, com muita serenidade. – Nunca confundas os teus atos com os meus.
Soube que a sua pergunta o ofendera, que ali ninguém faria mal a Adela. Pela temperança com que se movia, deduziu também que o duque estava completamente seguro da sua vitória, e que ele só estava ali para uma coisa: para que Sua Excelência obtivesse justiça.
– Não preciso da tua filha para te obrigar a fazer seja o que for que imaginas – prosseguiu, sereno. – Ao contrário do que farias tu e o amo para quem trabalhas, trouxe-a aqui para sua segurança. Caso o Dom Enrique soubesse que vieste, seria capaz de ordenar que a capturassem para que não falasses. A tua filha é uma convidada desta casa, coisa que tu não serás nunca.
– Peço desculpa, Excelência – disse Hernaldo –, e agradeço a deferência que teve para com a minha Adela. Se houver algo que eu possa fazer por si antes que me levem para a Prisão da Corte, diga.
Dom Diego assentiu, aproximou-se até ficar postado diante dele e comunicou-lhe que podia deixar este mundo de duas maneiras:
– Na primeira, todos ficarão a saber que és um assassino, capaz de matar e mutilar homens e mesmo mulheres. Isto converter-se-á num fardo insuportável para a tua filha. Na segunda, iniciarás a descida aos infernos de forma discreta, sem execução pública. Esta hipótese evitará que Adela sofra as consequências dos teus atos, e além disso, encarregar-me-ei de que, caso não tome marido ou se o que encontrar não for tão bom como devia, encontre uma casa ilustre onde possa trabalhar como precetora.
Hernaldo não precisou nem de um segundo para pensar.
– Aceito a segunda das suas propostas – respondeu sem hesitar – e agradeço-lhe a oferta.
– Então entra e vai despedir-te da tua filha, e mais tarde terminaremos a nossa conversa.
Hernaldo suspirou ao compreender que os seus dias acabavam e lamentou apenas não chegar a ver o seu passarinho casado. Dom Diego dirigiu-se a uma das cancelas do pátio e parou subitamente:
– Diz-me: que motivo impulsionou Dom Enrique a orquestrar semelhante desgraça contra mim?
– O senhor roubou a vitória da guerra ao bando austracista que ele defendia em segredo, e com ela a possibilidade de ser um Grande de Espanha – respondeu Hernaldo. – Mas talvez ele tivesse podido perdoar isto e aceitar a sua derrota se não lhe tivesse arrebatado o ser que ele mais amava.
Dom Diego franziu o sobrolho, sem conseguir encontrar na memória algo que encaixasse naquele pressuposto. A estranheza do duque confirmou a Hernaldo a suspeita de que ele nunca soubera da profunda relação entre a sua mulher e Dom Enrique, nem das pretensões que este tinha para com ela. Era óbvio que a duquesa preferira manter o silêncio.
– A Dona Alba, Excelência, a sua esposa – disse, enquanto no rosto do duque surgia um esgar de perplexidade. – Casou com ela quando ele estava prestes a pedi-la em casamento. A morte da sua esposa mergulhou o marquês num tão grande desespero que quase acabava por se suicidar e, ou muito me engano, ou talvez acabe por o fazer agora.
Dom Diego ficou mudo, hierático, enquanto tentava assimilar aquela informação.
Hernaldo seguiu o caminho indicado até entrar por uma pequena porta de madeira que conduzia a uma galeria. Subiu as escadas até ao piso superior e o tenente conduziu-o a um salão. Aí, após o pequeno rangido da porta a abrir-se, com os olhos húmidos e inchados do choro, a filha fitou-o, sabendo que seriam os últimos instantes que partilhavam. Mal fecharam a porta, Adela levantou-se, contornou a mesa ovalada de mogno das Índias e parou diante dele.
– Contaram-te tudo? – perguntou-lhe Hernaldo.
Adela assentiu e, desamparada, abraçou-se-lhe ao peito, desabafando até lhe ensopar a camisa suja. Ele estreitou os lábios e disse-lhe que ela era o melhor que lhe havia acontecido na vida, que tudo o resto fora um puro trâmite e que qualquer felicidade que pudesse ter sentido naquela terra de Deus fora proporcionada por ela. Adela limitou-se a abraçá-lo com mais força, como quando era pequena e tinha medo durante a noite, tentando dissipar o pânico que devia ter nas entranhas.
