Capítulo 10

Ele caminhou sem rumo pela Vernon. Atravessou a rua várias vezes sem qualquer motivo. Na Wharf Street, fez a volta e voltou toda a Vernon até a 11th, então caminhou as onze quadras de volta até a Wharf, e fez a volta novamente. Não tinha idéia de quanto tinha andado, há quantas horas estava fazendo aquilo. A única sensação clara que tinha era o peso da câmera no bolso de seu paletó.

O céu agora estava escuro. Ele continuou a andar para cima e para baixo da Vernon Street e, finalmente, parou em frente a uma vitrine e viu um relógio que marcava 11h40. Franziu as sobrancelhas ao olhar para o relógio e se perguntou que diabos ia fazer com a câmera.

Deixou a vitrine e voltou a andar pela Vernon. Os ci­dadãos abatidos pelo calor estavam agrupados dian­te das soleiras das portas, a transpiração reluzindo em seus rostos. Quando Kerrigan passou, ficaram olhando para ele surpresos com o colarinho abotoado, a grava­ta, as calças e o paletó de lã. Todos sacudiram a cabeça.

Mas apesar de não estar pensando naquilo, o calor grudento penetrava em seu corpo e ele caminhava com cada vez mais dificuldade. A boca e a garganta estavam ansiosas por uma bebida gelada. Ele viu a luz na janela do Dugan’s Den e então lhe ocorreu que umas cervejas cairiam bem.

Ao entrar no bar, ouviu a música esganiçada que Dugan cantarolava desafinado. Havia três fregueses no bar, duas bruxas velhas com ruge demais no rosto e um bêbado corcunda encurvado sobre um copo de vinho. As velhas estavam olhando para Dugan, que estava com os braços cruzados, os olhos semicerrados e con­centrado na música que saía de seus lábios.

Uma das bruxas inclinou-se na direção de Dugan e gritou:

– Pára com esse barulho. Não agüento esse b­arulho.

Dugan continuou a cantarolar.

– Você não vai calar a boca? – berrou a bruxa.

– Ele não vai calar a boca – dis­se a outra. – A única maneira de fazer ele ficar quieto é dar um tiro nele.

– Um dia desses vou fazer isso mesmo – disse a primeira. – Vou entrar aqui com um revólver e, Deus me livre, vou meter uma bala na garganta dele.

Kerrigan estava no bar. Chamou a atenção de Dugan e disse que queria uma cerveja. Dugan encheu um copo e o levou até ele. Bebeu rápido e pediu mais uma. Olhou para o relógio acima do bar e os ponteiros marcavam 00h10. A câmera estava pesando muito no bolso do seu paletó.

A primeira coroa apontou para Kerrigan e disse:

– Olha para aquele maldito idiota. Olha como ele está todo embecado.

– Em um terno de lã – disse a outra velha.

– Talvez ele ache que é inverno – disse a pri­meira mulher. Ela era baixinha e disforme e tinha tingido o cabelo de laranja.

A outra velha começou a rir. O som parecia o ranger de duas peças de metal enferrujado uma contra a outra. Seu pescoço estava enfeitado com várias cicatrizes de faca e no rosto havia uma cicatriz horrível que ia do olho direito até a boca. Tinha estatura mediana e pesava cerca de quarenta quilos. Apontando o dedo ossudo para Kerrigan, ela zombou:

– Está tentando se sufocar? É isso o que quer fazer? Quer ficar sufocado?

– Ele não está nem ouvindo você – disse a coroa disforme. – Está todo arrumado para ir a algum lugar e nem está ouvindo você.

– Ei, otário – berrou a mulher com as cicatrizes. – Está indo pra uma festa? Leva a gente com você.

– É. A gente também está toda arrumada.

Kerrigan olhou para elas. Viu os trapos que ves­tiam, o couro rachado e os saltos quebrados dos sapa­tos. Então ele olhou para seus rostos e as reconheceu. A mulher sem forma com cabelo laranja se chamava Frieda e morava em um barraco a poucas portas da casa de Kerrigan. A mulher com as cicatrizes era a viúva de um escavador de poços chamada Dora. As duas mu­lheres tinham quarenta e poucos anos e ele as conhe­cia desde menino.

