7 O processo dialético erro/verdade e razão/experiência: resultados e análises de uma pesquisa baseada nas etapas da desequilibração
Introdução
O objetivo central deste capítulo é divulgar parte dos resultados obtidos em uma tese de doutorado defendida por um dos autores (Souza Filho, 2009). Para que possamos compreender melhor este artigo é necessário entender a estrutura geral da tese, a qual podemos dividir em três partes: um referencial epistemológico baseado em Gaston Bachelard (1884-1962); um referencial histórico no qual fazemos uma recorrência história do eletromagnetismo clássico; e o trabalho em sala de aula, que se subdivide nas etapas do tempo crítico (conscientização, desequilibração e familiarização) propostas por Santos (1998), com as três partes sendo fundamentadas em Bachelard. O trabalho em sala de aula foi realizado em um curso de extensão universitária que será detalhado na seção "Metodologia do trabalho de pesquisa e as etapas da psicanálise". No presente artigo, estudaremos apenas a etapa da desequilibração. As etapas da conscientização e familiarização (que corresponde às análises dos questionários) serão abordadas em outro trabalho.
A desequilibração consiste em um processo dialético e dialógico entre o erro e a verdade; entre a razão e a experiência, que visa compreender alguns elementos do processo de aprendizagem. Trata-se da análise das "falas" dos "sujeitos" no decorrer do curso proposto em nossa pesquisa. Dentro da desequilibração, classificamos em um primeiro trabalho (Souza Filho et al., 2008) as ideias expressadas pelos estudantes em sala de aula nas diferentes zonas do perfil epistemológico. Naquele trabalho tivemos oportunidade de montar um quadro comparativo entre os níveis epistemológicos (cientistas) e ontológicos (estudantes). Complementando aquele artigo, neste trabalho propomos mostrar como o processo dialético e sintético (baseado no experimento de Ørsted) pode contribuir para o processo de aprendizagem. Portanto, é no conjunto desses dois trabalhos que consiste a etapa da desequilibração, e que pode ser consultada em Souza Filho, 2009.
Antes de apresentarmos nosso trabalho é preciso esclarecer alguns pontos teóricos. Detalhes das etapas do tempo crítico da psicanálise podem ser consultados em Souza Filho et al. (2009).
Reflexões sobre a epistemologia bachelardiana
Gaston Bachelard viveu o período de transição entre os séculos XIX e XX, um período revolucionário para as ciências físicas. Foi professor de Física, Química, Filosofia e membro da Academia de Ciências Francesa. Seus trabalhos (teses e livros) estiveram sempre voltados para questões epistemológicas, tendo como pano de fundo suas preocupações pedagógicas.
Sua epistemologia pode ser caracterizada como histórica, descontinuísta, racionalista e dialética: histórica não no sentido de reviver um passado, mas no de encontrar nesse passado as respostas para a compreensão de questões do presente. Diferentemente das epistemologias que consideram a história como linear e cumulativa, Bachelard, a exemplo de Thomas Kuhn, considera que a história se desenvolve por rupturas e revoluções. Bachelard, embora se coloque no ponto central entre razão e experiência, acredita que o vetor epistemológico vai do racional ao real, ou seja, é sempre a razão que guia nossas ações. E, finalmente, Bachelard concebe que é por meio de um processo dialético que o conhecimento científico e humano se desenvolve.
A dialética em Bachelard não pode ser confundida com a acepção clássica do termo, que procede por oposição entre a tese e a antítese. Na dialética bachelardiana, a tese e a antítese não são contraditórias, pelo contrário, elas são complementares. Trata-se de duas positividades. "Ela imprime um movimento indutivo que a caracteriza e que determina uma reorganização do saber numa base alargada" (Bachelard, 1991, p.127).
