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Miles cobriu o rosto com a máscara de zumbi antes de escapulir pela porta lateral que levava para fora do salão. Olhou para a esquerda e depois para a direita e, então, ativou o modo de camuflagem. A seguir, esgueirou­-se por trás do Sr. Chamberlain, que caminhava pela lateral da escola. Podia ouvir as pernas deste movendo­-se como dois pistões de máquina e ajustou o passo para que o professor não conseguisse ouvir o segundo par de pés caminhando com ele. O Sr. Chamberlain parou diante de outra porta no lado oposto do auditório. Agachou­-se, puxou a barra da calça para cima e tirou um molho de chaves. Girou­-as até encontrar a chave correta, enfiou­-a na fechadura e abriu a porta. Miles subiu na parede e enfiou­-se pela fresta que rapidamente se estreitava.

O Sr. Chamberlain ligou uma lanterna que estava embutida em seu chaveiro, com um feixe de luz branco e solitário que se projetava à sua frente como um raio laser. Ele o moveu para a direita e para a esquerda apenas para ter noção do que havia à sua frente. Miles, ainda grudado à parede, aproximou­-se para ver melhor. Escadas que levavam para baixo. O Sr. Chamberlain andava com passos leves, com os sapatos estalando em cada degrau conforme descia rumo ao que parecia ser um porão escuro.

No entanto, não se tratava realmente de uma sala. Era um túnel. Miles sabia que não podia andar por ali, pois a água que cobria o piso como uma espécie de esgoto faria que fosse impossível manter a discrição. Assim, continuou rastejando pela parede pegajosa atrás do Sr. Chamberlain, que prosseguiu a passos firmes pelo que pareceram ser vinte minutos. E, finalmente, na extremidade do túnel havia outra escadaria. Chamberlain subiu por ela e abriu um alçapão de metal que estava acima da sua cabeça, com muito menos cuidado do que fez da primeira vez. Como se soubesse que ninguém estaria ali.

Miles não fazia ideia de qual era o lugar por onde haviam saído, ou o motivo, mas a porta parecia estar no meio de um campo. Ele seguiu o Sr. Chamberlain pelo gramado até que finalmente uma casa gigantesca, uma mansão com pilares de castelo, surgiu à sua frente. Miles virou­-se para trás para ver de onde eles haviam saído – para ver se havia algum ponto de referência ou qualquer coisa que pudesse reconhecer – e foi então que o viu, bem diante da casa. O bloco de pedra. Cercado por arame farpado e impenetrável. Na cerca havia uma placa:

DEPARTAMENTO DE CORREÇÕES

A prisão?

Miles se agachou por trás de um arbusto enquanto o Sr. Chamberlain ia até a porta, imensa e feita de madeira. Ele tocou a campainha. A porta se abriu e o Sr. Chamberlain entrou. Miles avançou até uma das janelas que estava ligeiramente entreaberta.

Por dentro, a casa era bonita. Cheia de coisas antigas. Pisos sofisticados de azulejos. Cortinas da cor de leite, feitas com alguma espécie de tecido refinado – linho ou seda. Móveis grandes que pareciam ter sido entalhados em vilarejos antigos, por povos ainda mais antigos. Um candelabro extravagante. Um chicote com nove tiras de couro, um artefato conhecido antigamente como gato­-de­-nove­-caudas, pendurado em uma parede entre um grupo de retratos protegidos por molduras tão ornamentadas quanto as roupas elegantes das pessoas que apareciam nas imagens pintadas.

Miles sentiu que já havia estado ali antes. Tentou afastar a sensação de déjà­-vu, mas não conseguiu. Onde foi que já havia visto este lugar? Ele avistou um velho armário do outro lado do cômodo em que estava, completo com prateleiras cheias de bugigangas de cristal.

Espere aí… não. Não é possível. Não… não pode ser. Até que ele finalmente se deu conta. Havia sido jogado contra aquele mesmo armário antes, lembrou­-se do vidro se quebrando, cortando suas costas. Ainda conseguia sentir o ardor dos cacos pontiagudos, embora o episódio só houvesse acontecido em seus sonhos. Seus pesadelos. Aquele em que lutava contra o tio Aaron. Esta era a casa. Esta era a casa!

Miles aguçou as orelhas para ouvir o máximo que podia conforme homens de todas as idades se reuniam ao redor de um homem muito, muito idoso, com o rosto pálido e uma barba longa e branca. Era o homem no qual o tio Aaron e o Sr. Chamberlain se transformavam nos pesadelos. Ele estava no meio da escadaria, falando para os seus convidados, como se aquele fosse o jantar social mais chique e elegante de todos os tempos.

O velho começou a falar e Miles ajustou as orelhas para escutar claramente por entre a fresta de espaço que havia entre a janela e o beiral.

– Boa noite, Chamberlains.

– Boa noite, Dirigente – disseram todos ao mesmo tempo, como zumbis. Zumbis de verdade.

Dirigente? Miles não conseguia acreditar no que estava ouvindo.

– Alguma notícia a relatar? Algum novo membro em vista? – perguntou o Dirigente.

Mãos foram erguidas por entre o grupo.

Um homem baixo e magricela com os cabelos ruivos e armados e sardas no rosto ergueu a mão.

– Sim, Sr. Chamberlain?