– Oi, Frieda – disse ele. – Oi, Dora.

Elas se retesaram e olharam fixamente para ele.

– Vocês não me conhecem?

Sem se mover de seus lugares no outro lado do balcão, as duas se inclinaram para a frente para vê-lo me­lhor.

– Eu sei quem ele é – disse Frieda. – É um cana, um federal.

Dora inclinou a cabeça e olhou para Kerrigan de cima a baixo e então balançou a cabeça devagar.

– A droga de um federal – disse Frieda. – Eu sinto o cheiro deles a quilômetros de distância.

– O que ele quer com a gente? – A voz de Dora estava desconfiada.

– Eu conheço esses federais – declarou Frieda em voz alta. – Eles não têm nada contra mim. Ei, você! – gritou ela para Kerrigan. – Seja lá o que você tem na cabeça, é melhor esquecer. Não somos contrabandistas de bebida nem estamos vendendo drogas. Somos honestas, mulheres trabalhadoras que vão à igreja e pagam seus impostos.

– E outra coisa – interrompeu Dora. – Não somos vigaristas.

– Somos cidadãs decentes – declarou Frieda. Sua voz tornou-se uma rajada estridente. – Deixe a gente em paz, está ouvindo?

Kerrigan deu um suspiro e voltou à sua cerveja. Sabia que não adiantava tentar provar sua identidade. Sabia que Frieda e Dora estavam misturando seu medo da lei com um certo prazer, uma sensação de impor­tância. Elas visualizaram o governo dos Estados Unidos enviando um agente para lidar com duas rainhas do vício. Mas elas iam mostrar a ele. Iam frustrá-lo em tudo o que tentasse fazer.

Ele chamou Dugan e disse que estava pagando uma rodada para as damas. Elas pediram doses duplas de gim e não se deram o trabalho de agradecer, porque tinham pressa em beber tudo. E quando terminaram, tinham esquecido completamente dele. Olhavam para os copos vazios e tentavam se afogar no vazio.

Enquanto Dugan cantarolava a canção esganiçada, Kerrigan curvou-se sobre o balcão sem escutar. Estava olhando para o copo meio vazio de cerveja e sentindo o peso da câmera em seu bolso.

Então a porta se abriu e uma pessoa entrou no bar. As mulheres olharam para o recém-chegado, que sorriu uma saudação amigável e silenciosa e foi na direção da mesa do outro lado do salão. As coroas fizeram comentários silenciosos quando viram o rosto muito bem esculpido de Newton Channing. Ele estava usando uma camisa branca limpa e um terno leve de verão recém-pas­sado. Ao sentar à mesa, acendeu um cigarro com um isqueiro verde, esmaltado, que lançou um facho de um verde pálido sobre seus traços finos e sensíveis e deu uma coloração esverdeada a seus cabelos tingidos de amarelo.

As duas velhas continuaram olhando para Newton Channing, os olhos refletindo uma mistura de curiosidade e uma inveja fútil e absurda.

Kerrigan tinha erguido a cabeça e estava en­ca­rando o espelho atrás do bar. Olhava para a fumaça que subia lânguida do cigarro na boca de Channing. Sua mão se moveu devagar pelo lado do paletó até ele alcançar o bolso onde estava a câmera.

Esperou até que Dugan servisse um copo grande de uísque para Channing, então atravessou o bar e foi até a mesa dele. Tirou a câmera do bolso e a botou sobre a mesa.

– O que é isso? – perguntou Channing, desinteressado.

– É da sua irmã.

– Onde você conseguiu?

– Ela deixou comigo.

Channing franziu levemente o cenho. Pegou a câmera, girou-a em suas mãos, aproximou-a dos olhos e a examinou com cuidado. Então pousou-a na mesa e virou a cabeça devagar para olhar Kerrigan.

– Você não é o cara que conheci ontem à noite? – disse ele.

Kerrigan balançou a cabeça.