Segundo Japiassu (1976, p.66), trata-se de um diálogo entre elaboradores de hipóteses e teorias e os efetuadores de experiências. Essa troca de informações tem por objetivo ajustar tanto a teoria quanto a experiência. Esse ajustamento de forma alguma assegura que a teoria esteja destinada a encontrar um meio de realizar-se, mas, assim como a experiência, está sujeita a riscos e a fracassos. Os riscos e os fracassos, em vez de revelarem uma crise da ciência, são a ocasião de um trabalho, porque proporcionam aos cientistas oportunidade tanto de reverem suas teorias e de formularem novas hipóteses, quanto de aperfeiçoarem suas experiências e de melhor controlarem seus instrumentos. Por intermédio desse processo é que se reorganiza o saber. E é essa reorganização que Bachelard chama de dialética.
De forma análoga ocorre o processo dialético entre o erro e a verdade. É por meio do diálogo e do ajustamento entre esses dois polos que o conhecimento epistemológico e ontológico se desenvolve.
A conotação positiva atribuída ao erro por Bachelard
O erro é um tema de pesquisa multidisciplinar, ou seja, tem sido objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento. De acordo com Torre (2007, p.20), a palavra "erro" pode assumir dois tipos de conotações distintas: a negativa e a positiva.
O erro em sua conotação negativa possui um caráter destrutivo ou deturpativo, na qual, geralmente, ocorre uma falha irreversível. Podemos citar como exemplos: os acidentes de trânsito, os erros médicos (que podem agravar uma enfermidade ou levar o paciente ao óbito), injustiças cometidas contra alunos, etc. Esses erros podem e devem ser evitados! No campo da didática e da pedagogia, em que o ensino dogmático-transmissivo foi hegemônico principalmente na primeira metade do século passado, o erro era considerado como um mal a ser evitado. Assim, essa modalidade de ensino tinha como pressuposto norteador evitar ou diminuir a ocorrência do erro por meio de um ensino autoritário e por meio de treinamento exaustivo do conteúdo. A repreensão, a sanção ou o castigo eram estratégias utilizadas pelo professor em relação ao aluno para se evitar a ocorrência e a reincidência dos erros.
Em uma conotação totalmente antagônica ao sentido anterior atribuído ao erro, temos sua conotação positiva, que está em consonância com a concepção bachelardiana e que confere o caráter da positividade ao erro. O erro não é mais entendido como um resultado, mas é fruto de um processo criativo e construtivo da aprendizagem. Nesse sentido, devemos conceber o erro como um sintoma de problemas no processo de aprendizagem e não como um mal a ser evitado.
Essa vertente processual se inscreve numa linha pedagógica construtivista, em que o ensino é centrado num processo educativo e interativo entre o educador e o educando. Trata-se de uma comunicação horizontal: dialógica e dialética. Santos (2005, p.31) elencou algumas características dessa abordagem: valoriza as ideias prévias do aprendiz; o sujeito cognoscente exerce um papel ativo no processo de aprendizagem; o papel do professor é de organizador e facilitador das atividades cognitivas; e, finalmente, o conhecimento passa por reestruturações sucessivas durante o processo.
Bachelard (2004, p.245) defende que todo conhecimento busca sua referência no passado do sujeito, ou seja, em suas experiências antecedentes. Ao considerarmos as ideias prévias que os alunos possuem e trazem para o ambiente escolar e a complexidade do conhecimento científico, somos obrigados a concordar com Bachelard em que o conhecimento não tem um ponto de partida nem uma linha de chegada. A ideia de iniciar da "estaca zero" e de se chegar a uma verdade definitiva não tem fundamento. Se não existem limites para o conhecimento, trata-se de um "eterno recomeçar". Pensar a ciência e o conhecimento como processo, ou seja, que o conhecimento se divide num antes e depois é efetivamente considerar a descontinuidade do pensamento e valorizar as pré-concepções existentes. Assim, "entre os dois polos do mundo destruído e do mundo construído, propomos simplesmente introduzir um mundo retificado" (Bachelard, 1977, p.63). Assim, para Bachelard (2004, p.19), "não há verdade sem erro retificado". Eis a essência do conceito de retificação segundo o nosso autor.
