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ASSIMETRIA

Luz através dos cílios.

Karou apenas finge dormir. Com a ponta dos dedos, Akiva contorna as pálpebras dela, descendo suavemente pela curva de sua face. O calor que ela sente denuncia o olhar dele. Estar sob o olhar de Akiva é como estar ao sol.

— Sei que você está acordada — murmura ele em seu ouvido. — Acha que não consigo perceber?

Ela continua de olhos fechados, mas sorri, entregando-se.

— Shh, estou no meio de um sonho.

— Não é um sonho. É tudo real.

— Como sabe? Você nem está nele.

Ela está de bom humor, repleta de felicidade, de certeza.

— Estou em todos os seus sonhos — diz ele. — É onde eu vivo agora.

Ela para de sorrir. Por um instante não consegue lembrar quem é, ou quando. Karou? Madrigal?

— Abra os olhos — sussurra Akiva. A ponta de seus dedos volta a tocar-lhe as pálpebras. — Quero mostrar uma coisa.

De repente Karou se lembra, e sabe o que ele quer que ela veja.

— Não!

Ela tenta se afastar, mas ele a segura. Tenta forçá-la a abrir os olhos. Seus dedos pressionam, forçam, mas sua voz não perde a ternura.

— Olhe — insiste ele. Pressionando, forçando. — Olhe.

E ela olha.

* * *

Karou acordou sem fôlego. Era um daqueles sonhos que invadem o espaço entre um segundo e outro, provando que o sono tem sua própria física — em que o tempo se contrai e se expande, vidas inteiras se desenrolam em um piscar de olhos e cidades se reduzem a cinzas em um mero bater de cílios. Ali sentada, bem viva e acordada — ou pelo menos era o que pensava —, ela teve um sobressalto e deixou cair o molar de tigre que segurava. Levou as mãos correndo aos olhos. Ainda podia sentir a pressão dos dedos de Akiva.

Um sonho, apenas um sonho. Droga. Como isso tinha acontecido? Sonhos furtivos como aves de rapina, espreitando, só esperando que ela adormecesse. Ela baixou as mãos, tentando acalmar as batidas violentas do coração. Não havia mais nada a temer. Ela já vira o pior.

Era fácil mandar o medo embora. Já a raiva... Ser tomada por aquela sensação de certeza, depois de tudo que acontecera... Era uma mentira deslavada. Não havia nada certo em relação a Akiva. Aquele sentimento viera de uma outra vida, em que ela fora Madrigal dos Kirin, em que amara um anjo e morrera por isso. Mas ela não era mais Madrigal, não mais quimera. Ela era Karou. Humana.

De certa forma.

E não tinha tempo para sonhos.

Na mesa diante dela, opaco sob a luz das velas, havia um colar. Era formado por dentes alternados de humanos e veados, contas de cornalina, limalhas de ferro octogonais, ossos de morcego compridos e tubulares e, o que o deixava assimétrico, um único molar de tigre; seu par tinha escorregado para debaixo da mesa ao cair da mão dela.

Assimetria, quando se tratava de colares espectrais, não era uma boa coisa. Cada elemento — dente, conta e osso — era crucial para o corpo resultante, e a menor falha podia causar um defeito físico grave.

Karou empurrou a cadeira para trás e se ajoelhou para tatear pela escuridão embaixo da escrivaninha. Nas fendas do chão de terra fria, seus dedos encontraram fezes de rato, pedaços de barbante e uma coisa úmida que ela esperava ser apenas uma uva que caíra e apodrecera — Vamos deixar que isso permaneça um mistério, pensou Karou, deixando aquilo de lado —, mas nada de dente.

Cadê você, dente?

Afinal, ela não tinha dentes reservas. Conseguira aquele par em Praga, alguns dias antes. Sinto muito pela perna que falta, Amzallag, ela se imaginou dizendo. Perdi um dente.

O pensamento a fez rir, um som exausto e descontrolado. Ela podia até imaginar o que iria acontecer. Bem, Amzallag provavelmente não reclamaria. O soldado quimera sem senso de humor já tinha ressuscitado em tantos corpos que talvez levasse na esportiva e aprendesse a se virar sem a perna. Mas nem todos os soldados encaravam tão bem suas limitações no ofício. Na semana anterior, quando fizera as asas de grifo de Minas pequenas demais para seu peso, ele não fora indulgente.

— Brimstone nunca teria cometido um erro crasso com esse — explodira ele.

Jura?, Karou quisera replicar, com toda a seriedade e maturidade que podia reunir. .

Aquela não era uma ciência exata, para começo de conversa, e proporção asa-peso... bem. Se Karou soubesse o que seria quando crescesse, talvez tivesse prestado mais atenção em certas aulas na escola. Ela era uma artista, não uma engenheira.

Sou uma ressurreicionista.

O pensamento lhe ocorreu de repente, óbvio e estranho como sempre.

Ela se enfiou ainda mais debaixo da mesa. O dente não podia ter simplesmente desaparecido. Então, através de uma rachadura na pedra, sentiu uma brisa nos nós dos dedos. Havia uma abertura. O dente devia ter caído.

Ela se endireitou. Sentiu uma imobilidade gélida atravessar o corpo. Sabia o que teria que fazer agora. Teria que descer e pedir ao ocupante da câmara debaixo para entrar e procurar o dente. Uma extrema relutância a prendia ao chão. Tudo menos isso.

Tudo menos ele.

Será que ele estaria lá agora? Achava que sim; às vezes ela achava que podia sentir sua presença irradiando pelo chão. Devia estar dormindo — afinal, era madrugada.

De jeito nenhum ela bateria lá no meio da noite. O colar podia esperar até o dia seguinte.

Pelo menos esse era o plano.

Mas então ela ouviu: uma batida na porta. Soube logo quem era. Ele não tinha o menor escrúpulo em procurar por ela àquela hora. Era uma batida suave, o que a perturbou mais do que tudo — parecia íntima, secreta. Ela não queria ter nenhum segredo com ele.

— Karou? — chamou ele, delicadamente.

O corpo dela se retesou. Sabia melhor do que ninguém que aquela delicadeza não passava de um ardil. Não ia atender. A porta estava trancada. Ele que pensasse que ela estava dormindo.

— Estou com o seu dente — explicou ele. — Acabou de cair na minha cabeça.

Mas que droga. Ela não podia fingir que estava dormindo se tinha acabado de deixar cair um dente na cabeça dele. E também não queria que ele pensasse que estava fugindo dele. Droga, por que ele ainda a afetava daquele jeito? De cabeça erguida, com um ar sério e a trança balançando em um arco azul às suas costas, Karou foi até a entrada, ergueu a antiga barra transversal — que antes de mais nada era uma proteção contra ele — e abriu a porta. Estendeu a mão para receber o dente de volta. Tudo o que ele tinha que fazer era deixá-lo na palma da mão dela e ir embora, mas ela sabia — é claro que sabia — que não seria tão simples assim.

Com o Lobo Branco, nunca era.