O desafio que agora nos é apresentado sugere-nos a participação em um livro que pudesse servir como base para o encaminhamento das discussões em sala de aula e referencial para a busca de posteriores aprofundamentos em bibliografias específicas. Deseja-se ter, no conjunto da obra, textos introdutórios abrangentes, na área das ciências sociais, voltados para a realidade brasileira. O público principal ao qual devemos nos dirigir é aquele composto por alunos que cursam a disciplina de Introdução às Ciências Sociais ministrada nos primeiros anos dos cursos de ciências econômicas, contábeis, administrativas e outros.
Como atender a essas exigências, num limite de seis laudas, abordando o tema “Subdesenvolvimento e cultura”?
Propomos que nosso diálogo se inicie com uma consulta ao Novo Dicionário Aurélio para que ele nos informe sobre os significados das palavras subdesenvolvimento e cultura. Procedendo dessa maneira, logo constatamos que o substantivo subdesenvolvimento (de sub+desenvolvimento) expressa: “1. Desenvolvimento abaixo do normal. . Estado de um país ou de uma região cuja estrutura social, política e econômica reflete uma utilização deficiente dos fatores de produção, isto é, os recursos naturais, o capital e o trabalho, e uma deficiente articulação entre eles.”
Ainda com o auxílio do Novo Dicionário Aurélio, observamos que a palavra cultura, por sua vez, designa: “1. Ato, efeito ou modo de cultivar. 2. Cultivo. 3. O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade... 4. O desenvolvimento de um grupo social, uma nação etc., que é fruto do esforço coletivo pelo aprimoramento desses valores; civilização, progresso...”
Dispondo desses significados das palavras subdesenvolvimento e cultura, destaquemos os seguintes aspectos:
a)O conceito de subdesenvolvimento, genericamente designando qualquer desenvolvimento abaixo do normal, expressa um certo tipo de desenvolvimento: o desenvolvimento abaixo do normal. Pode parecer um mero jogo de palavras, mas não é. Nem sempre percebemos que, ao utilizarmos a palavra subdesenvolvimento, estamos nos referindo a um certo desenvolvimento;
b)O conceito de subdesenvolvimento expressando especificamente o estado de um país ou região com uma utilização deficiente dos fatores de produção, embora seja de uso frequente, pode nos conduzir a equívocos. A ideia estado, situação de um país ou região, não é muito dinâmica. Estado ou situação parecem manifestar aqui realidades mais ou menos estáticas, fechadas em si mesmas e deficientes. Além do mais, nos dois casos citados, sempre podemos questionar os critérios do que se esteja estabelecendo por desenvolvimento normal ou abaixo do normal e questionar também os critérios que se estabelecem para o que será ou não considerado deficiente.
c)Por sua vez, os significados atribuídos pelo Novo Dicionário Aurélio à palavra cultura lembram-nos, logo ao ser anunciado o primeiro deles, algo tão simples e ao mesmo tempo tão complexo que raramente nos provoca a atenção. Cultura é o “ato, efeito ou modo de cultivar”. Cultura é cultivo, ou seja, antes de tudo cultura é trabalho, trabalho humano transformando a natureza. Não é por acaso que dizemos cultura do milho, do arroz, da cana-de-açúcar etc., apontando para um longo processo de relação do homem com a natureza que implica trabalho, uso de técnicas, aplicação de conhecimentos e obtenção de resultados;
d)A palavra cultura, todavia, identifica de forma mais explícita o amplo conjunto de resultados adquiridos coletivamente pelos homens no transcorrer do processo de transformação que exercem sobre a natureza, sobre os resultados culturais anteriores ao seu momento histórico e entre si mesmos. É por isso que a palavra cultura pode designar “o complexo de padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade...”;
e)Finalmente, e por decorrência do tema que nos é proposto, não podemos não registrar que a palavra cultura pode expressar também “o desenvolvimento de um grupo social, uma nação etc., que é fruto do esforço coletivo pelo aprimoramento desses valores; civilização, progresso...” Os conceitos de cultura e desenvolvimento interpenetram-se e comunicam aspectos comuns de uma mesma realidade. Dessa forma, podemos dizer que toda a cultura de uma determinada sociedade constitui a materialização da maior ou menor complexidade do seu desenvolvimento.
Todos esses esclarecimentos, entretanto, parecem-nos ainda muito abstratos. Propomos então um segundo passo para o nosso diálogo: compreendermos um pouco os próprios fenômenos que se convencionou denominar de subdesenvolvimento e de cultura.