– É tempo de voares livremente. Já me encarreguei de que, quando eu te faltar, possas valer-te a ti mesma.
Ela não conseguiu dizer uma única palavra. Hernaldo envolveu-a nos seus braços como se quisesse fundir-se com ela e protegê-la para sempre.
– Fui apenas um homem vil e miserável que teve a sorte de te ter.
Adela fizera dele uma pessoa melhor. Tremendo como o passarinho que era, agarrou-se com ainda mais força a ele, com o corpo tomado pela angústia.
– Pai – dizia apenas. – Pai…
Permaneceram fundidos num abraço que Hernaldo guardou na memória, para reviver quando estivesse pendurado da forca e assim sacudir o temor de se encontrar com os fantasmas que o esperavam do outro lado. Quando a porta se abriu atrás dele, o soldado que era possuiu o seu espírito com a serenidade de quem não teme a morte e, após dar-lhe um beijo na testa, tomou alguma distância para lhe dizer que pegasse em todo o dinheiro e que, após a sua execução, viajasse até à costa para ver o mar, como sempre desejara. Ela, caída de joelhos, agarrou-o para não o deixar partir.
– Tens de me deixar ir, passarinho – disse Hernaldo. – Já é tempo de eu deixar de matar e de tu ficares livre do meu fardo.
Adela soltou-o lentamente, tomando fôlego, desconsolada, e ele dirigiu-se ao umbral. Quando saiu, parou e olhou uma vez mais para trás, enquanto a porta se fechava como prelúdio do que sucederia com a sua vida. A filha e ele trocaram um último olhar: ela dizendo-lhe sem palavras o quanto o amava e ele deixando-lhe dito que nem a morte podia destruir o que sentia por ela. Aquele instante terminou com o bater do trinco e com o grito dilacerante de Adela do outro lado. Após isso, caminhou novamente atrás da sua escolta para saber o que Dom Diego queria dele.
Quando entrou no salão alongado, com uma imponente lareira de mármore ao fundo, viu que o duque se aquecia junto ao fogo. Deu ordens para que o sentassem diante dele e Hernaldo agradeceu-lhe uma vez mais o tratamento que dispensara à sua filha. Dom Diego esperou alguns segundos antes de falar, perscrutando-lhe o rosto envelhecido.
– Pensava que eras um assassino como o Canhoto – disse Dom Diego –, outro homem sem moral que não sabe o que é o amor.
– Talvez seja essa a única diferença que existe entre mim e o Canhoto, Excelência – respondeu. – Não ponho em dúvida a sua palavra de que cumprirá com o acordado a respeito da minha filha, pelo que juro que será feito o que for preciso fazer.
– Passarás aqui a noite e, ao amanhecer, regressarás a casa do teu senhor – disse-lhe suavemente o duque – e convencê-lo-ás a ir nessa mesma manhã a um carvalhal situado nos arredores da sua quinta. Podes fazê-lo?
Ele assentiu, confirmando que não haveria problema. Bastava dizer ao marquês que ele e os seus homens tinham capturado viva Dona Sol Montijos, a quem odiava intensamente. Dom Diego pareceu concordar com a ideia, embora, ao mencionar a marquesa, tenha parecido a Hernaldo que o seu rosto se ensombrava, como se, de alguma forma, esta lhes estivesse a escapar entre os dedos. Essa harpia deve ter dado à sola, pensou Hernaldo.
Concluiu que Dom Diego preferira que a justiça não interviesse no caso de Dom Enrique. A sua intenção era dar-lhe morte ele mesmo num duelo. Infelizmente para o marquês, não ia ser um duelo de pistolas, como desejava, mas sim à espada. Levantou-se e fez uma saudação a Sua Excelência, dirigida mais a um superior militar do que a um ilustre, e franziu o rosto, ciente de que a traição ao seu senhor seria a última das suas vilanias. Deteve-se um instante e, levado pela curiosidade, pediu permissão para esclarecer uma dúvida. O duque fitou-o e assentiu, concedendo-lhe essa graça.
– Como é que descobriu tudo? – perguntou. – Foi o Canhoto, não foi?
– Não mereces saber – respondeu o duque, conciso, dando o assunto por terminado. – És um homem que se enganou nas suas lealdades.
