As Criptas estão diferentes de como eu lembrava.
Só estive aqui uma vez antes, em um passeio da escola no terceiro ano. É estranho, mas não me lembro de nada da visita em si, só que Jen Finnegan vomitou no ônibus quando estávamos voltando e o ar ficou fedendo a atum mesmo depois que o motorista abriu todas as janelas.
As Criptas se localizam na fronteira norte; dão para a Selva e para o rio Presumpscot. Foi por isso que tantos prisioneiros conseguiram fugir depois dos Incidentes. Os estilhaços de explosivos arrancaram pedaços enormes do muro; os detentos que conseguiram sair das celas correram direto para a Selva.
Depois dos Incidentes, o local foi reconstruído, ganhando uma ala nova e moderna. As Criptas sempre foram monstruosamente feias, mas agora estão piores do que nunca. O acréscimo de aço e cimento se une de forma esquisita com o prédio antigo, feito de pedra enegrecida, com centenas de janelinhas com grades. O dia está ensolarado. Atrás do teto alto, o céu é de um azul intenso. A cena toda me parece estranha. Este é um lugar que nunca deveria ver a luz do sol.
Por um minuto fico parada do lado de fora, me perguntando se não devo dar meia-volta e ir embora. Vim do centro até aqui de ônibus, que foi esvaziando conforme nos aproximávamos do destino final. No final, restavam somente o motorista e uma mulher grande e muito maquiada com roupa de enfermeira. Quando o ônibus se afastou, jogando para trás lama e fumaça, pensei por um louco segundo em sair correndo atrás dele.
Mas eu preciso saber. Preciso.
Assim, sigo a enfermeira, que vai na direção da guarita do lado de fora do portão e mostra a identidade. Os olhos do guarda se dirigem a mim, e lhe passo um pedaço de papel sem dizer nada.
Ele olha a fotocópia.
— Eleanor?
Faço que sim com a cabeça. Não me arrisco a falar. Na fotocópia, é impossível identificar muitas das feições dela e distinguir a cor cinzenta do cabelo. Mas, se ele olhar com muita atenção, vai ver os detalhes que não encaixam: a altura, a cor dos olhos.
Felizmente, ele não olha.
— O que aconteceu com o original?
— Foi parar na secadora — respondo de pronto. — Tive que pedir uma segunda via ao SSV.
Ele dirige o olhar para a fotocópia. Espero que não consiga ouvir meu coração, que está batendo alto e com força.
Conseguir a fotocópia não foi problema. Só precisei fazer uma rápida ligação para a Sra. Hargrove de manhã, seguida de uma proposta de uma xícara de chá, uma conversinha de vinte minutos, uma necessidade clara de ir ao banheiro e um desvio de dois minutos passando pelo escritório de Fred. Eu não poderia correr o risco de ser identificada como a futura esposa dele. Se Cassie estiver aqui, é possível que alguns dos guardas conheçam Fred. E se ele descobrir que andei xeretando pelas Criptas…
Ele já me falou que não devo fazer perguntas.
— Propósito?
— Só… visita.
O guarda resmunga. Devolve meu papel e sinaliza para que eu siga quando as grades começam a abrir.
— Passe no balcão de visitantes — diz ele.
A enfermeira me lança um olhar curioso antes de seguir na minha frente pelo pátio. Não consigo imaginar que haja muitos visitantes aqui.
Esse é o objetivo. Trancá-los e deixar que apodreçam.
Atravesso o pátio. Passo por uma porta pesada de aço com tranca e vou parar em um saguão de entrada claustrofóbico, onde há um detector de metais e vários guardas corpulentos. Quando entro, a enfermeira já colocou a bolsa em uma esteira e está parada de braços e pernas abertos enquanto um guarda passa um detector de metais portátil pelo corpo dela, em busca de armas. Ela parece nem reparar; está ocupada conversando com a mulher que cuida da recepção, à direita, que fica atrás de um vidro à prova de bala.
— O mesmo de sempre — diz ela. — O bebê me fez passar a noite acordada. Estou dizendo, se o 2.426 me causar mais problemas hoje, vou trancar aquele idiota na solitária.
