Capítulo 17

Ele ficou ali parado e disse a si mesmo que estava quase descobrindo a resposta. Sabia que não tinha qualquer ligação com o rosto ou o nome de qualquer homem. Seus olhos estavam focados na janela que dava para a Vernon Street. Ele olhou para fora, para além do vidro engordurado, e viu a lua refletida nos paralelepípe­dos irregulares. Era um brilho amarelo-esverdeado que cruzava toda a Vernon e formava poças de luz na sarjeta. Ele viu aquilo reluzir na calçada esburacada, seguir adian­te rumo a todos os becos escuros onde inúmeras criaturas da noite brincavam de esconde-esconde.

E não importava onde os mais fracos se escondessem, eles nunca conseguiriam escapar da lua da Vernon. Estavam presos, condenados. Cedo ou tarde eles seriam espancados, surrados e esmagados. Iam aprender do jeito mais difícil que a Vernon Street não era lugar para corpos delicados ou almas tímidas. Eram presas, só isso, es­tavam destinados ao bucho daquele devorador sempre faminto: a sarjeta da Vernon.

Ele olhou para a rua iluminada pelo luar e disse, sem emitir som: “Você fez isso com Catherine. Você”.

Era como se a rua pudesse ouvir. Sentiu que ela respondia com escárnio. Uma voz rouca parecia dizer: “E daí? O que você vai fazer?”.

Ele procurou uma resposta.

E a rua continuou a zombar, dizendo: “Sua irmã não agüentou, e você também não”. E ela escolheu aquele momento para exibir seu trunfo. Abriu a porta do Dugan’s Den e mostrou a ele a garota de sonhos de ca­belos dourados de Uptown. Quando viu Loretta, pôde escutar a rua lhe dizer: “Bem, olhe ela aí. Veio tomar sua mão e tirar você da sarjeta”.

Loretta estava andando em sua direção. Algo tremia em seu cérebro e ele pensou: “Ela me lembra alguém”. Então tudo estava ali, a memória das esperanças que ti­vera para Catharine e para si mesmo, as esperanças que perdera em um beco escuro e ansiava por reencontrar.

Mas os ruídos do bar interferiram. Duas moedas de dez tilintaram na mesa quando Dugan serviu um drinque para Frank. À mesa, Nick Andros serviu gim para Dora.

– Diga quando estiver bom – disse Nick, mas Dora não respondeu, pois o gim não tinha qualquer ligação com o tempo.

Quando o gim transbordou pela borda do copo, Kerrigan olhou na direção da mesa. Viu que Frieda tentava se levantar do chão. Mooney estava fazendo o mesmo e os dois quase bateram as cabeças quando ficaram de pé. Frieda cambaleou para trás e deu um encontrão no bêbado corcunda. Channing segurou-a e tentou equilibrá-la.

– Me solta, droga, eu consigo ficar em pé sozinha – disse ela.

Dora soltou um grito de aprovação que encorajou Frieda a declarar:

– Não ponha as mãos em mim a menos que eu diga a você para fazer isso – disse ela para Channing.

Channing deu de ombros. Preferiu deixar para lá. Mas Andros franziu o cenho e expressou o ponto de vista do macho ao dizer:

– Você está usando um anel de noivado dado por ele. Ele é seu noivo.

Frieda piscou, baixou o olhar para o anel e com um giro forte o arrancou. Por alguns instantes pareceu relutar em se separar da pedra verde. Segurou o anel com força, olhando de cara fechada para ele. Então, de repente, colocou-o na mesa, na frente de Channing. A voz dela estava baixa e calma quando disse:

– Pode levar de volta. Esta aqui é uma mulher gatinha independente.

Por um instante Channing ficou ali sentado sem nada nos olhos enquanto refletia sobre aquilo. Então, com outro dar de ombros, guardou o anel no bolso do paletó. Isso estava resolvido. Então sorriu para Frieda e disse:

– Quer uma bebida?

Frieda balançou a cabeça enfática. Sentou-se ao lado dele e o observou servir o gim. Ergueu o copo e disse em voz alta:

– Isso aqui é tudo o que eu preciso de um homem. Mesmo de um homem que usa camisas limpas. – Mas então, como se estivesse segurando a cabeça dele com uma mão para bater com a outra, deu uns tapinhas no rosto de Channing e falou com voz suave: – Não leva a mal, querido. Você é uma gracinha. É muito bom sentar aqui e beber com você. Mas isso é o mais longe que podemos ir. Afinal, cada macaco no seu galho, não é?

“É verdade”, pensou Kerrigan. Olhou para Loretta, que estava ali de pé esperando que ele dissesse algo. Os olhos dele viram o que ela tinha no dedo: a argola de fichário do Grego. O cérebro dele disse: “Sem chance. Ela vai ter que tirar isso fora”. E seu coração doeu quando olhou para o rosto dela. Sua expressão lhe dizia que ela sabia o que ele estava pensando, e que seu coração também sofria com isso.

– Tenho que conversar com o Grego – disse ele. – Ele vai se livrar dessa certidão. Ele só precisa acender um fósforo.

Ela não falou nada. Olhou para o anel no dedo. Começou a tirá-lo, mas ele queria ficar ali, como se fosse uma parte dela que implorava para não ser arrancada.

– Vai sair. É só afrouxar a argola – disse ele.

Os olhos dela estavam encharcados.

– Se nós pudéssemos...

– Mas não podemos – disse ele. – Não vê como são as coisas? Somos de mundos diferentes. Não posso viver seu tipo de vida e você não pode viver o meu. Não é culpa de ninguém. As coisas simplesmente são assim.

Ela balançou a cabeça devagar. Então o anel saiu. Caiu de sua mão inerte, rolou pelo chão e correu para baixo do balcão onde desapareceu na escuridão de todos os sonhos perdidos. Ele ouviu seu último tilintar, um barulhinho muito triste que acompanhou a voz dela quando disse adeus. Então ouviu o barulho dos próprios passos saindo do Dugan’s Den.

Quando chegou na calçada para atravessar os para­lelepípedos da Vernon, seu andar estava pesado, os passos sólidos no chão sólido. Ele seguiu com passadas largas que diziam a cada pedra que ela estava ali para ser pi­sada e que ele sabia muito bem como andar naquela rua, como lidar com cada buraco e saliência na sarjeta. Passou por todos eles e chegou na porta da casa onde morava. Quando abriu aporta, de repente se lembrou que estava morrendo de fome.

Na sala, Bella estava deitada de cara no sofá. Ele deu um tapa na bunda dela.

– Levanta – disse ele. – Faz alguma coisa pra eu comer.

 

 


1 No original: “The yellow moon may kiss the sky, The bees may kiss the butterfly, The morning dew may kiss the grass, And you, my friends...” (N. do T.)