Agradecendo ainda assim a resposta, Hernaldo foi acompanhado à saída, pensando que possivelmente tinha razão. Durante toda a sua vida, servira os interesses de outros que só haviam causado dor e morte. Talvez tivesse vivido melhor servindo alguém como o duque; teria levado uma vida mais tranquila a vigiar a sua quinta e os seus cavalos para que não o roubassem. A única coisa capaz de aplacar aquele seu vício de morte e sangue teria sido a filha. E, enquanto estivesse com ela, teriam passado os anos a caminhar por Castamar e junto a um senhor que nunca o mandaria cometer atos ignóbeis. Nunca fui um homem bom nem justo, repetiu para consigo, só soube amar o meu passarinho. É o único bem que fiz na vida.
Conduziram-no a um pequeno quarto de serviço, onde lhe prepararam uma ceia e uma enxerga limpa. Parecia uma guarita, mais própria de um porteiro que um quarto. Rodaram a chave e deixaram-no ali, tendo por única companhia a luz da lua que entrava por uma pequena janela retangular junto ao teto. Após comer uma sopa de alcachofras, deitou-se, ciente de que o caminho da sua vida chegava ao fim. Morrer é só mais uma diligência, pensou. Fechou os olhos e, como sempre, adormeceu bastante depressa.
Quando voltou a abrir as pálpebras, ainda a luz da manhã não entrava pela janela e já estavam a bater à porta da guarita para que se pusesse a andar. Iam escoltá-lo no que seria a sua última missão. Uma vileza mais, desta vez para com o único homem que o tratara com decência.
Não voltou a ver a filha nem Dom Diego. A viagem de regresso a Soto de Navamedina levar-lhes-ia cerca de duas horas, e Hernaldo partiu de Madrid com o espírito preparado para a morte, ciente de que assim a sua execução não se converteria na desgraça da filha. Cavalgou, escoltado, pela porta norte de São Joaquim, deixando à esquerda o caminho do Moinho Queimado, e subiu até à bacia superior do Manzanares. Enquanto o sol despontava no horizonte à sua direita, imaginou o rosto de Dom Enrique quando entendesse que o mais leal dos seus homens o conduzira a uma armadilha. Sentiu-se sujo por romper aquilo que jamais quebrara: a sua palavra.
Não obstante, agora que ia partir deste mundo para arder no Inferno, pouco lhe importava a dor que isso implicaria para o marquês, embora tivesse sido um bom senhor: cuidara dele e da filha, sustentara-o, proporcionando-lhe tudo aquilo de que precisara para não passar fome, e nunca lhe pedira para fazer nada que estivesse fora do contrato que em tempos haviam acordado.
O tenente da Guarda Real indicou-lhe um carvalhal que passava perto do córrego de Valdeurraca, fora dos limites da quinta de Dom Enrique, como o lugar onde devia conduzir o marquês. Um cenário perfeito para um duelo, longe dos caminhos e dos transeuntes, colado ao córrego para poder depois lavar as feridas. Assentiu ao tenente, dizendo-lhe que conhecia bem o local. Entrou na fazenda de Soto de Navamedina e atravessou a alameda que conduzia ao edifício central, disposto num grande bloco com três pisos de altura. Deixou a montada do marquês nas cavalariças e foi tranquilamente executar a sua traição. Perguntou a um dos criados de câmara onde estava o marquês e este indicou-lhe que Sua Excelência madrugara e saíra para treinar o tiro para lá dos canteiros das traseiras. Para aí se dirigiu, orientando-se pelo som das pistolas. Então, ao encontrá-lo a apontar para um duelo que já nunca travaria, inundou-o uma sensação de cal viva a queimar-lhe as entranhas; uma sensação que lhe confirmava que já nada restava nele, nem honra, nem palavra, nem lealdade, apenas a pura formalidade de trair e morrer.
7 de novembro de 1721
Enrique, junto ao seu mordomo, ao seu armeiro e a dois dos seus ajudantes, praticava o tiro na casca de um castanheiro quando o avisaram da chegada do seu homem. Sorriu, como se dessa forma pudesse apagar os sentimentos contraditórios que se dividiam entre a frustração, a tristeza e a amargura. Embora nessa manhã se tivesse arranjado, o seu aspeto impecável era apenas uma maquilhagem que encobria a verdade sobre a morte de Alba. Por isso, pensara que o melhor que podia fazer era disparar; imaginar que rebentava a cabeça a Dona Sol conseguia relaxá-lo.