Para Torre (2007, p.36), "dizer que a ciência se constrói sobre as ruínas dos erros cometidos, equivale a dizer que o novo tem suas raízes no velho". Nas palavras de Bachelard (2004, p.19), "o antigo explica o novo e o assimila; e, vice-versa, o novo afirma o antigo e o reorganiza". Portanto, não há conhecimento novo que não esteja determinado de alguma maneira por conhecimentos anteriores. O conhecimento nada mais é do que a retificação de passos anteriores e "a verdade resulta de uma rejeição sucessiva de erros" (Santos, 1998, p.133). Lopes (1996, p.254) afirma que "o conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão". Para a autora, "conhecemos sempre contra um conhecimento anterior, retificando o que se julgava sedimentado".
Como vimos, Bachelard considera o erro como um "passo" necessário do conhecimento num processo de uma busca infindável a uma verdade inatingível, sempre em progresso. O aprendiz nessa busca constante pela verdade está sujeito a incorrer no erro. O erro de que nos fala Bachelard não corresponde a uma afirmação gratuita feita sem nenhum esforço de pensamento. Trata-se de um erropositivo, normal e útil, que "exerce uma função positiva na gênese do saber" (Bachelard, 1996, p.298).
Assim, se o ato de conhecer provoca polêmicas na mente cognoscente, seguidas de múltiplas retificações, é porque estamos nos aproximando de uma verdade, para "que haja erros e, por conseguinte, retificações; parece uma prova de que há um objeto. A existência de um erro subjetivo prova a existência de uma verdade objetiva" (Bachelard, 2004, p.249).
Bachelard considera que o processo dialético entre oerro e a verdade ou entre a experiência e a razão propicia uma aproximação a um conhecimento mais elaborado e sistematizado. Em outras palavras, por meio desse processo de ajustamento é que ocorre a aprendizagem. Nas palavras de Bachelard (2004, p.251), "o erro é um dos tempos da dialética que precisa ser transposta. Ele suscita uma investigação mais precisa, é o elemento motor do conhecimento". Nesse sentido é que vai nortear o nosso "olhar investigativo".
O processo dialético entre razão e experiência
De acordo com a filosofia tradicional, a apreensão dos dados provenientes da natureza, feita por meio da observação e da experimentação, era a forma indubitável de se atingir a "verdade". O conhecimento do objeto seria realmente alcançado pela percepção dos fatos e pela sensação dos sentidos humanos. Assim, a fonte segura do conhecimento para se chegar à verdade seria um contato direto com o real. Em outras palavras, as leis que governam o nosso mundo já estariam determinadas a priori e seriam simplesmente verificadas e confirmadas pelo sujeito cognoscente.
Para Bachelard (2004, p.15), da mesma forma que a sensação não permite ao sujeito o conhecimento pleno do objeto, também a razão não é a fonte segura para se chegar ao conhecimento científico. Ele exemplifica afirmando que a visão artística e o sentimento religioso pertencem à razão humana e consequentemente não possuem um caráter concreto. Sendo assim, eles são verdadeiramente válidos, na medida em que aceitam as categorias a priori do sujeito. Desta forma, arte e religião caracterizam-se pelo caráter idealista, em que a razão e a fé não seriam as fontes do conhecimento.
Refletindo acerca da ciência e da arte, Paiva (2005, p.15) argumentou que a arte é fundamentalmente subjetiva, portanto isenta de compromissos com a verificação. A ciência, pelo contrário, pauta-se por uma lógica, por uma metodologia e por um esforço de comprovação. Embora ambas pertençam a esferas filosóficas distintas, temos que considerar que as teorias científicas são criações da mente humana e, portanto, são análogas às imaginações artísticas, em que a razão comanda a ação. Nessa perspectiva, o sujeito assume uma condição de criador do seu próprio conhecimento. Em outras palavras, o conhecimento é construído pelo sujeito cognoscente.
Devemos destacar a importância do sujeito e do objeto para o conhecimento. Pois, para Bachelard (2004, p.18), se o dado não tivesse nenhuma forma, então nenhum conceito poderia ser formado e a reflexão não teria nenhum poder sobre ele. Inversamente, se o espírito não tivesse nenhuma categoria, a função dado não teria nenhum sentido. Nessa perspectiva, a ciência passa a ser o produto de um trabalho com duas facetas: uma objetiva e outra subjetiva. Esse dualismo é a base da nova filosofia científica.