Segundo nosso entendimento, o melhor caminho para realizarmos esse percurso é efetuar uma abordagem dos fenômenos subdesenvolvimento e cultura indagando pelo processo por intermédio do qual se produzem o subdesenvolvimento e a cultura, ou seja, analisando a origem desses fenômenos e ao mesmo tempo relacionando-os. Cabe-nos, pois, buscar novos esclarecimentos.
Nós já apontamos que o conceito de subdesenvolvimento, nos seus significados gerais e específicos, necessariamente se relaciona com o conceito de desenvolvimento. O conceito de subdesenvolvimento sempre resulta de um critério comparativo porque ele se aplica às situações em que se identifica um desenvolvimento aquém dos padrões considerados normais, aquém dos níveis considerados eficientes ou de qualidade superior. Daí decorre o fato, por exemplo, de os especialistas estabelecerem normas, medidas, características econômico-sociais e culturais a serem consideradas para identificar se um país, ou região, é desenvolvido ou subdesenvolvido. Já apontamos, entretanto, que o uso da palavra subdesenvolvimento nem sempre nos dá a ideia de que ela se refere a uma realidade com um certo tipo de desenvolvimento. Isso é um equívoco.
Simplesmente opor desenvolvimento a subdesenvolvimento por critérios comparativos é ocultar a dinâmica das relações estabelecidas entre si pelas diversas sociedades capitalistas. A comparação parece indicar patamares, estágios autônomos de cada sociedade isoladamente: sociedades desenvolvidas de um lado e subdesenvolvidas de outro, mas tendo estas a possibilidade de um dia se igualarem às primeiras. Na realidade, não temos evidências nem de uma coisa nem de outra.
Em primeiro lugar é preciso que consideremos, do ponto de vista lógico, a possibilidade de afirmarmos que todas as sociedades se encontram em desenvolvimento. Com exceção de um estado puramente natural, isto é, a natureza considerada independentemente do homem, sem a presença humana, portanto, sempre temos um processo de desenvolvimento porque os homens e as sociedades estão, de maneira contínua, produzindo sua existência. O que podemos constatar, pois, é a realidade das situações naturais não desenvolvidas – não procede dizer subdesenvolvidas – e das situações sociais em desenvolvimento.
Por outro lado, a ideia de que as sociedades consideradas subdesenvolvidas alcancem um dia as sociedades desenvolvidas é uma suposição que nos dá a entender que as sociedades desenvolvidas param seu desenvolvimento, enquanto as outras continuam a tê-lo ou, pelo menos, que as sociedades ditas subdesenvolvidas conseguem desenvolver-se mais velozmente do que as já desenvolvidas, possibilitando-lhes assim igualarem-se. Ora, mas ocorre exatamente o contrário. As relações entre as sociedades capitalistas implicam que as desenvolvidas extraiam das demais ainda melhores condições para o seu próprio dinamismo e, claro, em prejuízo das outras. Observemos, entretanto, que para explicitar tais situações podemos nos utilizar do conceito de subdesenvolvimento porque assim estaremos designando que o desenvolvimento de um país ou região se dá de forma subordinada ao desenvolvimento de outros. Uma espécie de condição colonial permanente, embora instável e mutável porque ao longo da história tem adquirido diferentes manifestações. No caso específico do Brasil, por exemplo, a subordinação se deu primeiro no âmbito do antigo sistema colonial; depois na associação ao tipo de colonialismo criado pelo imperialismo das primeiras grandes potências capitalistas mundiais (Inglaterra) e na atualidade se manifesta na vinculação ao desempenho do capitalismo monopolista que integra as economias nacionais.
O conceito de subdesenvolvimento, portanto, não é um conceito abstrato para comparar diferenças entre países, como se cada um deles constituísse uma realidade estática e não relacionada entre si. Desenvolvimento e subdesenvolvimento são aspectos de um mesmo processo do modo de produção capitalista. Esses aspectos resultam historicamente das relações que o modo de produção capitalista – sempre visando à maior acumulação de capital e à concentração da propriedade privada dos meios de produção – estabelece entre as diferentes sociedades com a finalidade de continuar sua expansão. Em contrapartida, as sociedades em condição de subordinadas desenvolvem, internamente, as características desse mesmo capitalismo com sua estrutura de classe, formas de representação política e organização do Estado, ou seja, constituem-se também em capitalistas. O fenômeno desenvolvimento-subdesenvolvimento pode assim reproduzir-se no interior do próprio país economicamente subordinado – o que ocorre nas relações entre o Sudeste e Nordeste brasileiros, por exemplo – beneficiando a burguesia local já aliada à burguesia internacional.
