17
Há intimidade na dor. Qualquer um que já confortou alguém que estivesse sofrendo sabe disso: a ternura impotente de quem consola, o abraço, os gemidos e o lento embalar, quando dois se tornam um contra o mesmo inimigo, a dor.
Karou não confortou Thiago. Não o tocou mais do que o necessário enquanto a dor invadia seu corpo. Mas ficaram sozinhos à luz de velas, ele seminu e subjugado, seu belo rosto sério e resignado, e embora de fato Karou tenha sentido o que esperava — um prazer cruel em lhe fazer passar por uma pequena parte da angústia que ele um dia lhe causara —, também sentiu algo mais.
Gratidão. Havia um novo corpo deitado no chão atrás deles, recém-conjurado a partir de dentes e dor, e, pelo menos daquela vez, a dor não tinha sido dela.
— Obrigada — falou, de má vontade.
— É um prazer — replicou Thiago.
— Espero que não. Seria doentio.
Ele deu uma risada cansada.
— O prazer não está na dor, mas em poupar você.
— Quanta nobreza. — Karou estava retirando os tornos e sentia o braço dele pesado em sua mão, os músculos tão fortes que ela tivera dificuldade em prender as braçadeiras, e estava sendo difícil soltá-las também. Ela se encolheu ao torcer seus tríceps de um jeito que não deveria, deixando uma marca feia. Ele recuou, e um pedido de desculpa escapou automaticamente dela. — Sinto muito. — Queria engolir as palavras de volta. Ele fez você ser decapitada, teve que lembrar a si mesma. — Na verdade, não sinto, não. Você mereceu.
— Imagino que sim — concordou ele, esfregando o braço. E, com um leve sorriso, acrescentou: — Agora estamos quites.
Uma breve risada, que lembrava mais um grito violento, escapou dela. Uma risada quase (apenas quase) sem alegria.
— Vai sonhando.
— Eu sonho, Karou. Karou.
A risada morreu rapidamente; ele dissera seu nome vezes demais, como se o reivindicasse. Ela começou a se afastar, carregando vários tornos, mas ele a deteve ao dizer:
— Eu pensava que, se pagasse os dízimos em seu lugar, poderia... reparar... o que fiz a você.
Karou o olhou fixamente. O Lobo, reparar?
Ele abaixou a cabeça.
— Eu sei. Não há como reparar o que fiz.
Posso pensar em uma maneira, ponderou Karou.
— Fico... Fico surpresa por você achar que precisa reparar alguma coisa.
— Bem... — Ele falava com suavidade. — Não tudo. Você não me deixou escolha, Karou, você sabe disso, mas eu podia ter feito as coisas de forma diferente, e disso eu sei. A evanescência... foi inaceitável. — Um olhar suplicante na direção dela. — Eu não respondia por mim, Karou. Estava apaixonado por você. E vê-la com... ele, daquele jeito... Você me deixou meio maluco.
Karou ficou vermelha, sentindo-se nua de novo. Pelo menos, pensou ela, lutando para manter a compostura, aquele corpo humano nunca tinha sido exposto aos olhos dele, ao contrário do que acontecera com seu corpo natural. Ainda assim, pelo jeito como ele a olhava, Karou deduziu que ele não se esquecera de nada que acontecera naquela noite no bosque.
Ela pôs-se a guardar os tornos na maleta, meio sem jeito.
— Tem uma coisa que eu sempre quis lhe dizer, mas achava que você não estava preparada para ouvir.
O tom da voz dele a alarmou. Soava... confessional.
— Eu realmente preciso terminar... — começou ela, mas o Lobo a interrompeu.
— É sobre Brimstone.
O efeito da menção a Brimstone foi o mesmo de sempre: pareciam mãos apertando seu pescoço; um ataque sufocante de pesar.
— Ele e eu tínhamos nossas diferenças — admitiu Thiago. — Isso não é nenhum segredo. Mas quando descobri que ele havia salvado você, que sua alma não estava perdida... Talvez você pense que fiquei furioso por ele ter me desafiado, mas nada podia estar mais longe da verdade. E agora... Acredite em mim quando digo que acordo todos os dias repleto de gratidão pela misericórdia de Brimstone. — Ele fez uma pausa. — Toda vez que olho para você, dou graças a ele.
Quem diria, agora ele resolveu que aprecia a misericórdia, pensou Karou.
— Bem, sorte sua esbarrar em outro ressurreicionista por aí.
— Não vou mentir. Quando a vi nas ruínas, quase caí de joelhos. Mas sorte é pouco para definir isso, Karou. Foi uma salvação. Eu estava rezando a Nitid, clamando por esperança, e quando abri os olhos e vi você lá... você... como uma linda alucinação. Achei que Nitid tinha me respondido fazendo chegar até mim a única pessoa que Brimstone treinara.
Karou não diria exatamente que Brimstone a treinara; dava a impressão de que ele a havia escolhido de propósito como sua sucessora, quando sabia que ele preferiria carregar o fardo sozinho até o fim dos tempos a ter que transmiti-lo a ela. Brimstone, Brimstone. Na maior parte do tempo ela aceitava — sabia que sim — que ele se fora, mas havia momentos em que era invadida de repente por uma certeza: de que a alma dele estava em estase, escondida, apenas esperando que ela a encontrasse.
Esses momentos eram pontos radiantes de esperança, mas logo passavam, sendo seguidos por uma culpa esmagadora: ao admitir para si mesma que só desejava ardentemente devolver seu fardo a Brimstone. Egoísta.