Para Japiassu (1976, p.41), o filósofo não pode ser o homem de uma só doutrina, seja ela idealista, racionalista, realista ou positivista. Criticando o pensamento unitário, Bachelard (1991, p.7) observa que os cientistas desconsideram uma preparação metafísica. Para eles, a filosofia da ciência está somente no reino dosfatos ou da ação. Por outro lado, os filósofos consideram suficiente a reflexão sobre o objeto, se posicionando apenas no reino das ideias.
Em síntese, Bachelard se coloca no ponto central entre o realismo e a racionalismo. Para nosso autor, razão e experiência trocam conselhos sem fim, num processo dialético. Nem uma, nem outra é a fonte da verdade, sendo ambas instâncias necessárias para se "aproximar" da verdade.
A descoberta do eletromagnetismo: o experimento de Ørsted4
A unificação entre a eletricidade e o magnetismo só ocorreu em 1820, quando o cientista dinamarquês, professor da Universidade de Copenhague, Hans Christian Ørsted,5 em um curso sobre eletricidade, galvanismo e magnetismo, diante de uma audiência familiarizada com os princípios da filosofia natural, colocou a agulha imantada de uma bússola próxima a um fio conduzindo corrente e verificou que essa interação produzia um torque na agulha magnética. Esse importante experimento representou a gênese de um novo campo de pesquisa: o eletromagnetismo. Para mais detalhes, ver Ørsted (1986).
Ørsted estava inserido em uma corrente filosófica germânica denominada Naturphilosophie, que via o universo como um todo interagente e buscava a unificação de fenômenos da natureza como química, luz, calor, eletricidade e magnetismo.
As concepções que Ørsted tinha em relação à corrente elétrica era de um duplo fluxo de eletricidade em sentidos opostos, ou seja, "uma sucessão de interrupção e restabelecimento de equilíbrio, de forma que as forças elétricas estavam em estado de conflito permanente". Ørsted considerava que a produção de calor e luz por meio da corrente elétrica em um fio metálico fino era uma evidência de que calor e luz tinham uma profunda relação com a eletricidade (Ørsted, 1986, p.116). Ele imaginou que, para manifestar também os efeitos magnéticos, era necessário que o aparelho utilizado fosse forte o suficiente para incandescer um fio metálico (Ørsted, 1820, p.274).
Ao tratar da analogia entre eletricidade e magnetismo, Ørsted imaginou que o efeito magnético poderia irradiar do fio como luz e calor e que, "se fosse possível produzir algum efeito magnético pela eletricidade, isso não poderia ser na direção da corrente, pois fora tentado em vão, mas deveria ser produzido por uma ação lateral". Portanto, "como o efeito luminoso e o calor da corrente elétrica saem em todas as direções do condutor, que transmite uma grande quantidade de eletricidade; então ele [Ørsted] pensou ser possível que o efeito magnético irradiasse de maneira semelhante [do fio]" (Ørsted, 1998, p.546).
Após escrever detalhadamente suas observações, Ørsted esclarece que o conflito elétrico não está confinado apenas no condutor, mas está disperso no espaço subjacente. Para ele, o conflito realiza círculos que, combinados ao movimento progressivo ao longo do fio, forma uma linha helicoidal ao seu redor. Como ele considerava dois fluxos de eletricidade em sentidos contrários, ou seja, cargas positivas e cargas negativas se movendo em direções opostas ao longo do fio, isto o levou a supor que a eletricidade negativa se moveria em sentido horário e atuaria sobre o polo norte, mas não sobre o sul. De maneira similar, explicou que a eletricidade positiva se moveria em sentido contrário, atuando apenas sobre o polo sul, mas não sobre o polo norte (Ørsted, 1820, p.276).
André-Marie Ampère discorda da ideia sugerida por Ørsted de que existiria uma espécie de "conflito elétrico" girando ao redor de um fio e que empurrava seus polos provocando um torque na agulha magnética. Adepto da filosofia newtoniana, Ampère concebe a presença de forças de ação e reação agindo ao longo da reta que une dois elementos de corrente à do fio condutor e da corrente no interior da agulha imantada. Ampère interpreta o experimento de Ørsted como interação entre correntes elétricas: as correntes elétricas do fio e da agulha imantada da bússola.
