A discussão sobre a unidade e departamentalização do conhecimento não é exclusiva das ciências sociais. Está presente quando se enfoca qualquer um dos níveis do conhecimento científico e faz parte do debate que hoje se trava não só no âmbito acadêmico das instituições de ensino e pesquisa, mas também na aplicação das teorias, tendo em vista a solução de problemáticas específicas.
Essa breve abordagem do assunto prende-se ao campo das ciências sociais e, longe de pretender fornecer elementos originais ao debate, tem a finalidade de chamar a atenção daqueles que se iniciam no terreno do social para esse ponto polêmico e de difícil solução, mas de cujo entendimento depende muito a postura que se adotará no trato das questões sociais.
A unidade do mundo social, com o entrelaçamento de aspectos econômicos, culturais, políticos etc., pode ser constatada pela simples observação do cotidiano, sem haver necessidade de recorrer à ciência. Basta que se lance mão de alguns temas, a título de exemplo, como a violência urbana, a reforma agrária, ou a marginalidade e participação política, para que se conclua que uma única questão social comporta análises de vários ângulos, mas que qualquer um deles, isoladamente, não dá conta da sua totalidade.
O campo de investigação das ciências sociais é caracterizado por uma unidade – a vida do homem em sociedade, complexa e composta de uma multiplicidade de aspectos que se interpenetram.
Falando em termos de objetos das ciências, esse seria o objeto material das ciências sociais, aquilo que elas investigam de modo geral e que deveria assegurar também uma unidade dos conhecimentos produzidos. No entanto, para continuarmos raciocinando em termos de objetos, cada ciência possui também o seu objeto formal, aquilo que é investigado especificamente. Por intermédio de seus objetos formais de investigação, cada ciência social se propõe a dar conta de um aspecto da realidade social, abordando essa realidade complexa de uma perspectiva particular.
Como os diversos aspectos da vida social se interpenetram, não é por acaso que os campos de investigação das ciências sociais são de difícil delimitação, não existindo claros e rígidos limites divisores.
A especialização das disciplinas científicas acelerou-se a partir do século XIX, graças ao triunfo do positivismo. Como indica Japiassu, esse triunfo “... suscitou a repartição do espaço mental do saber em departamentos isolados e com fronteiras rígidas”.[41] Esse procedimento foi levado a efeito tendo por base a necessidade de fixação dos objetos particulares das disciplinas. O territorialismo positivista, como denomina o autor, tem seu espaço cada vez mais dividido pela especialização. “Tudo se passa como se o aprofundamento de um domínio qualquer do saber só fosse possível ao preço de uma restrição da superfície do campo estudado. A fragmentação, produto da divisão das ciências, torna-se esmigalhamento”.[42]
O esmigalhamento do saber permite que Georges Gusdorf, no prefácio do livro de Japiassu, conclua que o desenvolvimento e a diversificação das disciplinas fazem com que elas percam, cada vez mais, a ligação com a realidade humana. E Gusdorf vai além, afirmando que “devemos considerar como alienada e alienante toda ciência que se contenta em dissociar e em desintegrar seu objeto”. Conclui que “é absurdo, é vão, querer construir uma pretensa ciência do homem, se tal ciência não encontra na existência humana, em sua plenitude concreta, seu ponto de partida e seu ponto de chegada”.[43]
Outro ponto a considerar com relação à departamentalização do conhecimento das ciências sociais é que a especialização não ocorreu de maneira racional ou obedecendo a um esquema definido, como bem observa Mills. Segundo ele, as disciplinas se desenvolveram sozinhas, fruto de exigências e condições específicas e sem nenhum plano geral orientador. Além disso, são muitos os desacordos sobre suas relações e a especificação de cada uma. O mesmo autor chama a atenção para o risco de se valorizar em demasia a departamentalização das ciências sociais, uma vez que o rigor no estabelecimento dos limites pode fazer crer que as instituições estudadas, econômica, política etc., constituam sistemas autônomos.[44]
Mas o aprofundamento do conhecimento exige a especialização e, portanto, a delimitação e a autonomia de cada ciência, o que não implica a impossibilidade da colaboração entre as várias disciplinas. Cada uma delas significa uma possibilidade de conhecer a realidade, nunca de maneira única ou na sua totalidade, mas parcialmente, reduzindo-a a uma de suas dimensões. O entrecruzamento e as mútuas interpretações entre as ciências humanas são lembrados por Foucault, que destaca também a multiplicação das disciplinas intermediárias. Para ele, “(...) a sobreposição de vários modelos não é um defeito de método. Só há defeito se os modelos não foram ordenados e explicitamente articulados uns com os outros”.[45]
Sendo assim, é necessário que os especialistas nas diversas disciplinas tenham consciência da parcialidade e relatividade das suas áreas de domínio e, dessa forma, tomem contato com disciplinas diferentes, evidentemente não em busca de novas especializações, mas para que, com uma sólida cultura geral, possam perceber os pontos de ligação existentes entre elas, intercambiar elementos e saber onde buscar teorias e métodos capazes de auxiliar o seu trabalho em situações específicas.