— Amém — responde a mulher da recepção. Em seguida, se vira para mim: — Identidade?
Repetimos o procedimento todo de novo: passo o papel pela abertura no vidro, explico que o original estragou.
— Como posso ajudar? — pergunta ela.
Passei as últimas vinte e quatro horas elaborando minha resposta com cautela, mas as palavras acabam saindo com hesitação:
— Eu… Eu vim visitar minha tia.
— Sabe em que ala ela está?
Balanço a cabeça.
— Não… Nem sabia que ela estava aqui. Acabei de descobrir. Durante a maior parte da minha vida, pensei que ela estivesse morta.
A mulher não demonstra reação a essa declaração.
— Nome?
— Cassandra. Cassandra O’Donnell.
Aperto os punhos e me concentro na dor que percorre a palma das minhas mãos enquanto ela digita o nome no computador. Não sei se estou torcendo para que o nome apareça ou não.
A mulher balança a cabeça. Ela tem olhos azuis como água e cabelo louro ondulado, que na luz do local parece ser do mesmo tom cinza sem graça das paredes.
— Não tem nada aqui. Sabe o mês de entrada?
Há quantos anos Cassie desapareceu? Eu me lembro de ouvir na posse de Fred que ele está sem par há três anos.
Dou um palpite.
— Janeiro ou fevereiro de três anos atrás.
Ela suspira e se levanta da cadeira.
— Só digitalizamos os dados no ano passado.
Ela desaparece do meu campo visual e volta com um livro grande com capa de couro, que coloca na bancada ao lado com um estrondo. Vira algumas páginas, depois abre uma janelinha no vidro e desliza o livro para mim.
— Janeiro e fevereiro — diz ela simplesmente. — Está tudo organizado por data. Se ela entrou, vai estar aí.
O livro é enorme e as páginas estão cheias de uma caligrafia antiquada, com datas de entrada, nomes de prisioneiros e números correspondentes. O período de janeiro a fevereiro ocupa várias páginas, e fico com a sensação desconfortável da mulher me observando com impaciência enquanto passo o dedo pela coluna de nomes.
Sinto meu estômago se contrair. Ela não está aqui. É claro que posso ter errado as datas, ou posso estar completamente enganada. Talvez ela nunca tenha vindo parar nas Criptas.
Lembro-me de Fred rindo e dizendo: Ela não está muito em alta hoje em dia.
— Achou alguma coisa? — pergunta a mulher, sem interesse real.
— Só um segundo.
Uma gota de suor escorre pela minha coluna. Viro para o mês de abril e continuo a busca.
E então, vejo um nome que me faz parar. Melanea O.
Melanea. Era o nome do meio de Cassandra; eu me lembro de ouvi-lo na posse de Fred e de vê-lo escrito na carta que roubei do escritório dele.
— Aqui — digo.
Faz sentido Fred não ter usado o nome real dela. Afinal, o objetivo era fazê-la desaparecer.
Empurro o livro de volta pela janelinha no vidro. Os olhos da mulher deslizam de Melanea O. para o número atribuído à pessoa: 2.225. Ela digita no computador enquanto repete o número baixinho.
— Ala B — diz a mulher. — A ala nova. — Ela digita mais um pouco, e uma impressora atrás dela ganha vida e regurgita um pequeno adesivo branco com as palavras VISITANTE/ALA B impressas. Ela o desliza pela janelinha para mim, junto com outro livro de capa de couro, só que mais fino. — Assine seu nome, ponha a data no registro de visitantes e acrescente o nome da pessoa que você veio visitar. Coloque o adesivo no peito; deixe-o visível o tempo todo. E vai ter que esperar que um acompanhante chegue. Passe pela segurança enquanto mando chamar uma pessoa para buscar você.
Ela faz esse discurso final rápido, sem entonação na voz. Pego uma caneta na bolsa e escrevo Eleanor Latterly no local determinado, rezando para ela não pedir para ver minha identidade. O registro de visitantes é um deserto. Só três pessoas vieram aqui na semana passada.