Como diz Florestan Fernandes:
(...) cumpre observar que o capitalismo monopolista está alterando rapidamente o quadro dos ajustamentos entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, estimulando o aparecimento de um ’padrão de interdependência’ que subjuga de forma sem precedentes (sem nenhum vínculo ’colonial’ ou ’imperialista’) as economias satélites. Esse processo afeta até as economias nacionais autônomas; mas é nas nações subdesenvolvidas da Europa, da América Latina, da Ásia e da África que as conseqüências estão assumindo os aspectos mais dramáticos. (1975, p. 47)
Postas essas observações acima, voltemos às relações possíveis de serem estabelecidas pela proposta do tema “Subdesenvolvimento e cultura”.
Temos que falar novamente do ponto de vista lógico para concluirmos que: se os conceitos de cultura e desenvolvimento interpenetram-se; se desenvolvimento e subdesenvolvimento são aspectos relacionados das características próprias do modo de produção capitalista; se o subdesenvolvimento é um certo tipo de desenvolvimento; se todas as sociedades estão em desenvolvimento porque produzem sua existência; então, todas as sociedades produzem também a cultura, mas se há uma subordinação do desenvolvimento de certos países ou regiões a outros, nesses casos a cultura dos subordinados tendencialmente será também subordinada. “Ao nível do fluxo civilizatório, o eixo da verdadeira história cultural da sociedade capitalista dependente se desloca para fora, para os núcleos de produção e de difusão da civilização consumida. As sociedades subdesenvolvidas, independentemente do seu atraso ou avanço relativos, não possuem recursos materiais e humanos para inverter sua condição de focos de consumo da cultura, e dia a dia vêm aumentar a distância histórica que as afasta quer daqueles núcleos, quer da própria autonomização cultural.” (Fernandes, op.cit., p. 48.)
Nas condições do capitalismo monopolista, portanto, havendo uma universalização das leis desse modo de produção, tendencialmente ocorre também uma universalização dos valores culturais e ideológicos ao mesmo tempo em que a produção cultural, ou seja, a forma mesma pela qual as sociedades subordinadas produzem seu próprio desenvolvimento, efetiva-se também de maneira subordinada. Nos países subordinados montam-se, por exemplo, produtos de tecnologia sofisticada para o consumo, sem que esses mesmos países possuam o domínio dos conhecimentos científicos e tecnológicos necessários para a referida produção.
Embora todas as sociedades estejam produzindo cultura, é certo que, com diferentes características, nem todos participam igualmente dos resultados culturais universalmente obtidos e isso difunde a ideia de que as sociedades desenvolvidas são cultas e as subdesenvolvidas incultas. Difunde-se também a ideia de que as sociedades são subdesenvolvidas em decorrência da sua própria falta de cultura, escondendo-se assim as condições históricas e objetivas nas quais estas sociedades estão mergulhadas no quadro geral das relações capitalistas: fornecedoras de matéria-prima; importadoras de produtos industrializados; possuidoras de farta mão de obra barata disponível às multinacionais e aos capitalistas locais; consumidoras de tecnologias importadas sem dominá-las; consumidoras de produtos culturais alienígenas de qualidade bastante questionável (músicas, literatura, modismos etc.); empobrecidas e endividadas inclusive pela condescendência da burguesia local em face da burguesia internacional; carentes de uma política educacional e cultural estimuladora do desenvolvimento das suas próprias características; detentoras de altíssimos índices de analfabetismo, mortalidade infantil e miséria absoluta; politicamente autoritárias inviabilizando a participação e expressão da vontade da grande maioria das suas populações; com as pessoas tendo uma perspectiva de tempo de vida reduzido e alienadas, pela exploração interna e externa, na constante produção da mais-valia, condição real na qual existem.
A conclusão que podemos tirar, portanto, é que os países ou regiões que se encontram numa situação de subordinados economicamente tendem a produzir uma cultura também subordinada, mas, considerando a finalidade didática deste texto, gostaríamos de encerrar com a provocação das seguintes questões: Existe alguma possibilidade de que os países subordinados venham a ser autônomos? Existe a possibilidade de que uma cultura produzida de forma tendencialmente subordinada venha a se constituir em elemento significativo para a criação de condições favoráveis ao desenvolvimento e cultura autônomos?
FERNANDES, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, 267 pp.
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PINTO, Álvaro V. Ciência e existência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, 537 pp.
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SOARES, Alcides R. Monopólio, dívida externa e inflação: A política econômico-financeira no Brasil, a partir de 1964, e suas consequências para a classe trabalhadora. São Paulo: Fix, 1980, 60 pp.
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