– Você me pagou uma cerveja e a gente conversou um pouco.

– É, eu me lembro. – Channing voltou sua atenção para a câmera. – O que está acontecendo aqui?

Kerrigan riu.

– Qual é a graça? – perguntou Channing. Sua voz estava muito calma.

Kerrigan foi até o outro lado da mesa e sentou. Channing afastara o copo de uísque para o lado e estava inclinado para a frente, intrigado, o cenho franzido, os olhos ainda na câmera.

Kerrigan tamborilou na mesa com os dedos e disse:

– É melhor você ter uma conversa com sua irmã. Diga que, desta vez, ela deu muita sorte. Talvez não tenha tanta sorte assim da próxima vez.

Channing olhou para ele.

– Não sei o que você está querendo dizer.

– Não consegue adivinhar?

Channing sacudiu a cabeça, os olhos estavam vazio­s.

– Ela me passou uma cantada – disse Kerrigan. Ele se recostou na cadeira e esperou a reação de Channing.

Mas não houve reação. Apenas viu o ar intrigado sumir aos poucos do rosto de Channing, que então deu de ombros. Ele estendeu a mão para o copo grande cheio de uísque, levou-o à boca e tomou um gole grande. Então levou um cigarro aos lábios e tragou com calma. A fumaça saiu pelo seu nariz e sua boca como fumaça de um queimador de incenso, as colunas finas subindo preguiçosamente.

Kerrigan podia sentir que estava ficando nervoso. Tentou relaxar, mas seus olhos estavam endurecendo e sua voz estava soando tensa e nervosa.

– Você não ouviu o que eu disse? Ela me passou uma cantada.

– E daí?

– Você não parece se importar.

– Por que eu deveria?

Kerrigan falou com um sarcasmo amargo:

– Ela tem classe. Você não quer que ela se misture com estivadores e bêbados.

– Não dou a mínima para com quem ela se mete.

– Ela é sua irmã – disse Kerrigan. – Não significa nada para você?

– Ela significa muito para mim. Eu gosto muito de Loretta.

– Então por que não cuida dela?

– Ela é grande o suficiente para saber se cuidar.

– Não à noite. Não nesta vizinhança. Nenhuma mulher está segura nesta vizinhança.

Channing tirou os olhos da câmera e estudou o rosto de Kerrigan. Ficou em silêncio por alguns instantes, então falou baixinho:

– Eu não estou preocupado. Por que você deveria estar?

Era uma afirmação perfeitamente lógica. Kerrigan engoliu em seco e disse:

– Só estou dando um conselho, só isso.

– Obrigado – disse Channing. Ele inclinou um pouco a cabeça. – Acho que é você quem precisa de um conselho.

Kerrigan se viu encarando a câmera no centro da mesa.

Ele ouviu a voz de Channing:

– Não tenha medo dela.

Parecia que a mesa estava se elevando para acer­tá-lo na cara. Ele afastou a cabeça para o lado e se perguntou por que não conseguia olhar para Channing.

– Não há motivo para ter medo – disse Channing. – Afinal de contas, ela é só uma mulher.

Ele tentou responder, tateou em busca de frases, mas não encontrou sequer uma palavra.

– Estou dizendo isso – murmurou Channing – porque sei que você está interessado por ela.

– Você está louco.

– Talvez – reconheceu Channing com total seriedade. – Mas às vezes é o lunático a pessoa que faz mais sentido. Talvez você não saiba que está interessado nela, mas isso está evidente em seus olhos. Você está muito a fim dela, mas também morre de medo dela.

Algo apertou a garganta de Kerrigan. Ele falou em um sussurro.

– Claro que tenho medo. Tenho medo de ar­rebentar os dentes dela se vier me perturbar outra vez.

Channing ergueu as sobrancelhas. Por um longo ins­tante ficou pensando em silêncio, então disse:

– Bem, isso é bem compreensível. Para você, ela está só se divertindo.

Kerrigan espalmou as mãos sobre a mesa, fazendo pressão contra a madeira. Ele ficou calado.

