Estou na metade da escada quando os alarmes começam a tocar. Um segundo depois, ouço outra explosão de tiros. Não há nada de coordenado nesses tiros; eles explodem em sequência rápida, próximos e ensurdecedores demais, e de repente o ar se torna uma sinfonia de gritos e tiros. Uma mulher montada no muro cai para trás e bate no chão com um baque repulsivo, o sangue borbulhando em seu peito.
Só um décimo de nosso pessoal conseguiu pular o muro. O ar se enche da fumaça de armas. As pessoas estão gritando: vá, pare, ande, pare onde está senão atiro! Por um segundo fico paralisada na escada, balançando, petrificada. Minhas mãos escorregam um pouco, e mal consigo me ajeitar para não cair. Não lembro como fazer meu corpo se mexer. No alto da escada, um regulador está cortando as cordas com a faca.
— Ande. Lena, ande!
É Julian, abaixo de mim na escada. Ele me empurra adiante, o que me faz ficar ciente do meu corpo. Volto a subir, ignorando a ardência nas palmas das mãos. É melhor enfrentar os reguladores no chão, onde temos chance; qualquer coisa é melhor do que ficar pendurada aqui, exposta como um peixe em uma vara de pescar.
A escada treme. O regulador continua cortando, a faca se movendo febrilmente. Ele é jovem — por algum motivo me é familiar —, e o suor faz seu cabelo loiro grudar na testa. Fera acabou de chegar ao alto do muro. Ouço um estalo e um breve grito quando ele crava o cotovelo no nariz do regulador.
O resto acontece rápido: Fera agarra o cabo da faca do homem e o empurra; o regulador cai, e não consegue enxergar. Fera o joga sem cerimônia por cima do muro, como se ele fosse um saco de lixo. Novamente o som de um baque quando ele cai no chão. Só então o reconheço: é um garoto da Academia Joffrey, com quem Hana falou uma vez na praia. Era da minha idade; fomos avaliados no mesmo dia.
Não dá tempo para pensar nisso agora.
Mais dois puxões fortes me fazem chegar ao alto do muro. Deslizo de bruços contra a pedra e tento reduzir meu corpo ao máximo. Tornar-me compacta. A parte interior do muro está ocupada por andaimes que sobraram da construção. Só algumas partes da passarela de pedra, feita para as patrulhas, estão completas. Há corpos emaranhados em toda parte, pessoas lutando, agarradas, se esforçando para ganhar vantagem.
Pippa está subindo com dificuldade pela escada à minha direita. Prego está agachado nos andaimes; dá cobertura a ela, sua arma indo da esquerda para a direita, afastando guardas que correm até nós pelo chão. Graúna está atrás de Pippa, com o cabo de uma faca na boca e uma arma no quadril. Seu rosto tem um aspecto rígido e concentrado.
Tudo é registrado em explosões, em flashes:
Guardas correndo até o muro, se materializando de guaritas e depósitos.
Sirenes berrando: a polícia. Eles responderam rápido aos alarmes.
E, por baixo disso tudo, um aperto nas minhas entranhas. A paisagem de tetos e ruas, o fluxo cinza de asfalto, a enseada Back brilhando à minha frente, parques ao longe, a área da baía, atrás da mancha branca que é o complexo de laboratórios. Portland. Meu lar.
Por um momento, tenho medo de desmaiar. É gente demais, corpos balançando e atacando, rostos contorcidos e grotescos, e barulho demais. A fumaça faz minha garganta arder. Parte do andaime pegou fogo. E ainda não conseguimos que mais de um quarto de nossa gente passasse por cima do muro. Não vejo minha mãe. Não sei o que aconteceu com ela.
Julian conseguiu subir. Ele enlaça minha cintura e me obriga a ficar de joelhos.
— Pra baixo! Pra baixo! — grita ele, e caímos com força de joelhos quando uma série de balas se aloja no muro atrás de nos, nos salpicando de poeira e lascas de pedra.