Jean-Baptiste Biot (1774-1862) e Félix Sarvat (1791-1841) apresentaram uma interpretação diferente da interpretação dada por Ampère. Para eles, não existia interação entre correntes como supunha Ampère, mas sim uma interação direta entre polos magnéticos. Ao conectar as extremidades do fio a um aparelho voltaico,6 a corrente elétrica magnetizaria o fio, espalhando polos magnéticos ao longo de sua seção reta. Consequentemente, os polos magnéticos do fio interagiam com os polos magnéticos ou "moléculas" magnéticas da agulha da bússola. Havia, portanto, "uma ação direta dos polos magnéticos do fio imantado sobre os polos do ímã" (Assis & Chaib, 2006).
Metodologia do trabalho de pesquisa e as etapas da psicanálise
O trabalho de pesquisa consistiu de um curso de extensão universitária que denominamos Fundamentos Históricos do Eletromagnetismo. Esse curso foi constituído por estudantes do curso de licenciatura em Física, interessados pela história do eletromagnetismo. Além do estudo dessa temática, o curso tinha como objetivo o estudo do sistema cognitivo do sujeito aprendiz.
O curso foi ministrado no decorrer do ano letivo de 2006, com uma carga horária de 60 horas/aulas, distribuídas quinzenalmente em 20 encontros, com duração de 3 horas cada. O curso teve um total de 15 inscritos. A nossa amostra foi composta por alunos com idades entre 18 a 25 anos de idade, cursando o segundo ou terceiro ano do curso de licenciatura em Física da UNESP de Bauru.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que pode ser classificada como pesquisa-ação. De acordo com Tozoni-Reis (2007, p.31), a pesquisa-ação "articula a produção de conhecimentos com a ação educativa", ou seja, por um lado ela investiga e produz conhecimento sobre a realidade a ser estudada, por outro, ela realiza um processo educativo para o enfrentamento dessa mesma realidade. Assim, existe uma articulação entre a teoria e a prática. Ou seja, os participantes deixam de ser simplesmente "objetos de estudo" para se tornarem pesquisadores do conhecimento sobre sua própria realidade, compartilhando o "conhecimento que trazem de diferentes experiências sócio-históricas" (Tozoni-Reis, 2007, p.32).
A estrutura da coleta e análise dos dados está baseada nas etapas do tempo crítico da psicanálise que foram propostas por Santos (1998, p.202-25) e fundamentada em Bachelard. Estas etapas consistem em:
O tempo lógico da desequilibração consiste numa etapa em que o aluno, após tomar consciência de seus obstáculos e desconfiar de suas certezas, começa a se afastar de seus conhecimentos iniciais, ou seja, das suas concepções alternativas. Isto se dá pelo confronto entre esses conhecimentos elementares com conhecimentos mais elaborados que advêm do professor ou dos colegas, em que o aluno busca as razões para a explicação de suas opiniões. As discussões permitem ao aluno se dar conta das divergências existentes entre as concepções e perceber que elas não são verdades absolutas. Esse é o momento da infirmação das concepções alternativas, o qual consiste em "introduzir experiências que as questionem e as contradigam, questões críticas que as ponham em causa, contraexemplos, anomalias históricas, evidências teóricas e práticas reveladoras dos limites de seu campo de aplicação, contrastação experimental no sentido de falsificá-las, etc." (Santos, 1998, p.215). Em outras palavras, a infirmação caracteriza-se pela tomada da consciência do "não". Segundo a autora, esse desequilíbrio levará à necessidade de procurar uma nova concepção. Esse conflito cognitivo interno tenderá a ser resolvido pela familiarização.