No fundo, ela se sentia feliz por Brimstone estar livre daquilo, descansando finalmente. Que outra pessoa carregasse aquele peso. Era sua vez — e quem o merecia mais do que ela? A feiura e o sofrimento, o desagradável fedor do poço trazido pelo vento, o isolamento e a fadiga, a dor. E, embora Brimstone não a tivesse exatamente treinado, ele lhe ensinara o suficiente para que ela conseguisse realizar a tarefa, ainda que com dificuldade. Ela estava ficando melhor, mais rápida — mais macilenta, mais esgotada —, e isso sem nenhuma ajuda de deuses, luas, nem de ninguém, muito obrigada. Karou disse a Thiago, com uma leve nota de rispidez na voz:
— Nitid não teve nada a ver com isso.
— Talvez não. Não importa. Só estou tentando agradecer.
Uma trêmula empatia cintilava nos seus olhos azuis gélidos. A intimidade daquele momento atingiu Karou agudamente — os dois sozinhos à luz bruxuleante, a pele desnuda dele —, e a náusea lhe voltou de súbito, forte e amarga como bile.
— De nada — respondeu ela, pegando a camisa de Thiago, pendurada no encosto da cadeira, e atirando-a para ele. — Dá para você se vestir?
Karou deu as costas de novo, tentando disfarçar a inquietação. O único som que se ouvia era o da corrente do turíbulo quando ela o pegou da mesa e o suspendeu em um gancho sobre o novo corpo de Amzallag.
O corpo estava deitado à sua frente, imenso e inerte. Monstruoso. Ela duvidava muito que Brimstone tivesse orgulho dela naquele momento, mas, como Thiago a persuadira a acreditar, aqueles eram tempos monstruosos, e os rebeldes precisavam maximizar o impacto de seu pequeno contingente.
Aquele pelo menos guardava alguma semelhança com o antigo Amzallag, sendo veado e tigre com torso de homem, mas era muito maior — as limalhas de ferro davam tamanho e peso ao corpo, e, apropriadamente, tinham sido retiradas das barras acima de Loramendi. Era imenso; nenhuma armadura caberia nele. Cada músculo se pronunciava, e a pele tinha um tom acinzentado — fruto do excesso de ferro. A cabeça era de tigre, com caninos tão compridos quanto facas de cozinha. Sem falar das asas.
Ah, as asas.
Era por causa das asas que os soldados vivos precisavam de novos corpos. Culpa de Karou. Tinha sido ideia dela vir... até ali. Ela olhou para fora, para a lua singular que a janela emoldurava. Será que ela era maluca? Burra? Talvez. Mas é que não dava para continuar se deslocando o tempo todo de um lado para outro de Eretz, escondendo-se em ruínas e túneis de minas e vasculhando os céus em busca de patrulhas de serafins. Ela teria enlouquecido, e o mais provável era que, se tivessem ficado, já teriam sido descobertos àquela altura. Ainda assim, Karou tinha que admitir que não havia pensado em todas as consequências.
O poço, principalmente.
Os soldados precisavam ir e vir pelo portal no céu. Precisavam de asas. Para chegarem até ali, aqueles que podiam voar haviam levado os que não podiam — indo e voltando diversas vezes, e os que eram grandes demais para serem carregados tinham sido mortos, suas almas depois colhidas e levadas. Karou nunca esqueceria aquele dia. Agora que estavam ali, os sem asas tinham sido relegados à função de guarda até que ela pudesse refazê-los, quando então poderiam se juntar às incursões a Eretz.
Era simples assim. Simples. Rá. Ela estremeceu só de olhar para aquela coisa assustadora ali no chão de seu quarto. O corpo anterior de Amzallag — o último de muitos que Brimstone fizera para ele — tinha sido jogado fora como uma roupa velha, para que Amzallag pudesse se tornar aquilo. Por um instante ela só pôde vê-lo como suas presas o veriam: o horror e a desesperança em saber que não havia como escapar; imaginou aquelas asas abertas, como se cobrissem toda a extensão do céu. Sentiu as mãos ficarem frias e úmidas. O que é que eu estou fazendo?
O que é que eu estou criando?
E... O que eu trouxe para o mundo humano?
Era como emergir de um sonho e vislumbrar a fria realidade por apenas uma fração de segundo antes que o sono a arrastasse de volta. O horror amainou. Ela estava dando armas a soldados, era o que estava fazendo. Se não, quem faria os serafins pagarem?
Quanto a tê-los trazido para o mundo humano, aquele lugar era remoto e esquecido; a chance de encontrarem alguém era quase nula. E, apesar de uma vozinha em sua mente insistir em sussurrar: Isso não é o suficiente, Karou, ela estava se acostumando a ignorá-la.
Respirou fundo. Agora só faltava guiar a alma de Amzallag para dentro de sua nova pele, bastando a fumaça para isso. Ela estendeu a mão para um incenso e se virou de volta para Thiago, que, felizmente, tinha vestido a camisa. Ele parecia muito cansado, com as pálpebras pesadas, mas conseguiu esboçar um sorriso.
— Tudo pronto? — perguntou ele.
Ela assentiu e acendeu o incenso.
— Boa menina.
Ela se irritou com as palavras e o tom carinhoso na qual foram ditas. Será que sou mesmo?, ponderou enquanto se ajoelhava para fazer renascer o morto.