O andaime geme e balança sob nosso corpo. Vários guardas estão no chão balançando a base para tentar derrubá-lo.
Julian grita alguma coisa. As palavras dele se perdem, mas sei que está me dizendo que precisamos seguir, precisamos chegar ao chão. Ao meu lado, Prego esticou o braço para ajudar Pippa a passar por cima do muro. Ela se desloca de forma desajeitada por causa do peso da mochila que carrega. Por um segundo imagino que a bomba vá explodir bem aqui, agora; imagino o sangue e o fogo, o cheiro doce de fumaça e as lascas de pedra ricocheteando, mas Pippa pula o muro e fica de pé.
Justo nesse momento, um guarda no chão aponta o rifle para Pippa e mira. Quero dar um grito, quero avisá-la, mas não consigo emitir som.
— Cuidado, Pippa!
Graúna se lança por cima do muro e a derruba bem na hora em que o guarda aperta o gatilho.
Pop. O menor barulho do mundo. O som de uma bombinha de brinquedo.
Graúna treme e se enrijece. Por um segundo, penso que ela só está surpresa. Sua boca fica redonda e seus olhos se arregalam.
Mas ela começa a cair para trás, e sei que morreu. Caindo, caindo, caindo…
— Não!
Prego dispara, segura a camisa dela antes que ela possa cair de cima do muro e a puxa para o colo. As pessoas estão correndo ao redor dele, se espalhando como ratos pelo andaime, mas ele fica sentado ali, se balançando um pouco e aninhando o rosto dela nas mãos. Ele limpa a testa dela, tira o cabelo do rosto. Ela olha para ele, a boca aberta e molhada, os olhos arregalados em choque, encolhida contra o corpo dele. Os lábios de Prego se movem. Ele está falando com ela.
Agora eclode um grito dentro de mim, silencioso e gigantesco, como um buraco negro que abre um túnel até o centro do meu ser. Não consigo me mexer, não consigo fazer nada além de ficar olhando. Não é assim que Graúna morre. Não aqui, não desse jeito, não em um frágil segundo, não sem lutar.
Atirei o pau no gato. A cantiga infantil volta a minha mente nesse momento, como costumávamos cantar no parque. Miau.
Tudo isso é brincadeira de criança. Estamos brincando com brinquedos novos que fazem muito barulho. Estamos brincando de polícia e ladrão, como fazíamos quando éramos crianças.
Uma dor quente e intensa me atravessa, passa por mim. Coloco a mão no rosto por instinto e procuro o ferimento; meus dedos roçam a orelha e voltam molhados de sangue. Uma bala deve ter me acertado de raspão.
O choque, ainda maior do que a dor, me desperta, põe meu corpo em movimento. Não havia armas suficientes para todos, mas tenho uma faca velha e cega — melhor do que nada. Tiro-a da bolsinha de couro presa na minha cintura. Julian está descendo o andaime balançando-se pelas barras cruzadas como um macaco. Um guarda tenta segurá-lo por uma das pernas, mas ele gira e bate o pé com força bem no rosto do guarda. O guarda cambaleia para trás e o solta, e Julian cai a distância que falta até o chão em meio ao caos de corpos: Inválidos e oficiais, gente do nosso lado e do lado deles, todos misturados, um animal enorme e sangrento e trêmulo.
Chego até a beirada da passarela e me obrigo a pular. Os poucos segundos em que estou no ar e, portanto, sou um alvo, são os mais apavorantes. Estou totalmente exposta, totalmente vulnerável. São dois segundos, no máximo três, mas parecem uma eternidade.
Alcanço o chão, quase caindo em cima de um regulador e o derrubando junto comigo quando torço o tornozelo e caio no cascalho. Ficamos embolados por um momento, lutando para ganhar vantagem. Ele tenta mirar a arma em mim, mas seguro seu pulso e o giro para trás com força. Ele grita e larga a arma. Alguém a chuta, fazendo-a sair girando para longe dos meus dedos, para o caos cinza inundado de poeira.