Neste trabalho nos deteremos na análise da desequilibração, que corresponde à análise da fala dos sujeitos. A conscientização e a familiarização, que consistem na análise dos questionários, serão tratadas num outro artigo.7
Apresentação e análise dos resultados
Transcrevemos as falas mais significativas ocorridas durante os encontros. Elas podem ser consultadas em Souza Filho (2009). Vamos apresentar neste artigo o processo dialético sintético tendo como exemplo o experimento de Ørsted. Identificamos os sujeitos da pesquisa apenas com as três primeiras letras do nome.
Pretendemos mostrar nos trechos a seguir como o processo dialético de análise e síntese é importante para o desenvolvimento científico e para o processo de aprendizagem de conceitos de maneira geral. Trata-se dos dados referentes à transcrição 5, que apresenta um encontro em que foi estudada uma tradução do trabalho de Ørsted (1986), em que ele descreve sua descoberta.
Prof. "[...] desde que seja possível incandescer um fio metálico." Por que ele diz isto?
31. Sal: Não sei [...]. Só sei que o ferro perde suas [...]. Que metal que ele utilizava?
32. Prof.: Os metais de maneira geral; acho que ele utilizava o latão.
33. Sal: Se for ferroso, acima de 700 ºC, ele perde suas propriedades.
34. Prof.: Mas ele está falando do fio condutor.
35. Sal: Sim!
36. Prof.: Ele diz que pra produzir o efeito é necessário tornar incandescente o fio metálico.
37. Sal: Mas agora é o seguinte: a agulha é imantada?
38. Prof.: Sim [...]
39. Sal: Se o fio for ferroso, com corrente, "vai dar pau". Se o fio for ferroso e ele se tornar incandescente. O ferro perde suas propriedades em torno dos 600 a 700 ºC e deixa de ser magnético.
Sabemos que os materiais magnéticos perdem suas propriedades com a temperatura. Ao passar uma corrente intensa pelo fio metálico ele se torna incandescente (aquecendo e emitindo luz visível). O estudante Sal demonstrou na passagem 39 acreditar que o fio deixa de ser magnético. Portanto, ele parece interpretar a interação entre dipolos magnéticos como algo semelhante à concepção que os cientistas Biot e Savart tiveram ao interpretar esse fenômeno.
40. Ali: Eu acho que incandescente explica "a eletricidade que está passando pelo fio". Quanto maior a corrente, maior é a dissipação de calor. Quando o fio se torna incandescente é "visível" que a corrente que passa pelo fio é intensa.
41. Sid: Mas ele está associando o magnetismo com o efeito elétrico. E você não precisa "disso" (do fio incandescente). Não precisa de um efeito "observável". Se estiver passando uma corrente elétrica pelo fio, mesmo sem o fio se tornar incandescente, você terá o efeito.
42. Prof.: Ele acreditava que o fio deveria se tornar incandescente, pois, para ele, havia relação entre calor, luz, eletricidade e magnetismo. Ele não sabia que se ele utilizasse fios com diâmetros maiores, embora o fio não se tornasse incandescente, o efeito seria o mesmo.
Na continuação, Ali considera que Ørsted necessitaria "ver" o fenômeno acontecendo (passagem 40) para interpretá-lo. Em seguida, o aluno Sid retifica esse pensamento dizendo que não é necessário observar o fenômeno acontecendo (passagem 41). Um fio de diâmetro maior produz um melhor resultado!
43. Prof.: O que ele quis dizer com conflito elétrico?
44. Sal: A indução ao redor do fio.
45. Prof.: A indução?
46. Sal: O campo gerado ao redor do fio. Assim funciona o transformador, não é?
47. Sal: Você "injeta" uma corrente no fio e, perpendicularmente, você tem um campo magnético, não é? Pausa. E que tem a propriedade de induzir uma tensão ou corrente em outro condutor. Ele não tinha este conceito, mas ele observou que você "injetando", ou seja, fazendo circular uma corrente pelo fio, você tem um "conflito elétrico". Que na verdade é o que nós chamamos hoje em dia de campo magnético.
48. Mar: Eu acho que ele tinha a ideia de que, se você passasse uma corrente pelo fio, você teria um tipo de atração. Quando ele colocou a agulha próxima ao fio, ele verificou uma "rotação" diferente, ou seja, outro tipo de atração, e, aí, ele chamou de conflito elétrico. Uma atração contrária. Acho que foi isto que ele quis dizer [...].