A grande questão que é colocada, quando se abordam a departamentalização e a unidade das ciências sociais, prende-se à busca de alternativas que, sem deixar de reconhecer as especializações das várias disciplinas, procurem a integração dos seus domínios, o que de fato se verifica na realidade social. E essa questão não se coloca somente no campo do conhecimento, mas também no campo da ação, de intervenção na realidade social.[46]
É sobretudo no campo da ação que vêm se caracterizando algumas propostas alternativas viabilizadas pela realização de trabalhos em equipes multidisciplinares ou pluridisciplinares. Ambas as equipes reúnem especialistas em duas ou mais disciplinas para o estudo de uma determinada questão. Na verdade, as duas propostas “realizam apenas um agrupamento, intencional ou não, certos ‘módulos disciplinares’ sem relação entre as disciplinas (o primeiro) ou com algumas relações (o segundo): um visa à construção de um sistema disciplinar de apenas um só nível e com diversos objetivos; o outro visa à construção de um sistema de um só nível e com objetivos distintos, mas dando margem a certa cooperação excluindo toda coordenação”.[47] O que ocorre é a justaposição de várias disciplinas, em que certos conhecimentos são emprestados, sem que cada um dos setores envolvidos seja modificado ou enriquecido.
Embora signifiquem avanços com relação às visões monodisciplinares, tanto a multi quanto a pluridisciplinaridade deixam muito a desejar no que diz respeito à relação entre a unidade do conhecimento e a unidade da realidade analisada. No fundo, ambas são somatórios de visões monodisciplinares, simples agrupamento de ciências, cada qual com sua linguagem fechada, sendo que os especialistas, por sua própria formação, permanecem ilhados no seu saber, ignorando os demais.
A alternativa que parece realmente contemplar a busca da unidade das ciências sociais é a interdisciplinaridade. Não raro, os termos multi, pluri e interdisciplinar são confundidos, aplicando-se incorretamente a denominação interdisciplinar ao mero agrupamento de especialistas em torno de uma questão proposta. Na realidade, como nos lembra Gusdorf, no prefácio já referido, “a exigência interdisciplinar impõe a cada especialista que transcenda sua própria especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para acolher as contribuições de outras disciplinas. Uma epistemologia da complementaridade, ou melhor, da convergência, deve, pois, substituir a da dissociação”.[48]
A diferença entre as três propostas situa-se na “intensidade de trocas entre os especialistas” e no “grau de integração real das disciplinas”.[49] O interdisciplinar exige muito mais do que a soma de conhecimentos; o que se busca é superar os limites de cada disciplina, e ele “pode ser caracterizado como o nível em que a colaboração entre as diversas disciplinas ou entre os setores heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações propriamente ditas, isto é, a uma certa reciprocidade nos intercâmbios, de tal forma que, no final do processo interativo, cada di sciplina saia enriquecida”.[50] Há incorporação de resultados, empréstimo de métodos e técn icas e de esquemas conceituais, na procura da ultrapassagem das fronteiras entre as diversas ciências.
Pode-se dizer que o interdisciplinar é uma reação à fragmentação do conhecimento e à departamentalização do saber acadêmico, divorciados da realidade social que os origina e com a qual deveriam guardar relação, não compartimentada, mas na sua globalidade. O empreendimento interdisciplinar, na procura da unidade das ciências sociais, não se prende somente a uma crítica à departamentalização da universidade, como também procura estabelecer de fato a sua ligação com a sociedade, na tentativa de colaborar na solução das questões colocadas pela dinâmica social, questões essas que não podem ficar na dependência de esferas setorizadas de conhecimento. Por isso, o interdisciplinar constitui também uma tentativa de adequar o ensino e a pesquisa às atividades profissionais requeridas pelas comunidades.