Channing falou:

– É bem possível que ela seja mais séria do que você pensa. Por que não tenta descobrir?

– Não estou interessado. Acontece que tenho outra coisa em mente.

Fez uma pausa, esperando que aquilo atingisse Channing.

O rosto de Channing estava impassível.

– Isso tem a ver com você – disse Kerrigan. Fez-se outra pausa, muito mais longa. – Eu gostaria de saber mais sobre você.

– Eu – franziu o cenho Channing. – Por quê? Algum motivo em especial?

– Acho que você sabe qual o motivo. Não estou pronto para afirmar com certeza. Mas acho que você sabe.

Channing ergueu outra vez as sobrancelhas.

– Isso parece um tanto sinistro. Agora você me deixou curioso.

– Não preocupado?

– Não. Só curioso.

– Você devia estar preocupado.

Channing sorriu.

– Nunca me preocupo. Sofro muito, mas nunca me preocupo. – Ele pegou o copo de uísque, deu um gole grande que esvaziou o copo. Então serviu mais uísque da garrafa, tomou outro gole e disse: – Eu gostaria que você me explicasse isso tudo.

– Não estou pronto para contar a você.

Channing continuou a sorrir. Era um sorriso tranqüilo.

– Espero que seja algo emocionante – murmurou ele. – Gosto de emoções.

– Foi isso o que imaginei – disse Kerrigan. – Tudo pela diversão.

– Claro. – Channing acendeu outro cigarro. – Por que não? – Ele deu um trago relaxado no cigarro, inalou profundamente a fumaça, depois soltou-a em pe­quenas nuvens ao dizer: – Há algumas semanas achei que seria legal conhecer o Alasca. Nunca tinha ido ao Alasca e de repente resolvi fazer a viagem. Resolvi numa tarde de quarta-feira. Uma hora mais tarde estava em um avião e, na quinta à noite, estava fazendo amor com uma mulher esquimó de sessenta anos.

Kerrigan ficou em silêncio por alguns momentos, então disse:

– Como estava o Alasca?

– Muito legal. Um pouco frio, mas muito legal.

As mãos de Kerrigan ainda estavam espalmadas contra a mesa. Ele baixou os olhos até elas.

– Você sempre faz essas coisas?

– De vez em quando – disse Channing. – Depende do meu estado de espírito.

– Aposto que você tem muitos estados de espírito diferentes.

– Centenas deles – reconheceu Channing. Ele riu sem emitir som. – Eu devia manter um arquivo. É di­fícil se lembrar de tamanha variedade.

Kerrigan fechou os olhos e, por um momento, tudo o que viu foi a escuridão. Então algo aconteceu ao ne­grume e ele se transformou no beco escuro e nas man­chas secas de sangue.

Sentiu um tremor surgir em seu peito, subir até o cérebro e descer até o peito outra vez. Agora os olhos estavam abertos, suas mãos estavam escancaradas e ele viu que os nós dos dedos estavam brancos. Disse a si mesmo: “Pare com isso, você ainda não tem certeza, não tem provas, não pode fazer nada até ter provas”.

Então algo o fez virar a cabeça e ele viu as duas velhas de pé no bar. Estavam olhando para ele e Channing e faziam ruídos sibilantes para chamar sua atenção. Então, um tanto hesitantes, elas foram até a mesa.

Aproximaram-se com expressão mal-humorada e beligerante, mas apesar disso suas bocas retorcidas pa­re­­ciam implorar por algo. Frieda tentava balançar os quadris disformes e suas mãos faziam ajustes ca­prichosos no cabelo alaranjado. Dora balançava os ombros os­sudos e tentava mostrar as curvas de um corpo que não tinha curvas. Quando chegaram mais perto, pareciam um saco de farinha e uma vassoura andantes.

– Dêem o fora daqui – resmungou Kerrigan.

– Temos o direito de sentar – disse Dora. Então ela o reconheceu. – Ei, quem diria? É Bill Kerrigan.

– Claro que é – gritou Frieda.