49. Prof.: Ele tinha a concepção de que havia dois fluxos de eletricidades em sentidos contrários. Estes fluxos entravam em conflito e havia uma "luta" entre os dois tipos de eletricidades (positiva e negativa) e, por isto, o fio se tornava incandescente.
50. Sal: Ele não tinha a concepção de que o campo girava ao redor do fio?
51. Prof.: A concepção dele é diferente da que nós temos hoje em dia. Para ele, havia dois turbilhões. Um girando no sentido horário, que empurrava um dos polos para oeste e, o outro, no sentido anti-horário, que empurrava o outro polo para leste.
Para o estudante Sal, a palavra "conflito elétrico" sugere a ideia que temos de um campo magnético ao redor do fio (passagens 46 e 47). Mar (passagem 48) diz que a interpretação de Ørsted na época estava relacionada à "atração" ou à "ação contrária", que implicitamente sugere a ideia de uma "interação magnética" por meio de uma "ação a distância", explicadas pelo professor nas passagens 49 e 51. Essa concepção também se assemelha à interpretação dos cientistas Biot e Savart.
Prof.: Utilizando o experimento da Figura 1, coloca a agulha da bússola no mesmo plano horizontal do fio e pergunta:
52. Prof.: O que acontece?
53. Sal: Está no mesmo plano?
54. Prof.: Sim, está.
55. Sal: Está escrito aqui que a agulha não sofre nenhum desvio. Ela vai ficar na mesma posição. Ela se manterá no mesmo eixo de orientação do fio.
56. Prof.: Observem o que acontece [...].
57. Sal: Nada!
58. Prof.: Você tem certeza? Acontece "algo". O que está acontecendo?
Os alunos observam. Pausa.
59. Prof.: O que acontece?
Sal: Ela mexe um pouquinho [...]
60. Prof.: Por quê?
61. Mar: Ela está se movendo assim: na vertical e não na horizontal.
Mar pega um giz e o movimenta na vertical.
Sal aproxima os olhos da agulha magnética e diz:
62. Sal: De fato, o Mar tem razão.
63. Prof.: O que acontece é que aquela ponta verde sobe e a outra ponta desce.
64. Prof.: É, e como ela está no mesmo plano, ela não consegue girar e sofrer uma deflexão horizontal (giro).
Figura 1 - Reprodução do experimento de Ørsted realizado em sala de aula
Mesmo observando um fenômeno, não conseguimos entender o que realmente acontece. O professor colocou "propositalmente" a agulha magnética no mesmo plano horizontal do fio condutor. Embora a agulha não gire, isso não significa que ela não sofra a influência da corrente elétrica. O aluno Sal, embora consciente disso (passagem 53), não nota que ela sofre influência (passagem 57). O professor explica que a bússola se move no seu eixo vertical e não no eixo horizontal, o que provocaria o giro da agulha da bússola (passagens 63 e 64).
O Prof. pega uma agulha não magnética (de latão) e pergunta:
102. Prof.: O que vai acontecer se colocá-la próximo ao fio?
103. Sal: Ela vai girar [...]. Mas espera aí: não dá pra saber qual é o norte e qual é o sul da "latinha".
104. Sal: Então, não vai acontecer nada!
O Prof. faz o experimento com a agulha de latão e mostra que ela não sofre nenhuma influência da corrente elétrica.
105. Mar: Ela não se mexe pelo "peso" da agulha.
106. Prof.: Você está dizendo que ela não se move pelo tamanho da agulha?
107. Mar: Sim, porque se fosse uma agulha "menorzinha" ela se moveria.
108. Nel: Não é isto! É porque ela não é magnética!
109. Prof.: Os efeitos eletrostáticos atuam em uma variedade de materiais. Já o efeito magnético apenas atua em corpos magnetizáveis.
