“Ubi jus ibi societas, ubi societas ibi jus.”
Esse brocardo latino reflete bem o pensamento romano clássico a respeito do direito. Brocardo é o nome que usualmente se dá aos provérbios, às máximas ou axiomas das ciências jurídicas. Por intermédio desse pensamento, os criadores da ciência das leis pretenderam cristalizar a indissolubilidade do binômio direito/sociedade. “Onde houver direito haverá sociedade, onde houver sociedade haverá direito.”
Se incontestável é a afirmativa clássica para as sociedades modernas e não se pode mesmo conceber um grupo social vivendo um estado anárquico, a universalidade de sua verdade não se estende através dos tempos.
Nem sempre sociedade e direito coexistiram na história da humanidade. Fizéssemos talvez uma pequena correção no brocardo romano, ou seja, “onde houver norma social haverá sociedade, onde houver sociedade haverá norma social”, daí sim sua validade seria irretorquível e atemporal.
É o nome que se dá às leis da sociedade.
Toda lei, independentemente do campo em que se situe, quer seja ela do mundo natural ou físico, ou do mundo social, é sempre um produto da inteligência humana.
Todas as leis são genéricas, abstratas. Estabelecem elas as relações necessárias para que ocorra um fenômeno. As leis descrevem a maneira pela qual os meios necessários devem ser dispostos para que ocorra um determinado resultado. À disposição conveniente dos meios chamamos ordem. Dessa forma, a lei é sempre a fórmula da ordem.
Na sociedade, por meio das leis ou normas sociais, os meios sociais são dispostos convenientemente para que os resultados sociais desejáveis sejam alcançados.
O homem não existe fora da sociedade. Eventualmente se tem notícia de algo que possa contrariar essa afirmativa. Às vezes, em virtude da imaginação fértil do romancista, como o fez Defoe com seu Robinson Crusoé, ou em decorrência de um fato extraordinário, como aquele do soldado japonês que permaneceu sozinho numa ilha do Pacífico, guardando-a contra a invasão norte-americana de 1944 a 1980, quando a guerra terminara em agosto de 1945.
O homem fora da sociedade não se submete a regras de convivência, já que possui total liberdade. As normas sociais são imperativos que restringem a liberdade do indivíduo.
Imaginemos, pois, como se possível fosse, um homem sozinho na natureza. Teria ele liberdade plena, já que poderia fazer tudo aquilo que lhe aprouvesse, como: caçar ou domesticar animais, percorrer todos os lugares, apanhar frutos, trazer para junto de si minerais preciosos etc. O limite de sua liberdade seria única e exclusivamente aquele imposto pela sua capacidade física. Sua liberdade só não seria absoluta porque suas faculdades são limitadas. Não poderia ele voar ou dar volta ao mundo em poucos minutos. Mas de resto, sua simples vontade seria o único elemento orientador de seu comportamento.
Se porventura fosse colocado um outro homem junto àquele preexistente, e que viessem ambos a compor uma sociedade, para que possível fosse a convivência, indispensável seria a organização dessa sociedade.
É importante fixarmos que, no aspecto objetivo, os homens vivem e orientam sua conduta na busca da felicidade. É aquilo que chamamos realização.
Essa realização se dá à medida que os homens se apropriam de coisas que lhes são externas, ou seja, da própria natureza, quer materiais, concretas ou abstratas.
O homem sozinho no universo tem liberdade total porque pode apropriar-se daquilo que tenha vontade. Porém, se forem dois os homens convivendo nesse mesmo universo, para que haja a paz entre eles é necessário que suas condutas sejam limitadas, pois o universo continua um só e cada um deles não pode pretender a apropriação de todas as coisas, sob pena de impedir a realização do outro.
A limitação das condutas humanas é realizada pela própria inteligência do homem por meio das normas sociais.
Se tivesse existido esse exemplo imaginário de um homem só no universo e a posterior companhia de outro indivíduo, forçosamente, só se constituiria uma sociedade mediante a norma social. Provavelmente bastaria traçar-se um risco no chão, ficando um lado para cada um.
Se essa norma social tornou plausível a sociedade, também acabou tirando 50% da liberdade do homem preexistente, para que o outro pudesse ter um espaço de liberdade equivalente, que lhe garantisse a possibilidade de realização.