Minhas mãos começaram a tremer. Tenho dificuldade para tirar o casaco depois que os seguranças dizem que devo passá-lo pelos raios X. Minha bolsa e meus sapatos também são colocados em bandejas para inspeção, e preciso ficar parada com os braços e as pernas abertos, como a enfermeira fez, enquanto um dos homens me apalpa de uma forma meio desajeitada e passa o detector de metais entre minhas pernas e sobre os seios.
— Limpo — diz ele, e dá um passo para o lado a fim de me deixar passar.
Depois da área de segurança fica uma pequena área de espera, mobiliada com várias cadeiras baratas de plástico e uma mesa também de plástico. Vejo, adiante, vários corredores e placas apontando o caminho para alas e partes diferentes do complexo. Uma tevê está ligada no canto, sem som; é uma transmissão política. Desvio o olhar para o caso de Fred aparecer na tela.
Uma enfermeira com tufos de cabelo preto e um rosto brilhoso e oleoso aparece no corredor vindo na minha direção. Ela calça sapatos azuis de hospital e uma roupa florida. Seu crachá diz JAN.
— É você que vai à Ala B? — pergunta, ofegante, quando se aproxima.
Faço que sim com a cabeça. O perfume dela é de baunilha, doce, enjoativo e forte demais, mas ainda assim não esconde por completo os outros cheiros do local: cloro, odores corporais.
— Por aqui.
Ela sai andando na minha frente até a porta dupla pesada, que abre com o quadril.
Do outro lado da porta, a atmosfera muda. O corredor é de um branco brilhante. Deve ser a ala nova. O piso, as paredes e até o teto são feitos dos mesmos painéis impecáveis. Até o ar tem cheiro diferente, mais limpo e mais novo. Está tudo muito silencioso, mas, enquanto andamos pelo corredor, ouço sons ocasionais de vozes abafadas, o apito de equipamentos mecânicos, o clique dos sapatos de outra enfermeira em outro corredor.
— Já veio aqui antes? — pergunta Jan. Balanço a cabeça, e ela me lança um olhar de soslaio. — Imaginei. Não recebemos muitas visitas. Não tem por quê.
— Acabei de descobrir que minha tia…
— Você vai ter que deixar a bolsa do lado de fora da ala — interrompe-me ela. Ofega, ofega, ofega. — Até uma lixa de unha pode acabar causando problemas. E vou ter que lhe dar sapatilhas. Esses cadarços não podem entrar lá na ala. Ano passado, um dos nossos homens se enforcou pendurado em um cano, rápido como um raio, quando conseguiu uns cadarços. Estava mortinho quando o encontramos. Quem você veio ver?
Ela diz tudo isso tão rápido que mal acompanho o rumo da conversa. Uma cena me surge na mente: uma pessoa pendendo do teto e cadarços amarrados no pescoço. Na imagem que vejo, a pessoa balança, gira na minha direção. Estranhamente, é o rosto de Fred que imagino, enorme, inchado e vermelho.
— Eu vim ver Melanea. — Observo o rosto da enfermeira e vejo que o nome não significa nada para ela. — Número 2.225 — acrescento.
Pelo visto, as pessoas são identificadas apenas pelos números nas Criptas, porque a enfermeira solta um ruído de reconhecimento.
— Ela não vai causar problemas — diz de forma conspiratória, como se estivesse me contando um grande segredo. — É quieta como um rato de igreja. Quer dizer, nem sempre. Eu me lembro dos primeiros meses, dela gritando sem parar “Meu lugar não é aqui! Não sou louca!” — A enfermeira ri. — É claro que todos dizem isso. E aí você começa a ouvir, e eles enchem os seus ouvidos com histórias de homenzinhos verdes e aranhas.
— Ela… ela é louca, então?
— Ela não estaria aqui se não fosse, estaria? — Fica claro que ela não espera uma resposta. Chegamos a outra porta dupla, marcada com uma placa que diz ALA B: PSICOSES, NEUROSES, HISTERIA. — Vá pegar um par de sapatilhas — ordena ela com alegria, e aponta o caminho.
Ao lado da porta há um banco e uma pequena estante de madeira com várias sapatilhas de plástico. A mobília é antiga e parece estranha no meio desta brancura intensa.