– E está todo arrumado na melhor beca de domingo – declarou Dora. Ela soltou um riso agudo e desafinado. – Achamos que você era um federal. – Ela cruzou os braços, descruzou-os e tornou a cruzá-los. – Por que essa roupa especial?

– Esta aqui é uma mesa especial – disse Frieda. Ela fez um gesto para indicar Channing, que estava ali sentado, relaxado e com um leve sorriso.

Dora tinha parado de rir e seu rosto estava todo vincado com rugas que se curvavam para baixo.

– Pode ser especial, mas não é reservada. Se eles podem sentar aqui, nós também podemos.

– Você está muito certa – disse Frieda. Ela pegou a cadeira ao lado de Channing e virou-a para que o tecido feio que cobria seus quadris encostasse em seu paletó limpo.

Dora sentou ao lado de Kerrigan e passou o braço em torno de seu ombro. Ele praguejou em silêncio, segurou-a pelo pulso e afastou seu braço. Mas então o braço o envolveu outra vez. Ele pensou: “Que se dane”, e deixou que ficasse ali.

– Você vai nos pagar uma bebida? – perguntou Frieda a Channing.

– Bem, claro – disse Channing. – O que vocês querem?

– Gim – disse Dora. – Nós só bebemos gim.

Channing chamou Dugan e pediu uma garrafa de gim e dois copos. O bêbado corcunda tinha se vi­rado e estava olhando para a mesa. Seu rosto estava inexpressivo.

– Você quer alguma coisa? – perguntou a ele Channing.

– Vá pro inferno – disse o bêbado. Disse aquilo com esforço. Não havia mais vinho em seu copo, ele tinha apenas sete centavos no bolso e o vinho custava quinze. Ele respirou fundo e disse: – Vá para o inferno.

– E você também – gritou Frieda para o bêbado. – Não queremos nada com você, sua aberração corcunda.

– Não diga isso – disse com suavidade Channing. – Isso não é legal.

Frieda girou na cadeira e olhou para ele.

– Não me venha dizer como falar. Sou uma dama e sei como falar.

– Tudo bem – disse Channing.

– Nós somos duas damas, eu e minha amiga Dora. Essa é a Dora. Eu me chamo Frieda.

– É um prazer conhecê-las – disse ele. – Sou Newton Channing.

Frieda falou alto:

– Não estamos interessadas em quem você é. Não é melhor que a gente. – Ela sentou-se bem aprumada e os olhos estavam mais duros. – O que faz você achar que é melhor que a gente?

– É isso o que eu acho?

– Claro – disse Dora. – Você não engana ninguém.

Channing deu de ombros. Dugan chegou na mesa com a garrafa de gim e dois copos. Channing olhou para Kerrigan.

– E você?

– Não quero nada – murmurou Kerrigan. – Eu vou embora daqui. – Tentou se livrar da pressão feita pelo braço magro de Dora. Ela pôs o outro braço ao redor dele e o segurou ali.

Ele não ouviu o som da porta e não ouviu a aproximação dos passos em sua luta para se livrar de Dora. Então algo fez com que olhasse para o alto e ele a viu de pé ao lado da mesa, viu o rosto lindo e o cabelo dourado de Loretta Channing.

Ela estava olhando para ele. Seu olhar era decidido e parecia ignorar as outras pessoas à mesa.

– Quem é a vagabunda? – disse Frieda.

– Essa vagabunda – disse Channing – é minha irmã.

– Ela até que não é feia – comentou Dora.

– O que ela está fazendo aqui? – perguntou Dora. – Está vendo se arruma alguém?

– Tem um cara ali – disse Dora, e apontou para o corcunda no bar. – Vá lá e converse com ele – disse para Loretta. Ela não gostava da maneira com que Loretta olhava para Kerrigan. Seu braço apertou-se em torno do ombro de Kerrigan e ela falou mais alto: – Não está vendo que estamos juntos, aqui? Você não pode sentar aqui, a menos que esteja com um homem.

Loretta continuou a olhar para Kerrigan.

A respiração de Dora ficou mais difícil.

– Olhe, aqui – sibilou para Loretta. – Tire os olhos dele. Ele está comigo. Se quiser olhar, tem que olhar para mim primeiro.

