Capítulo 4

– Oi – disse Kerrigan.

– Vá pro inferno.

– Ainda está com raiva de mim?

– Por que você não me faz um favor e bebe ve­neno?

Bella tinha vinte e tantos anos. Tinha sido casada três vezes, uma vez de papel passado, com juiz e tudo. As outras, sem essa burocracia toda. Um tanto alta e um pouco cheinha, era uma versão um pouco menor da mãe. O cabelo era do mesmo preto, os olhos negros e brilhantes, a pele um castanho cherokee. Tinha as mesmas formas generosas e cheias de curvas de Lola e valorizava aquilo com blusas e saias bem apertadas.

Falava demais e alto, tinha um gê­nio terrível e não temia nenhum ser vivo, com a exceção da mãe. Algu­mas semanas antes, durante uma discussão na sala, dera um chute em Kerrigan, que ficou machucado. Então Lola a agarrou e lhe deu uma surra tão grande com o fio do ferro de passar que ela ficou dois dias sem conseguir sair de casa.

Kerrigan sorriu para ela.

– Qual o problema desta vez?

– Vá passear – respondeu com aspereza. – Já disse há uma semana que você está fora da minha lista.

Ele sentou ao lado dela na soleira.

– Ainda não sei por que você está com raiva.

Bella olhou fixamente para a frente.

– O senhor tem memória curta.

De alguma forma, naquela noite estava achando a presença dela revigorante, e sua proximidade deu a ele uma sensação de conforto e prazer.

– Acho que foi algo relacionado a uma loura – disse ele.

Ela lançou um olhar mal-humorado.

– Você não lembra qual? Talvez tenha tantas que se esqueça dos nomes.

– Foi a Vera?

– Não, não foi a Vera. E, por falar nisso, quem diabos é a Vera?

Kerrigan deu de ombros.

– Uma garçonete. Quando vou a um restaurante, tenho que falar com a garçonete. Preciso dizer a ela o que quero.

Bella não respondeu. Kerrigan lhe ofereceu um cigarro e ela aceitou de má vontade. Pegou os fósforos no bolso de trás e o acendeu. Ficaram ali e fumaram em silêncio durante um tempo.

Finalmente, Bella disse:

– Não foi com uma garçonete que eu vi você. Para mim, parecia uma vagabunda de dois dólares. Você a levou para dar um passeio na Second e então entrou com ela em uma casa.

– Que casa? De que você está falando? – Ele franziu o cenho com surpresa autêntica e esfregou a nuca. Então, lembrou-se do incidente. – Pelo amor de Deus, aquilo não era uma casa, era uma loja. Ela é casada e tem cinco filhos. O marido vende móveis de segunda mão. Disse a ela que precisávamos de um abajur para a sala. Se não acredita, vá lá e dê uma olhada. Você vai ver o abajur que comprei.

Bella estava convencida, mas não apaziguada.

– Por que você não me contou quando perguntei na primeira vez? – disse ela.

– Não gostei do jeito que você me perguntou, foi por isso. Nem me deu uma chance de explicar. Partiu pra cima de mim como um gato selvagem.

– Você precisava me bater no rosto?

– Se eu não batesse, você teria arrancado meus olhos.

– Um dia desses eu vou.

Ele deu um sorriso afável para ela.

– Não faça isso quando sua mãe estiver por perto.

– Na próxima vez, ela não vai me impedir. Nada vai me impedir.

Kerrigan deixou que o sorriso desaparecesse. Não olhou no rosto de Bella. Havia uma crueldade em seu olhar que fazia com que ele soubesse que ela estava falando sério.

– Qual o problema? – disse ele. – O que está incomodando você?

Ela ficou um instante em silêncio, então disse:

– Cansei de esperar.

– Esperar? O quê?

Seus olhos o perfuraram.

– Você sabe.

Ele afastou o olhar do rosto dela.

– Droga – resmungou. – Vamos começar com isso de novo?

– Quero resolver isso de uma vez por todas – disse Bella. – Vamos nos casar ou não?

Ele deu um último trago no cigarro e o jogou na rua.

– Ainda não sei.

– Como assim, não sabe? Tem algum problema que impede você?

Ele procurou uma resposta, mas não encon­trou nenhuma. Seus ombros estavam curvados, os braços cruzados sobre os joelhos enquanto encarava mal-hu­morado a calçada.

– Por que não devemos nos casar? – perguntou Bella. – Nós gostamos um do outro, não gostamos?

– É preciso mais que isso.

– O quê?

Ele ficou mais uma vez sem resposta.

– Qual o problema? – queria saber Bella. – Moramos na mesma casa, comemos à mesma mesa. Você não vai ter que fazer grandes mudanças. Só precisamos expulsar Frank do seu quarto e botá-lo no meu. Então levo minhas roupas pelo corredor e está resolvido.

A expressão mal-humorada dele se acentuou. Tentou dizer algo, mas seus lábios não se mexeram.

Ela inclinou um pouco a cabeça, estudando-o com evidente suspeita.

– Talvez você tenha outros planos, que não me incluem.

Ele não respondeu. Tinha a vaga noção de que ela falara uma verdade importante que ele não podia admitir para si mesmo.