— Deixe os sapatos e a bolsa aqui. Não se preocupe, ninguém vai pegar. Os criminosos estão todos dentro das alas.
Ela ri de novo. Eu me sento no banco e tento desamarrar os cadarços, desejando ter me ocorrido a ideia de usar botas ou sapatilhas. Meus dedos estão desajeitados.
— Então ela gritava? — pergunto. — Logo que chegou?
A enfermeira revira os olhos.
— Achou que o marido estava tentando se livrar dela. Gritava sobre conspirações para quem quisesse ouvir.
Meu corpo todo fica frio. Engulo em seco.
— Tentando se livrar dela? Como assim?
— Não se preocupe. — Jan balança a mão em um gesto de desdém. — Ela ficou quieta bem rapidinho. A maioria fica. Toma os remédios com regularidade e não causa problema para ninguém. — Ela bate no meu ombro. — Pronta?
Só consigo assentir, embora pronta seja o exato oposto de como me sinto. Meu corpo está tomado por uma necessidade de virar e sair correndo, mas me levanto e sigo Jan pela porta dupla até outro corredor, de um branco tão impecável quanto aquele pelo qual acabamos de passar, com portas brancas e sem janelas. Cada passo parece mais difícil do que o anterior. Sinto o frio do assoalho através das sapatilhas, que são finas como papel, e cada vez que meu calcanhar toca o chão, um tremor percorre minha coluna.
Em pouco tempo chegamos a uma porta marcada com o número 2.225. Jan bate duas vezes com força, mas parece não estar esperando resposta. Tira um cartão magnético do pescoço e o segura na frente do leitor digital à esquerda da porta.
— Recebemos sistemas novos depois dos Incidentes. Legal, não é?
E, quando a tranca se abre com um clique, ela empurra a porta com firmeza.
— Visita para você — anuncia ela com alegria ao entrar na cela.
Este último passo é o mais difícil. Chego a pensar que não vou conseguir. Preciso praticamente me jogar para a frente, me obrigar a passar pela porta, a entrar na cela. Quando entro, o ar some do meu peito.
Ela está sentada no canto, em uma cadeira de plástico sem arestas, olhando por uma janelinha com grades pesadas de ferro. Não se vira quando entramos, mas identifico seu perfil, que está tocado de leve pela luz que entra de fora: o pequeno nariz arrebitado, a boca delicada, os cílios longos, a orelha como uma concha cor-de-rosa e a pequena cicatriz da intervenção embaixo. Seu cabelo é comprido e louro e vai até quase a cintura. Imagino que tenha uns trinta anos.
Ela é bonita.
Ela se parece comigo.
Meu estômago dá uma cambalhota.
— Bom dia — diz Jan, bem alto, como se Cassandra não fosse ouvir se ela não falasse assim, mesmo a cela sendo mínima. É pequena demais para nós três ficarmos ali com conforto, e, apesar de o espaço conter apenas um colchão, uma cadeira, uma pia e um vaso sanitário, parece lotado. — Trouxe uma pessoa para ver você. Surpresa boa, não acha?
Cassandra não fala nada e não dá sinal de perceber nossa presença.
Jan revira os olhos de forma expressiva e diz sinto muito com os lábios. Em voz alta, diz:
— Vamos lá. Não seja rude. Vire-se e diga oi, como uma boa menina.
Cassie se vira, embora seus olhos passem direto por mim e sigam para Jan.
— Posso ganhar uma bandeja, por favor? Perdi o café da manhã hoje.
Jan coloca as mãos na cintura e diz, em tom exagerado de reprovação, como se estivesse falando com uma criança:
— Isso foi bobagem sua, não foi?
— Não estava com fome — diz Cassie simplesmente.
Jan suspira.
— Você tem sorte de eu estar de bom humor hoje — responde ela, com uma piscadela. — Vai ficar bem se eu deixá-la aqui sozinha por um minuto? — Essa pergunta é direcionada a mim.
— Eu…
— Não se preocupe — prossegue Jan. — Ela é inofensiva. — Ela levanta a voz e assume um tom alegre forçado: — Já volto. Seja uma boa menina. Não perturbe sua visita. — Ela se vira para mim de novo: — Se houver qualquer problema, aperte o botão de emergência ao lado da porta.