Nesse último aspecto se situa o grande risco da alternativa interdisciplinar, ou seja, a possibilidade de que ela se converta na mera adequação da ciência aos conhecimentos fundados nas necessidades imediatistas de setores produtivos da sociedade. Como destaca Japiassu, “o grande risco do interdisciplinar está justamente em converter-se na ideologia da tecnoestrutura, em suas três dimensões: burocracia industrial, tecnocracia ou gestão profissional, saber técnico necessário ao processo de inovação”.[51]
A proposta interdisciplinar está baseada numa nova forma de entendimento do método científico. Este deixa de se restringir a uma pesquisa particular sobre fatos para basear-se sobretudo nas relações verificáveis na realidade social. A adoção da comparação é um imperativo que se coloca na procura da unidade do conhecimento sobre a complexidade da vida social. “O trabalho comparativo, técnico ou empírico, é o aspecto mais promissor para o desenvolvimento da ciência social hoje”.[52]
Uma série de obstáculos, no entanto, tende a dificultar a realização da colaboração entre as diversas disciplinas, na tentativa de amenizar os efeitos da departamentalização do conhecimento. A própria organização das universidades em departamentos isolados, e com frequência sem relações uns com os outros, faz com que o conhecimento fique setorizado em compartimentos estanques e que um economista, por exemplo, não tenha contato com a psicologia ou a antropologia e, por sua vez, o antropólogo ou o psicólogo não tenham nem sequer noções de economia. A própria estrutura da universidade não favorece esse intercâmbio e, além disso, os corpos docente e discente parecem mais seguros sobre o estudo e a pesquisa em apenas um ramo bem delimitado do conhecimento.[53] Dessa forma, o planejamento dos currículos, as exigências das diferentes carreiras acadêmicas ligadas ao mercado de trabalho setorizado, e até mesmo a confusão da linguagem específica de cada uma das ciências, constituem dificuldades práticas para o estabelecimento de relações substanciais entre as várias ciências sociais.[54]
Enfatizando, como venho fazendo, a necessidade da busca da unidade do conhecimento sobre a realidade social, posso dar a impressão de estar negando a validade da especialização. Absolutamente não é essa a posição que defendo. O fato de pregar a necessidade de cooperação e coordenação entre as diversas ciências não exclui a especialização. Pelo contrário, só se pode falar em interdisciplinaridade desde que cada disciplina tenha elementos competentes no seu ramo, com sólida especialização. Para que se estabeleça o diálogo entre as disciplinas é fundamental que cada uma seja autônoma. “Onde não houver independência disciplinar, não pode haver interdependência das disciplinas.”[55] A competência específica em cada setor do conhecimento é pré-requisito para o interdisciplinar, uma vez que este não pode suprir a incompetência setorial. É necessário deixar claro que “a unidade das disciplinas não significa que se queira reduzir certos fenômenos a fenômenos de outra natureza. Também não exclui a diversidade de interpretações, mas reclama um pluralismo de perspectivas, já que se trata de realizar uma unidade e não uma unificação”.[56]
Quero ressaltar é que a especialização não deve se fechar aos outros domínios do conhecimento. Se considerarmos como Japiassu que especialização não implica necessariamente isolamento, toda especialização assim entendida deve ter por base uma sólida cultura que possa determiná-la.[57] Não é necessário, como afirma Mills, que se domine o campo de todas as ciências, mas que o cientista se familiarize com elementos que possam ser interessantes no seu domínio de investigação. Nesse sentido, esse autor chega a propor que a especialização deve ser baseada em problemas, e não obedecendo aos limites acadêmicos.[58]
Mills recomenda, na tentativa de análise de qualquer das questões significativas de nossa época, uma visão integrada que leve em conta o momento histórico, a abrangência do estado-nação como moldura do estudo, a visão de conjunto, englobando o exame dos diversos componentes e variáveis do assunto em pauta, e, finalmente, que se parta da problemática e não de limites acadêmicos impostos.[59] Evidentemente essas recomendações não podem ser seguidas por um especialista fechado em seu campo de conhecimentos, sem abertura para as ligações que se verificam com as demais ciências sociais.
Na busca da superação dos limites da departamentalização das ciências sociais é necessário que nos lancemos na tarefa de caminharmos em direção à sua unidade. Trata-se de contemplar o desejo da síntese do conhecimento sobre o social, fragmentada pela especialização. Nessa caminhada, além de uma nova concepção da especialização, fundada na cultura geral e aberta aos outros domínios do saber, é necessário que se lance mão, também, da filosofia. “Um saber sobre o homem, capaz de integrar todas as explicações propostas pelas diversas ciências, não pode prescindir da filosofia”.[60] Seu papel não deve ser superestimado, como instância superior ditadora de princípios prontos e trazidos de fora. Ela deve ser encarada como instância crítica interna, “na medida em que ela se apresenta como a única disciplina em condições de fazer a unidade do objeto das ciências humanas, e na medida, também, em que impede cada uma delas de hipertrofiar-se em mito totalizante”.[61] Como destaca Severino, “a interdisciplinaridade favorecerá o encontro convergente das perspectivas das ciências humanas com a filosofia, em busca da significação profunda”. Esse autor chama a atenção especificamente para o papel da filosofia social: “As ciências sociais representariam assim o momento da adesão ao existir social enquanto a filosofia social representaria aquele esforço para um distanciamento. Em síntese, etapas de um mesmo processo de constituição de um mesmo discurso fundante”.[62]
Quero, pois, enfatizar a necessidade da cooperação entre as diversas especialidades das ciências sociais e da filosofia, visando a uma complementaridade que caminhe na busca da superação dos rígidos limites do conhecimento departamentalizado, para que se possa, por intermédio de uma prática interdisciplinar, fundada na competência específica, caminhar para a efetiva correspondência entre a unidade do mundo social e do conhecimento das ciências que o têm por objeto.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas; uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1981, pp. 361-404. (Capítulo 10 – “As ciências humanas”).
JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
MILLS, C. Wright. A imaginação sociológica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 144-155. (Capítulo 7 – “A variedade humana”).
SEVERINO, Antonio Joaquim. “A situação da filosofia social na sistemática filosófica”. Reflexão nº 14, pp. 91-97. Campinas: PUC-Campinas.