Enrique olhou de soslaio para Hernaldo, que se aproximava a passo grave. Este parou a alguns metros, à espera, e ele fez-lhe sinal para que se aproximasse. Hernaldo obedeceu tranquilamente.
– Não te vi ontem à noite – disse-lhe Enrique.
– Saí porque um dos meus homens mandou-me chamar, avisando-me de que tinham a oportunidade de capturar a Dona Sol com vida.
Enrique cravou nele as pupilas refulgentes, como se aquela afirmação lhe valesse agora meia vida.
– Tem-la? – perguntou, e Hernaldo assentiu sem deixar de o olhar nos olhos. – Onde está?
– Os meus homens estão a guardá-la numa clareira perto da fazenda, num carvalhal por onde passa o córrego de Valdeurraca. Preferi que a mantivessem aí para que não pudessem associá-la a si – disse ele. – É um sítio afastado e seguro, e preocupava-me que os espiões de Dom Diego nos vissem trazê-la para a sua mansão.
Enrique sentiu-se invadido por uma alegria macabra e marchou a passos largos, sem se importar com mais nada. Dona Sol não podia imaginar a dor que ia sofrer antes de perder a vida. Sabia que a satisfação de a ver gritar, vexada, humilhada, com as unhas e os mamilos arrancados, não faria mais do que alimentar o abismo sem fundo da sua alma, mas não se importava. Deu uma ordem direta ao seu mordomo para que preparassem o seu cavalo e, fazendo um gesto com a mão, ordenou a Hernaldo que o seguisse.
– Pecaste por prudente, pois os caminhos estão livres de pastores e maiorais por ordem minha, mas, uma vez que a tens cativa num sítio tão afastado, mantê-la-emos aí até à noite para depois a metermos na propriedade – disse, com os lábios cheios de vingança.
Partiram a galope, como se não houvesse amanhã. Atravessaram a saída da quinta e entraram a corta-mato, subindo e descendo várias colinas abruptas. Mais tarde, seguindo o curso do córrego, viraram para o carvalhal. Embrenhados no bosque cerrado, chegaram à clareira já desmontados e pela direita. Foi então que Enrique pressentiu que algo não estava bem. Não havia ninguém naquela clareira: nem homens, nem carroça, nem Dona Sol. Franziu o rosto e olhou para Hernaldo, à espera de uma explicação, enquanto a intuição o avisava de que o único homem que considerava um amigo o estava a trair.
– Lamento, Dom Enrique – confirmou Hernaldo. – Sei que não o merece.
Enrique nada disse, limitou-se a assistir, hierático, à aparição dos guardas reais que os rodearam. Cravou os olhos no seu homem e sorriu-lhe tristemente. Um desconsolo ensombrou-lhe o rosto inteiro e os lábios empalideceram-lhe ainda mais ao ver surgir Dom Diego de Castamar. Este caminhava com a levita aberta, mostrando o seu espadim. Hernaldo tentou falar. Ele ergueu a mão e deteve-o.
– Não importa, Hernaldo – disse. – É hora de acabar com esta tragédia. Imagino que já saibam tudo e, por desgraça, somos novamente nós os derrotados. Espero que Adela esteja em perfeito estado.
Hernaldo assentiu, com o rosto contraído num esgar.
Enrique caminhou juntamente com o poço vazio que toda a vida o acompanhara até pousar sobre Dom Diego o seu olhar vencido. Este devolveu-lhe o tigre que esperava para o devorar e atirou-lhe uma espada para junto dos pés.
– Pode escolher entre pegar nela ou partir para a Prisão da Corte, para ser julgado e enforcado em praça pública, enquanto lhe mijam em cima.
Enrique fitou-o, completamente rígido. Bem sabia o duque que nenhum nobre queria morrer diante da multidão. Baixou-se para pegar na espada. Depois, desembainhou-a. Dom Diego aproximou-se dele com muita calma e parou a alguns passos.
– Quero dizer-lhe uma coisa antes de nos batermos.
– Faça-o – respondeu Enrique, esboçando um sorriso falso, como se tudo aquilo fosse um jogo –, ninguém o impede.
– O meu irmão está a salvo, a menina Castro e a minha prometida, a menina Belmonte, estão também em segurança, e o seu homem traiu-o… – disse pausadamente o duque.
– Não posso senão felicitá-lo pela sua vitória, Excelência – respondeu Enrique em tom sarcástico.