Antes que eu possa responder, ela sai para o corredor e fecha a porta. Ouço a tranca deslizar. O medo me domina, intenso e claro, superando os efeitos abafadores da cura.
Por um momento fico em silêncio, tentando lembrar o que vim dizer. O fato de que a encontrei, a mulher misteriosa, é avassalador, e de repente não consigo pensar no que perguntar.
Os olhos dela grudam nos meus. São cor de mel e muito límpidos. Inteligentes.
Não loucos.
— Quem é você? — Agora que Jan saiu, a voz dela assume um tom acusatório. — O que está fazendo aqui?
— Meu nome é Hana Tate — digo. Inspiro fundo. — Vou me casar com Fred Hargrove sábado que vem.
O silêncio se estende entre nós. Sinto os olhos dela me avaliando. Eu me obrigo a ficar imóvel.
— O gosto dele não mudou — diz ela, de forma neutra, e se volta para a janela.
— Por favor. — Minha voz falha um pouco. Devia ter trazido água. — Eu queria saber o que aconteceu.
As mãos de Cassie estão imóveis no colo. Ela deve ter aperfeiçoado essa arte ao longo dos anos: ficar sentada assim, imóvel.
— Eu sou louca — diz ela, sem entonação na voz. — Não lhe contaram?
— Não acredito nisso — retruco, e é verdade. Não acredito mesmo. Agora que estou falando com Cassie, tenho certeza de que ela é sã. — Eu quero a verdade.
— Por quê? — Ela se vira para mim de novo. — Por que você se importa?
Para que não aconteça comigo; para eu impedir. Esse é o verdadeiro motivo, bem egoísta. Mas não posso dizer isso. Ela não tem por que me ajudar. Não somos mais feitos para nos importarmos com estranhos.
Antes que eu consiga pensar em qualquer coisa para dizer, ela ri. É um som seco, como se sua garganta não fosse usada há tempos.
— Você quer saber o que eu fiz, não é? Quer ter certeza de que não vai cometer o mesmo erro.
— Não — digo, apesar de ela estar certa. — Não é isso que…
— Não se preocupe — prossegue ela. — Eu entendi. — Um sorriso passa por seu rosto durante um breve momento. Ela olha para as próprias mãos. — Fui pareada com Fred quando tinha dezoito anos. Não fui para a universidade. Ele era mais velho. Tiveram dificuldade em encontrar um par para ele. Ele era exigente; permitiam que fosse, por causa do pai. Todo mundo dizia que eu tinha sorte. — Ela dá de ombros. — Ficamos casados durante cinco anos.
Ela é mais jovem do que eu pensava.
— O que deu errado? — pergunto.
— Ele se cansou de mim — declara ela com firmeza. Seus olhos se dirigem aos meus por um momento. — E eu era um risco. Sabia demais.
— Como assim um risco?
Quero me sentar na cama; minha cabeça está estranhamente leve e minhas pernas parecem impossivelmente distantes. Mas tenho medo de me mexer. Tenho medo até de respirar. A qualquer segundo ela pode me mandar sair. Não me deve nada.
Ela não me dá uma resposta direta.
— Sabe o que ele gostava de fazer quando era criança? Atraía gatos do bairro para o quintal dele. Dava leite, atum, ganhava a confiança dos bichos. E então os envenenava. Gostava de vê-los morrer.
A cela parece menor do que nunca, abafada e sem ar.
Ela olha para mim de novo. A expressão calma e firme me desconcerta. Eu me forço a não desviar o rosto.
— Ele também me envenenou — afirma ela. — Passei meses doente. Por fim, ele me contou. Ricina no meu café. O bastante para me manter doente, de cama, dependente. Ele me contou para eu saber do que era capaz. — Ela faz uma pausa. — Ele matou o próprio pai, sabe.
Pela primeira vez eu me pergunto se talvez ela não seja louca, afinal. Talvez a enfermeira estivesse certa, talvez o lugar dela seja mesmo aqui. A ideia é libertadora.
— O pai de Fred morreu durante os Incidentes — observo. — Foi morto por Inválidos.
Ela me olha com pena.