“Sim, Sr. Chamberlain.” Miles ouviu aquela frase várias e várias vezes conforme os homens que estavam na sala anunciaram suas vitórias semanais. “Dante Jones saiu da escola graças à pressão. E eu convenci o meu diretor de que me sinto ameaçado por Marcus Williams. Ele fala alto demais e não tem lugar ali, não tem o direito de estar ali.” Outro: “Estou trabalhando para mudar os trajetos dos ônibus para me certificar de que eles não vão conseguir chegar lá. Isso vai afetar vários deles, e não vamos nem precisar nos esforçar”. E ainda outro: “Acabei de descobrir que Randolph Duncan está vivendo com uma família adotiva. Ele não é nada. Não tem ninguém”.

– Vamos nos certificar de que ele seja apanhado esta semana – instruiu o Dirigente. – Ele já é invisível, o que torna as coisas mais fáceis.

E assim por diante.

Miles escutava, tentando não vomitar nem arrebentar a janela e destruir o lugar, o que ele sabia que seria uma ideia terrível. Alguns minutos depois o Sr. Chamberlain falou. O seu Sr. Chamberlain.

– Ah, antes de ouvirmos o seu testemunho, Sr. Chamberlain, permita­-me cumprimentá­-lo pelo traje que escolheu para esta noite. Você me faz lembrar meu velho amigo, o grande Jefferson Davis aqui. – O Dirigente apontou para um dos velhos retratos que estavam na parede.

– Obrigado, Dirigente. É uma honra. Gostaria de relatar que venho observando o jovem Miles Morales.

– Sim, sim, Miles Morales.

Os olhos de Miles se arregalaram quando ele ouviu seu nome.

– O super­-herói.

A voz do Dirigente parecia escorrer com ironia. Super­-herói? Mas… como eles podem saber? O simples ato de pensar que qualquer pessoa, especialmente o Sr. Chamberlain e todos os outros naquela sala, soubesse do segredo de Miles fez seu estômago se revirar. A sala inteira se desmanchou em risos conforme o Dirigente continuou:

– Poderes extraordinários foram feitos somente para pessoas extraordinárias. E, preste atenção, é preciso que uma pessoa nasça extraordinária, com sangue puro e mente forte. Ele não tem culpa por ser descendente de gente suja, mas é perigoso para todos o fato de que ele pensa que pode ser mais do que isso. Sim, Sr. Chamberlain, eu venho observando o rapaz, também. Sussurrei para ele durante o sono, da mesma forma que fiz com a maioria dos homens da sua família. E, embora ele seja um pouco mais resistente, temos que corrigi­-lo. E, para fazer isso, precisamos dobrá­-lo.

– Sim, senhor. Tentei fazer que ele fosse acusado de roubar… salsichas. Embora ele tenha escapado da expulsão, ainda assim perdeu o emprego, o que deixou seus pais numa situação financeira ainda pior.

Outra risada baixa se espalhou pela sala.

– Resumindo, acho que estamos prestes a dobrá­-lo.

O rosto de Miles se contorceu em uma careta. Reflexivamente, ele fechou os punhos com força.

– Ah. Isso é fantástico. Há alguma outra pessoa que você esteja vigiando?

– Não ativamente, mas há um rapaz chamado Judge.

– Judge? – disse o Dirigente, bufando o nome por entre uma risada. – Que irônico. Bem, Sr. Chamberlain, mantenha­-nos informados. Bom trabalho.

– Obrigado, Dirigente. – O Sr. Chamberlain voltou para o meio do grupo.

O Dirigente levou um copo até os lábios e bebeu.

– Eu me lembro de algo que acontecia algumas centenas de anos atrás, quando a América realmente funcionava. Quando o trabalho não era algo pelo qual precisávamos barganhar, mas algo que estava prontamente disponível por seres que não tinham qualquer propósito, a menos que lhes déssemos o propósito da servidão. É para essa América que precisamos retornar. Essa é a nossa missão. – O Dirigente fez uma pausa e tomou um gole da bebida. Pelo som de sua deglutição, parecia que um animal pequeno lhe entrava pela garganta. Ele enxugou a boca. – Ver o que eu vejo agora me causa asco. Por isso, temos trabalho a fazer. Mais trabalho, e um trabalho importante. Corrigir. Lembre­-se do nosso lema: Distrair e derrotar. – O Dirigente ergueu o copo e fez um brinde. – Aos Chamberlains!

– Aos Chamberlains!

E o coquetel começou.

Miles se afastou da janela. Ainda estava com a camuflagem ativada, mas, com tantas pessoas observando, sempre parecia que alguém podia vê­-lo. Ele correu de volta pelo campo rumo à prisão até chegar ao alçapão de metal no chão. O garoto o puxou, mas o alçapão não abriu. Miles segurou com mais força e deu um puxão mais brusco, arrebentando as dobradiças. Por sorte, não havia nenhum guarda da prisão monitorando aquela parte do campo. E, novamente, se alguém conseguisse sair da prisão, pular o muro de pedra e passar pela cerca de arame farpado, não teria nenhum outro lugar para onde correr a não ser a casa do Dirigente, em que, com certeza, haveria problemas à espera.

Miles saltou novamente para dentro do túnel e correu pelo esgoto até finalmente estar de volta aos degraus sob o auditório. Encostou a orelha na porta para se certificar de que não havia nenhum casal se beijando ali dentro. Quando percebeu que o local estava limpo, abriu a porta trancada com um pontapé, correu pela lateral do prédio e voltou para a festa, que já começava a esvaziar, onde encontrou Ganke ainda em pé no meio da pista de dança, imóvel como um mastro, as mãos unidas como um monge em oração.