Nesse trecho, os alunos estão diante do experimento. O professor utiliza um grampo aberto (semelhante àqueles que prendem os papéis em pastas - colchete tipo "bailarina"), que, apesar de ser um objeto metálico, não possui propriedades magnéticas. Inicialmente, o estudante Sal diz que ela vai "girar". Em seguida, ele retifica seu pensamento e reconhece que o material não é magnético (passagem 103). Em seguida, afirma que a agulha (que não é magnética) não sofre influência (passagem 104). O aluno Mar parece ignorar o que foi dito, pois para ele a agulha é grande e possui uma quantidade de "massa" grande (trechos 105 e 107). Finalmente, o professor apresenta a conclusão a que Ørsted chegou ao perceber que o conflito elétrico atua sobre corpos magnetizáveis.
O Prof. lê que o conflito não está confinado apenas no fio condutor, mas está disperso ao seu redor
110. Prof.: O que acontece com o calor? Ele se irradia do material.
111. Sal: Não é difícil se enganar com esta concepção.
112. Prof.: Ainda mais que era difícil aceitar a concepção de um "campo magnético" circulando ao redor do fio [...].
158. Sal: Realmente, deve ter sido difícil aceitar a ideia de um campo "girante".
Assim como luz e calor, Ørsted afirmou que o efeito podia se irradiar do material (passagem 110). O estudante Sal reconhece que, para uma pessoa que não possua a concepção de que existe um campo magnético circulando ao redor do fio, é difícil aceitar que o efeito pudesse irradiar do fio condutor.
Este artigo discute o processo de análise e síntese. Um processo dialético em que a razão e a experiência trocam informações. Quando o experimento não é capaz de explicar o fenômeno, recorre-se à razão. Inversamente, quando a razão tem uma "opinião" formada, é necessário verificá-la. A nova experiência vai questionar novamente o pensamento, que, por sua vez, vai levantar novas dúvidas a serem investigadas. Assim, esse processo ocorre indefinidamente. Nesse processo, está presente a relação dialética erro-verdade. Na busca indefinida pela verdade, à medida que aparecem os erros, eles vão sendo retificados pelo pensamento, fazendo com que o conhecimento evolua e se aproxime mais da verdade. Novos erros surgem e o conhecimento "dá mais um passo" em direção à verdade. A evolução do pensamento possui essa característica, em que o erro retificado "dá lugar" a uma verdade provisória.
Considerações finais
As transcrições apresentadas podem ser divididas em três partes que ilustram o processo de dialética e síntese. No primeiro caso, o fato de Ørsted possuir a concepção de "conflito elétrico" nas adjacências do fio, ou, ainda, de o aluno possuir a ideia de campo ao redor do fio, só faz sentido por meio de uma verificação experimental. Um obstáculo presente e a que Bachelard chama a atenção, é o obstáculo substancialista, em que o cientista e o aluno imaginam que "algo" ou um "meio" tem que transmitir essa força para a agulha da bússola. Por outro lado, o fato de a agulha magnética não se movimentar quando posta no mesmo plano do fio, ou, ainda, paralelo a ele, deve ser explicado com base na razão. Ao colocar a bússola no mesmo plano do fio, este permaneceu praticamente estático, no entanto, uma predição teórica sugere que a agulha sofreu influência, mas, pelo fato de ela ter se movido apenas no plano vertical, o efeito não pode ser observado no plano horizontal (giro). Aqui, trata-se da experiência primeira. O objeto observado não revela a essência do fenômeno presente. No último trecho, nas proximidades do fio foi colocada uma agulha "não magnética" que permaneceu inerte à passagem da corrente elétrica pelo fio. Atribuir essa imobilidade da agulha ao seu tamanho e massa é um erro. O raciocínio permite avaliar que ela não se move porque, apesar de ser metálica, ela não é magnética. Resumindo, podemos dizer que, quando o experimento evidencia os fenômenos, é preciso explicá-los. Quando criamos modelos teóricos, é preciso verificá-los. Isso caracteriza o processo dialético entre o realismo e o racionalismo. Analogamente, o aluno não aprende sem errar, e o erro não faz sentido sem uma "verdade" a ser alcançada. Ao mencionarmos os erros históricos, é possível relacioná-los com os erros didáticos ou pedagógicos.
Referências bibliográficas
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