– Faça o que quiser fazer, só não tente me enrolar. Não estou aí para ser maltratada.

Ele franziu o cenho para ela.

– Você é ciumenta demais.

Ela ficou em silêncio por alguns instantes, então, bem baixinho, disse:

– Tenho todo o direito de ser ciumenta.

Os olhos dele se encolerizaram, sua voz elevou-se.

– O que você quer que eu faça, me tranque em um armário?

– Bem que eu gostaria. – Não estava olhando para ele. Olhava para a rua de paralelepípedos como se sua imobilidade sem vida fosse o único público para seus pensamentos mais profundos. – O que está acontecendo comigo? – murmurou. Então apontou para Kerrigan com um leve aceno de cabeça. – Esse cara está no meu sangue como se fosse uma doença. Chegou a um ponto em que não consigo pensar em mais nada.

Kerrigan olhou embasbacado para ela. Pela primei­ra vez teve a consciência de como Bella precisava dele, a extensão de seu desejo, que ia muito além da atração física. Há muito tempo ele sabia que ela estava realmen­te atraída por ele, e seu comportamento na cama sempre foi prova suficiente de que ela lhe dava algo especial. Mas ele nunca antecipara que sua fome por ele se transformasse na coisa mais importante da vida dela. Agora ele percebia que nunca tivera um interesse especial por Bella, que, apesar de sempre parecer ansioso por estar com ela, nunca tivera um sentimento mais profundo, sentimento que, agora, ela expressava em relação a ele.

De repente sentiu que estava sendo um problema na vida de Bella. Seus olhos se nublaram de culpa. Queria muito dizer algo carinhoso e confortante, mas não encontrou as frases.

Ela estava olhando para ele e dizia:

– Na cama, à noite, às vezes fico sentada, acordada, tentando descobrir o que existe entre nós dois. Por algum motivo louco eu sempre sonho que você está no alto de uma montanha. Eu estou em algum lugar por perto, não sei exatamente onde. E há centenas de milhares de mulheres tentando pegar você. Tenho tido esse mesmo sonho há meses.

Kerrigan deu um sorriso gentil.

– Não se preocupe com isso. Você não tem concorrentes.

– Se eu pudesse acreditar nisso.

– Eu estou dizendo, não estou?

– Dizer não basta. – Seus olhos mostravam preocupação e a dúvida ficava evidente na voz pesada e surda. – Não consigo me livrar desse ciúme. Por que isso me incomoda tanto?

Ele deu de ombros.

– Não tenho a menor idéia. Só sei que não me meti com nenhum outro rabo-de-saia desde que a gente está junto.

Era evidente que ela começava a acreditar nele. Ainda assim a preocupação permaneceu em seu olhar.

– Não que eu esteja imaginando coisas. Também não é pelo jeito que você olha para as mulheres. É o jeito que elas olham para você. Mesmo quando você passa do outro lado da rua, noto que elas se viram para olhar. Sei o que passa pela cabeça delas.

Ele deu de ombros outra vez.

– Essas mulheres da Vernon Street olham para qual­quer coisa que use calças.

– Não olham, não – disse ela. – Eu sou uma delas, e acho que sei do que estou falando. É que há algo em você que atrai as mulheres.

Não havia nada de elogioso na maneira com que ela disse aquilo. Sua voz tinha uma tonalidade triste e ressentida.

– Quem dera eu soubesse o que elas vêem em você. Afinal, você é o quê? Só um grande pedaço de carne, um cara durão e forte da beira do cais que não terminou nem o colegial. E você não tem nada de bonito. Já vi mui­tos bêbados por aí muito mais bonitos que você. Então não é a aparência. Nem o cérebro. Como eu queria saber o que é!

Kerrigan ficou um tanto desconfortável e um pouco incomodado com aquela avaliação de seu físico e sua inteligência.

– Não perca seu tempo tentando me decifrar. Só relaxe e me aceite como eu sou.

Por um longo instante ela ficou ali sentada olhando para ele. Então, aos poucos, seus lábios foram tomando a forma de um sorriso, o brilho voltou aos seus olhos, e seu rosto ficou mais corado.

Ela se levantou e disse:

– Vamos, vamos entrar.

Quando ia se levantar, algo o segurou ali sentado na porta de casa. Ele franziu o cenho levemente e disse:

– Vou ficar aqui sentado um pouco.

– Quanto tempo?

– Só alguns minutos.

– Tudo bem – disse ela. – Mas não demore. Não estou a fim de esperar.

Ele ouviu a porta se abrir e se fechar às suas costas, e disse a si mesmo que, agora, estava sozinho. Era como se tivessem tirado um peso dos seus ombros. Mas ao mesmo tempo ele se perguntava por que estava pensando em termos de um fardo, e não uma diversão.

Enquanto estava ali sentado, olhando despreocupado para a calçada, ouviu-se o zumbido suave de um automóvel que se aproximava em baixa velocidade. Ergue­u os olhos e viu um carro conversível deslizar na direção do meio-fio.

Ele estremeceu, então retesou-se, olhando fixamente para os cabelos dourados de Loretta Channing.