— Eu sei disso. — Como se estivesse lendo minha mente, ela acrescenta: — Tenho olhos e ouvidos. As enfermeiras falam. E é claro que eu estava na ala antiga quando as bombas explodiram. — Ela olha para as mãos de novo. — Trezentos prisioneiros escaparam. Uns dez foram mortos. Não tive a sorte de estar em nenhum dos dois grupos.
— Mas o que isso tem a ver com Fred? — pergunto, minha voz parecendo mais um choramingo.
— Tudo — diz ela. Seu tom endurece. — Fred queria que os Incidentes acontecessem. Queria que as bombas explodissem. Ele se aliou aos Inválidos, ajudou a planejar tudo.
Não pode ser verdade. Não consigo acreditar nela. Não acredito.
— Isso não faz sentido.
— Faz total sentido. Fred deve ter planejado durante anos. Ele trabalhou com a ASD. Eles tiveram a mesma ideia. Fred queria provar que o pai estava errado a respeito dos Inválidos e também queria o pai morto. Assim, estaria certo e seria o prefeito.
Uma sensação de choque sobe pela minha espinha quando ela menciona a ASD. Em março, em uma manifestação enorme da América Sem Deliria, em Nova York, Inválidos atacaram e mataram trinta cidadãos e feriram incontáveis outros. Todo mundo comparou o que aconteceu com os Incidentes, e durante semanas a segurança ficou mais rigorosa em todos os lugares: identidades foram verificadas, veículos, revistados, houve batidas em casas e as patrulhas nas ruas, dobradas.
Mas outros boatos correram. Algumas pessoas disseram que Thomas Fineman, o presidente da ASD, sabia de antemão o que aconteceria e até mesmo permitira. Duas semanas depois, Thomas Fineman foi assassinado.
Não sei em que acreditar. Meu peito dói, repleto de um sentimento cujo nome não consigo lembrar.
— Eu gostava do Sr. Hargrove — diz Cassandra. — Ele sentia pena de mim. Sabia como o filho era. Ele me visitava com frequência depois que Fred mandou me prender. Fred arrumou gente para declarar que eu estava louca. Amigos. Médicos. Eles me condenaram à vida neste lugar. — Ela indica o pequeno aposento branco, sua cova. — Mas o Sr. Hargrove sabia que eu não era louca. Ele me contava histórias sobre o mundo lá fora. Encontrou um lugar para minha mãe e meu pai morarem em Deering Highlands. Fred também os queria silenciados. Deve ter pensado que contei a eles… deve ter pensado que eles sabiam o que eu sabia. — Ela balança a cabeça. — Mas não contei. Eles não sabiam.
Então os pais de Cassie foram obrigados a ir para Highlands, assim como a família de Lena.
— Sinto muito — digo.
É a única frase que eu consigo falar, mesmo sabendo quanto soa vazia.
Cassie parece não me ouvir.
— Naquele dia, o dia da explosão das bombas, o Sr. Hargrove estava me visitando. Ele me trouxe chocolate. — Ela se vira para a janela. Em que será que está pensando? Fica completamente imóvel de novo, seu perfil delineado pela luz do sol. — Ouvi dizer que morreu tentando restaurar a ordem. Senti pena dele. Engraçado, não é? Mas acho que Fred conseguiu pegar nós dois, no final.
— Voltei! Antes tarde do que nunca!
A voz de Jan me faz pular. Eu me viro. Ela está passando pela porta com uma bandeja de plástico em que há um copo de plástico com água e uma pequena tigela de plástico com aveia empelotada. Saio do caminho quando ela coloca a bandeja na cama. Reparo que os talheres também são de plástico. É claro, não pode haver metal. Tampouco facas.
Então me lembro da história do homem pendurado pelos cadarços. Fecho os olhos e penso na baía. A imagem se enche de ondas. Abro os olhos de novo.
— O que acha? — pergunta Jan, com alegria. — Quer comer agora?
— Na verdade, acho que vou esperar — diz Cassie, baixinho. O olhar dela ainda está voltado para a janela. — Não estou mais com fome.
Jan olha para mim e revira os olhos como se dissesse: Gente doida.