Mas logo a vejo não muito distante de nós. O regulador também vê, na mesma hora que eu. Tentamos pegá-la ao mesmo tempo. Ele é maior do que eu, mas também mais lento. Estou com a arma na mão, fecho os dedos no gatilho um segundo antes do homem, de forma que o punho dele encontra apenas terra. Ele dá um rugido de fúria e pula para cima de mim. Eu levanto a arma, miro na lateral da cabeça dele e ouço um estalo quando ela acerta a têmpora. Ele cai inerte, e eu me ponho de pé de um salto antes que seja pisoteada.
Minha boca tem gosto de metal e poeira, e minha cabeça começou a latejar. Não vejo Julian. Não vejo minha mãe, nem Colin, nem Alistar.
Neste momento, ouço um estrondo que faz tudo tremer, uma explosão de pedra e poeira branca. A força da explosão quase me derruba. A princípio, penso que uma das bombas deve ter sido disparada acidentalmente. Procuro Pippa enquanto tento livrar a cabeça do zumbido e da poeira sufocante e penetrante. Vejo-a passar sem ser percebida entre duas guaritas, a caminho do centro.
Atrás de mim, um dos andaimes geme e começa a virar. A gritaria aumenta. Mãos empurram minhas costas quando todo mundo força passagem para sair do caminho. Muito devagar, gemendo, o andaime se inclina, depois acelera e despenca no chão, partindo-se e prendendo sob seu peso os que não tiveram sorte de fugir.
O muro agora tem um buraco na base; percebo que deve ter sido trabalho de uma bomba de cano, uma explosão improvisada pela resistência. A bomba de Pippa teria partido o muro em dois.
Ainda assim, é o bastante; nossas forças restantes estão entrando pelo buraco em uma torrente humana, pessoas que foram empurradas ou forçadas a ir embora, desprovidas e doentes, e que agora invadem Portland. Os guardas, uma linha irregular de uniformes azuis e brancos, são engolidos pela maré, empurrados para trás e forçados a fugir.
Perdi Julian. Não faz sentido tentar encontrá-lo agora. Só posso rezar para que esteja a salvo e para que saia dessa confusão ileso. Também não sei o que aconteceu com Prego. Parte de mim espera que ele tenha recuado pelo muro com Graúna. Por um segundo imagino que, depois que ele a levar de volta para a Selva, ela vai acordar. Vai abrir os olhos e descobrir que o mundo foi reconstruído como ela queria.
Ou talvez ela não acorde. Talvez já esteja em uma peregrinação diferente e tenha saído à procura de Azul.
Forço caminho na direção do lugar onde vi Pippa desaparecer, lutando para respirar no ar tomado de fumaça. Uma das guaritas está pegando fogo. Lembro-me de repente da velha placa de carro que encontramos meio enterrada na lama durante nossa migração de Portland no inverno passado.
Viva livre ou morra.
Tropeço em um corpo. Meu estômago quase salta pela boca; por uma fração de segundo sou tomada por uma escuridão, encolhida no meu estômago como o cabelo de Graúna enroscado na perna de Prego, Graúna morreu, ah meu Deus. Mas engulo em seco, respiro fundo e sigo em frente, continuo lutando e empurrando. Queríamos liberdade para amar. Queríamos liberdade para escolher. Agora, temos que lutar por isso.
Por fim, consigo emergir da massa em luta. Passo pelas guaritas e saio correndo no caminho de cascalho que as separa, a caminho do esparso grupo de árvores que envolve a enseada Back. Meu tornozelo dói cada vez que apoio o peso nesse lado do corpo, mas não paro. Limpo a orelha com a manga da blusa e vejo que o sangramento já diminuiu.
A resistência pode ter uma missão em Portland, mas eu tenho uma missão só minha.