– … e a única coisa que lhe falta é ter coragem suficiente para aceitar uma verdade inevitável – prosseguiu Dom Diego, como se não o tivesse ouvido.
– Talvez seja que o odeio profundamente, Excelência.
– Engana-se, Excelência – respondeu-lhe Dom Diego com os olhos cheios de raiva, aproximando-se até ficar a poucos dedos do seu rosto. – Aceite de uma maldita vez que o ódio que sente por mim é apenas um reflexo do que sente por si mesmo, por ser o principal e único culpado da morte da minha esposa, da minha Alba.
O rosto de Enrique quebrou subitamente, ensombrado, e ele recuou um passo, com um sorriso desfeito. Soube que aquelas palavras o tinham ferido de morte, muito mais do que qualquer aço. Começou a assentir, como se aquela verdade o tivesse carcomido até devorar toda a sua humanidade e agora, naquele preciso instante, não restassem senão os ossos descarnados.
Durante todos aqueles anos, enganara-se a si próprio como uma medida de sobrevivência, enchendo a sua alma vazia de ódio contra os outros para não o dirigir contra si mesmo. Cobrira a culpa pela morte de Alba com vinganças, urdiduras e enganos. Agora, já não havia becos para onde fugir nem intrigas em que se refugiar. As palavras de Dom Diego punham-no frente a frente com uma verdade da qual desde há 10 anos tinha vindo a fugir. Com os olhos carregados e os braços lânguidos, pousou o olhar no duque, que não parava de o perscrutar, à espera de dar início ao duelo.
– Não posso negar a realidade, Excelência. Como sempre. Ela amou-o mais a si, casou consigo e morreu por minha culpa. Pode existir um ser mais patético do que eu? – E, declarando isto, aturdido pela amargura, lançou-se de guarda baixa contra a lâmina de Dom Diego.
Este, sem hesitar, abriu-lhe o peito ao meio enquanto via como a vida se lhe apagava atrás das pupilas.
– Não sairá indemne deste duelo – disse, com um sorriso desfalecido –, pois saiba que a minha Alba e eu éramos duas almas gémeas, e pude beber dos seus lábios sendo o senhor já seu esposo.
Dom Diego apertou mais o espadim que lhe atravessava o torso de um lado ao outro e disse-lhe algo vazio e distante, duvidando da verdade das suas palavras. Ele riu-se até cair de joelhos diante do seu inimigo, e este lançou-lhe um olhar de desprezo. Gemeu de dor uma última vez quando Dom Diego extraiu o espadim, empurrando-o com a bota até ao chão. A vista turvou-se-lhe e, entre a névoa, procurou apenas Alba, a quem chamou descontroladamente. Deixou-se então arrastar por uma belíssima litania que o aproximou das recordações fugazes que tinha da sua aia, Consolación, quando brincavam com os arcos, ou de Hernaldo, quando brindaram juntos numa simples ceia para que ele o convidou. Viu-se subitamente sumido naqueles momentos desfiados, até que apareceu Alba, eterna, passeando a cavalo junto ao Jarama; sentados sob as sombrinhas durante as tardes de verão e junto aos serviços de chá e biscoitos; deitados, enquanto a guerra rugia lá fora e eles entrelaçavam os dedos, olhando para as estrelas ao cair da noite; enquanto observava, embevecido, como a brisa do sul lhe acariciava os pelos da nuca, numa das suas saídas para a costa. Alba, Alba, e depois Alba. Assim se reconheceu em todos aqueles instantes, perscrutando-lhe os lábios de seda, o brilho inquieto das suas pupilas e a sua voz temperada de mulher. Viajou de quadro em quadro, enquanto a sua vida se desfazia, até que se instalou ali, naquele dia soalheiro de primavera no Alcácer, entre o bulício da refeição, o fato branco ajustado e o seu semblante capaz de render impérios. Fora buscar um par de auroras quando, ao virar-se, deu por ela a observá-lo, embevecida, a alguma distância. Ela escondeu suavemente o olhar atrás do leque e ele sorriu-lhe, aproximando-se para lhe entregar o copo.
– Apanhei-a a olhar para mim – disse-lhe ele.
Então, ali, frente ao mar insondável das suas pupilas, Alba assentiu com as faces deliciosamente ruborizadas e tomou-o pelo braço.
– Claro que sim, meu querido marquês, não haveria mulher neste refresco que não estivesse disposta a casar consigo.