Se um terceiro homem for adicionado àqueles dois, nova adequação dos meios terá de ser estabelecida. Novas regras terão de ser observadas para que se garanta a possibilidade de realização de todos os componentes do grupo. Cada qual deverá permanecer com 33% da liberdade disponível.
E assim por diante. Cada indivíduo que é adicionado a um grupo social implica sempre a perda de uma parcela de liberdade dos preexistentes.
Nós nem sempre percebemos claramente essa realidade, tendo em vista a complexidade da sociedade moderna, altamente diferenciada em suas partes.
A maneira de compensarmos o excesso populacional é aumentar a produção de bens de consumo, de tal maneira, que a oferta destes possa atender à demanda decorrente das necessidades individuais. Eis aqui a razão pela qual
o conceito de excesso populacional não é um problema de densidade demográfica, mas muito mais da capacidade de produção de um grupo social.
As sociedades primitivas possuíam uma estrutura organizacional bastante simples. Apresentavam um detalhe importante: a intensa solidariedade entre os indivíduos. Todos no grupo faziam a mesma coisa, coabitavam, guerreavam juntos, amavam os filhos da mesma tribo. Assemelhavam-se tais sociedades às colônias, que são comunidades de animais, como o formigueiro, a colmeia, a alcateia. Quando observamos as colônias, temos a impressão de que os indivíduos estão mais preocupados com o todo do que com si próprios. Todos no grupo comportam-se sempre da mesma maneira.
Nas sociedades primitivas, todos os homens agem também da mesma forma. A solidariedade intensa deixa pouco espaço para que alguém se conduza fora do convencional.
Nesses grupos primitivos existem normas sociais e a natureza delas varia de acordo com o objeto do interesse do homem com sua conduta.
O comportamento mais simples é a moral, que é o nome dado à conduta do homem em relação ao seu semelhante. Os comportamentos morais mais frequentes no grupo tendem a cristalizar-se em regras de conduta. Chamamos tais regras de normas morais.
A religião é outra forma primitiva de conduta humana. Nela o homem diferencia sua postura. Aliás, essa diversidade de posturas dos homens na sua conduta, dependendo do objeto de sua relação, diferencia nitidamente os seres racionais dos animais que têm um repertório único de condutas diante do universo.
Se Deus não existisse, o homem o teria inventado, como realmente o fez o primitivo. Os deuses daquelas épocas nada tinham a ver com o nosso Deus. A divindade era atribuída aos entes que atemorizavam ou deslumbravam o homem. O sol, a lua, o trovão eram deuses nas tribos primitivas.
As normas religiosas eram estabelecidas das maneiras mais singulares possíveis. Se durante dias a tribo era castigada por tempestade e de repente parava a chuva e saía o sol, a coincidência de qualquer fato ocorrer naquele instante seria o bastante para tornar-se regra religiosa que pudesse agradar o deus da chuva. Aos deuses mais importantes, eram imoladas as virgens mais formosas, pois ficariam agradecidos e retribuiriam com benesses divinas.
Os homens, como seres que consomem para sobreviver, vão aprender a produzir, não dependendo apenas da depredação da natureza, fato esse que lhes impunha o nomadismo. Surgem também nesses grupos pré-históricos normas sociais de cunho eminentemente econômico, como economizar (quem não economiza acaba na miséria), estocar (quem não guardar no verão morrerá de fome no inverno) e muitas outras.
O trato social é um outro comportamento humano que se diferencia do moral, porque nele os indivíduos se comportam com polidez sem que sua conduta seja totalmente resultante de uma manifestação consciente de vontade. É o caso das pessoas que se cumprimentam ao cruzar na rua, podendo às vezes até nutrir antipatia entre si.
As normas sociais, que conforme seu objeto são morais, religiosas, econômicas, de trato social e muitas outras, são leis que regulam a conduta dos homens.
Esses grupos primitivos são organizados por normas sociais que, embora não sejam escritas, estão na consciência de todos e muito bem guardadas num armário a que chamamos costume.
Costume é, pois, o repositório das normas sociais de um povo.
Os grupos sociais primitivos não possuem o direito e isso não lhes faz falta.