– Isso mesmo, mostre a ela – disse Frieda.

Channing estava morrendo de rir.

– Cuidado, Dora. Minha irmã tem uma direita e tanto.

– Ela não me assusta – disse Dora. – Se mexer comi­go, vai precisar é de tratamento médico 24 horas por dia.

Ela viu que Loretta a ignorava e continuava a olhar para Kerrigan. Ela se levantou, aproximou o rosto do de Loretta e gritou:

– Escute aqui, já falei para parar de olhar para ele.

– Não grite no meu rosto – disse baixinho Loretta.

– Se continuar com isso, vou cuspir na sua cara.

Loretta deu um sorriso. Os olhos permaneceram em Kerrigan quando ela murmurou:

– Não, não faça isso.

– Você está me desafiando? – ganiu Dora.

– Claro que está desafiando você – disse Channing. – Não vê que ela está querendo confusão?

– Bem, não tenho a menor dúvida que ela vai encontrar – declarou Dora. – Quando estou com um homem, não quero nenhuma sirigaita se metendo.

Loretta olhou para a coroa magricela.

– Você tem razão – disse ela. – Você tem toda a razão. Me desculpe. – Ela se afastou de Dora então virou-se e andou até o bar.

Mas Dora não estava satisfeita e gritou:

– Você não vai escapar assim tão fácil, sua vadia. – Ela baixou a cabeça e investiu contra Loretta. No último instante, Loretta deu um passo para o lado. Dora colidiu contra o balcão e caiu estatelada no chão. Rolou de lado, tentou se levantar, tropeçou nas próprias pernas e tornou a cair. Fez outra tentativa de se erguer, tentou firmar um pé, e viu Loretta ali parada com as mãos nas cadeiras, esperando por ela. Havia algo nos olhos de Loretta que diziam a Dora para pensar em sua própria segurança pessoal.

Quando Dora se afastou de Loretta, o bêbado corcunda soltou um riso alto de desdém. Dora virou-se e começou a gritar e a xingá-lo. Loretta deu as costas para eles e disse a Dugan que queria um uísque. Na mesa, Frieda estava dizendo a Channing que ele devia arrumar uma esposa e sossegar. Ela começou a falar em tons mais baixos, discutindo os benefícios do matrimônio. Chan­ning tinha se virado na cadeira para encará-la e dava a ela toda a sua atenção. Frieda declarou que todo homem precisava morar com uma mulher, que para preservar a saúde era necessário levar uma vida caseira saudável. Channing concordou com ela. Disse que era totalmente favorável à vida doméstica saudável. Perguntou a Frieda quantos anos tinha e ela disse quarenta e três. Channing balançou a cabeça pensativo, então perguntou o peso dela, que respondeu oitenta quilos. Ele disse que oitenta estava bem e perguntou se ela sabia cozinhar. Ela disse que não. Os olhos de Channing estavam firmes na coroa disforme de cabelo laranja. Sua voz estava séria quando disse a ela que era melhor começar a aprender a cozinhar.

Kerrigan ficou ali sentado ouvindo aquilo e olhando fixamente para a câmera, até ouvir Frieda dizer:

– Está falando sério?

– Claro, Frieda – respondeu.

– Bem, é que eu não estou conseguindo acreditar! – disse Frieda.

Kerrigan tentava afastar os olhos da câmera. Disse a si mesmo para se levantar e ir embora. Ouviu a voz embargada pelo gim de Frieda dizer:

– Está mesmo falando em se casar comigo, eu ser sua mulher e você meu marido?

Sem a menor hesitação, Channing respondeu:

– Claro! Se você quiser...

Kerrigan segurou a beira da mesa e tentou se erguer da cadeira, mas as lentes da câmera ainda pren­diam seus olhos e ele não conseguiu se mexer.

– Quando vamos fazer isso? – perguntou Frieda.

E Channing disse:

– Pode marcar a data.

As pernas da cadeira de Kerrigan arranharam o chão, então ele se levantou da mesa. Olhou para baixo para a velha disforme e disse:

– Por que está deixando ele fazer você de boba?

Frieda olhou para ele e sua boca contorceu-se.

– É isso que ele está fazendo? – Ela virou-se para estudar o rosto de Channing e disse: – Você está aí sen­tado rindo de mim?

Channing estava servindo mais uísque em seu copo. Deu um longo e demorado gole, o equivalente a três doses, e disse:

– Já falei para você marcar a data.

Kerrigan olhou feio para Frieda e disse:

– Sua idiota. Não percebe que ele está só provocando você? Está fazendo você pagar pelo gim. Ele só quer se divertir um pouco.

– Não enche o saco – disse Frieda. – Não pedi sua opinião. – Virou-se para Channing e deu um sorriso doce para ele. Havia uma certa tristeza no sorriso.

– Tudo bem, sei que é uma brincadeira. Você não pode estar falando sério.

– Mas estou – disse Channing. A voz dele estava suave, os olhos doces. Ele falou com ela como se Kerrigan não estivesse ali. – Acredite – disse ele. – Tente acreditar em mim.

Kerrigan riu com desdém. Afastou-se da mesa e foi na direção da porta. Deu um passo e então viu Loretta no balcão do outro lado do bar. Ele olhava imóvel para ela, inclinada sobre o balcão. Aos poucos, seus olhos se apertaram. Voltou até a mesa e pegou a câmera. Caminhou devagar pelo bar, chegou ao lado dela e botou a câmera sobre o balcão.

Ele falou sem rodeios.

– Você deixou isso no escritório das docas.

Ele se virou para ir embora. Ela botou a mão em seu braço.

– Por favor, não vá.

– Tenho um encontro.

Ela o olhou de cima a baixo.

– É por isso que você está todo arrumado?

Ele não respondeu.

Por um longo instante ela estudou seus olhos, então disse:

– Claro que você tem um encontro. Comigo.

– Desde quando?

– Desde que tomou um banho, se barbeou e botou sua melhor roupa.

Ele fechou a cara.

– Não fiz isso por você.

Ela inclinou a cabeça e o olhou meio de lado.

– Por quem mais você faria isso?

Ele abriu a boca para dar uma resposta rápida e mal-humorada, mas não conseguiu dizer sequer uma palavra. Esperou que soltasse seu braço para poder se afastar. Então percebeu que ela não estava segurando seu braço. Ela o soltara há um bom tempo. Ele se perguntou por que tinha a sensação de que ainda estava segurando seu braço.

Atrás do balcão, Dugan esperava o pagamento pelo uísque e a água. Loretta abriu a carteira, pegou uma nota de um dólar e a deu a ele, que devolveu o troco, duas moedas de vinte e cinco e duas de dez. A transação foi feita sem pressa e Kerrigan desejou que tives­sem feito aquilo com mais rapidez. Não conseguia compreender aquela impaciência. Por alguma razão inex­pli­cável, estava com pressa, e era como se não conseguisse se mexer a menos que ela o acompanhasse.

Ficou ali parado, esperando-a botar os setenta centavos na carteira e guardá-la no bolso da saia. Ele transferiu seu peso de um pé para outro e observou enquanto ela bebericava bem devagar o uísque e a água. Sem emitir qualquer som, ele dizia para si mesmo: “Vamos lá, vamos lá”. Ela se virou e olhou para ele. Botou o copo no balcão, pegou a câmera e falou baixinho para ele, com um sorriso:

– Eu terminei. Vamos embora?

O chão pareceu deslizar sob seus pés, le­vando-o para longe do balcão. O teto recuou, as paredes se moveram e a porta se aproximou. Atrás dele havia o som agudo da voz de Dora, que ainda gritava com o bêbado corcunda. E o som das vozes mais baixas da conversa de Frieda com Channing. Também o som de uma música estridente cantarolada pelos lábios de Dugan. Mas todos aqueles sons eram insignificantes, um coral que nada acrescentava. A única coisa que ouvia enquanto caminhava com ela até a porta e saía do Dugan’s Den era um rugido alto em seu cérebro.