Aquela solidariedade social, intensa, é fator suficiente para provocar no grupo o atendimento geral dos preceitos contidos nas normas morais.
A sociedade primitiva tem como fim ela própria, ou seja, os homens vivem em sociedade para preservar o todo.
À medida que o homem se desenvolve culturalmente, aprendendo, entendendo e modificando a própria natureza, a sociedade vai também se alterando estruturalmente.
A produção é fundamental para a sobrevivência humana, desde que a pura e simples depredação vai desaparecendo com a fixação dos grupos em determinados territórios e com a diminuição do nomadismo.
Em nome da otimização da produção em relação ao trabalho, as partes sociais vão se diferenciando a fim de atingirem a especialização.
Os homens, que antes faziam todos as mesmas coisas no grupo, passam a se aplicar nas tarefas mais compatíveis com suas tendências, inclinações ou habilidades. Dessa forma, os mais pacientes dedicam-se à agricultura, os mais fortes à guerra, as mulheres às tarefas de suporte, e outros, ainda, mais habilidosos manualmente, à fabricação de armas e utensílios.
Quanto mais se especificam as partes sociais, menor é a solidariedade remanescente no grupo. Os homens, perdendo o diuturno contato com outros homens, libertam-se daquele compromisso maior que é o todo, para agir mais em função de seus objetivos individuais.
E as normas sociais, que, sobretudo, são regras de preservação de cada indivíduo em coesão ao todo, passam a ser descumpridas com maior frequência. Tais violações das regras contidas nos costumes põem em perigo a integridade do grupo, pelas comoções internas que fatalmente provocam.
Imprevisível imaginarmos as consequências sociais decorrentes das violações das leis sociais. Infrações leves poderiam provocar represálias, reações em cadeia que levariam grupos à desintegração. Como infrações graves, ficassem, talvez, restritas às frustrações das vítimas ou prejudicados.
Alguma coisa teria de ser feita para que os homens pudessem preservar seu habitat social. Justamente a providência que será tomada é a separação das normas sociais mais importantes. Não importa sua natureza. Podem ser normas morais, religiosas, econômicas, de etiquetas e outras mais. O único critério é a valoração de cada uma mediante juízos médios subjetivos.
Essas normas, já separadas das demais, vão ser elevadas a uma nova categoria. Passam a ser normas especiais cujo cumprimento passará a ser exigido de todos os membros do grupo. São agora essas normas especiais obrigatórias. A única maneira de os homens serem obrigados a fazer ou deixar de fazer é pela força.
As normas jurídicas, nome que se dá a essas normas obrigatórias, passam a ser cobradas de todos, pela força. Com o aparecimento das normas jurídicas, surge o direito, que é a ciência pela qual se organiza a sociedade e, com ele, surge também o governo, que é a entidade responsável por dizer quais são essas normas, bem como pela fiscalização de seu cumprimento pelos componentes do grupo.
O direito é, sobretudo, um conjunto de normas sociais que são assumidas pelo governo e, em nome do grupo, exige de todos o seu cumprimento.
Os governos democráticos, que levam em conta a vontade popular, adotam um direito compatível com a identidade do grupo, recolhido da melhor tradição, do costume desse mesmo grupo.
Os governos deturbados, sempre autoritários e antidemocráticos, quase sempre desconsideram as normas sociais naturalmente desenvolvidas no costume local, para impor leis criadas em seu próprio interesse.
Direito legítimo é aquele que consagra a vontade popular. Suas leis representam a vontade do povo. Direito ilegítimo é aquele ditatorialmente imposto. Suas leis são elaboradas no sentido de atender a interesses particulares dos governantes.
O conjunto das leis de um povo é chamado direito objetivo. A palavra direito tem vários sentidos análogos ligados às ciências jurídicas. No sentido mais amplo possível, direito significa a própria ciência jurídica. Engloba todas as leis existentes e mais um grande número de princípios que são fixados como verdadeiros axiomas e que dão a individualidade característica da própria ciência.
Direito é, sobretudo, conjunto de leis. É algo mais ainda. Não tivesse a ciência do direito seus princípios próprios, seria praticamente impossível fazer-se a adequação das normas gerais e abstratas aos fatos sociais, individualizados e concretos.
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