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CINZAS E ANJOS

O céu do Uzbequistão, aquela noite.

O portal era uma fenda no ar. O vento o cortava nas duas direções, sibilando como o ar da respiração passando pelos dentes, e nos limites tremulantes do portal via-se o céu de um mundo revelando o do outro. Akiva observava as estrelas mesclando-se ao longo da fenda, preparando-se para atravessá-la. No outro mundo as estrelas de Eretz cintilavam, visíveis-invisíveis, visíveis-invisíveis, e ele fez o mesmo. Haveria guardas do outro lado, e ele não sabia se deveria revelar sua presença.

O que o esperava em seu mundo?

Se seus irmãos o tivessem denunciado como traidor, os guardas o prenderiam imediatamente... ou pelo menos tentariam. Akiva não queria acreditar que Hazael e Liraz pudessem ter desistido dele, mas os últimos olhares dos dois ainda estavam bem vivos em sua memória: a fúria de Liraz por sua traição, a revolta silenciosa de Hazael.

Ele não podia arriscar ser pego. Vivia assombrado por outro último olhar, mais penetrante e mais recente que os deles.

Karou.

Dois dias antes ela o havia deixado no Marrocos, e o olhar que lhe lançara antes de partir fora tão terrível que ele quase preferia que ela o tivesse matado. E a tristeza dela nem tinha sido o pior. O pior fora sua esperança, a inapropriada e rebelde esperança de que o que ele lhe dissera não fosse verdade, quando ele sabia com a mais absoluta e realista certeza que era.

Os quimeras tinham sido destruídos. A família dela estava morta.

Por causa dele.

A infelicidade de Akiva o consumia. Ia lhe corroendo aos poucos, e ele sentia a dor a todo instante, como se dentes o dilacerassem — a tristeza que o devorava por dentro, a verdade sombria do que tinha feito, atormentando-o como um pesadelo do qual não conseguia acordar. Naquele momento, Karou podia estar rodeada pelas cinzas de seu povo, sozinha nas ruínas escuras de Loramendi... ou pior, podia estar com aquela coisa, Razgut, que a levara de volta para Eretz. E o que aconteceria com ela?

Akiva devia ter ido atrás deles. Karou não entendia. O mundo para o qual ela estava voltando não era o mesmo de suas lembranças. Ela não encontraria nenhuma ajuda ou conforto lá — somente destruição e anjos. Patrulhas de serafins eram frequentes nas antigas terras livres agora, e os poucos quimeras restantes eram acorrentados e levados para o norte sob o chicote dos traficantes de escravos. Eles a veriam — quem não a veria, com seu cabelo lápis-lazúli, a deslizar sem asas facilmente pelo ar? Ela seria morta ou capturada.

Akiva precisava encontrá-la antes dos outros.

Razgut dissera a ela que conhecia um portal, e, considerando o que ele era — um dos Decaídos —, provavelmente conhecia mesmo. Akiva havia tentado localizá-los, mas sem sucesso, de forma que no final das contas não tivera opção a não ser voar em direção ao portal que ele próprio tinha redescoberto: aquele diante do qual estava agora. Qualquer coisa podia ter acontecido durante o tempo que ele tinha perdido sobrevoando oceanos e montanhas.

Ele decidiu ficar invisível. O dízimo era fácil. A magia não vinha de graça; exigia como pagamento a dor, que o antigo ferimento de Akiva supria em abundância. Seria muito simples trocá-la pela quantidade de magia necessária para apagá-lo do ar.

Então ele foi para casa.

A mudança na paisagem era sutil. As montanhas dali se pareciam muito com as montanhas de lá, embora no mundo humano as luzes de Samarcanda brilhassem à distância. Ali não havia nenhuma cidade, apenas uma torre de vigia no alto de uma das montanhas, com dois guardas serafins andando de um lado para o outro atrás do parapeito, e, no céu, a melhor forma de reconhecer Eretz: duas luas, uma brilhante e a outra um mero fantasma, quase invisível.

Nitid, a lua brilhante, era a deusa de quase tudo para os quimeras — menos dos assassinos e dos amantes secretos. Esses eram devotos de Ellai.

Ellai. Akiva se retesou ao vê-la. Ela bem podia ter-lhe sussurrado, Conheço você, anjo; afinal, ele não tinha vivido um mês em seu templo, bebendo de sua fonte sagrada, e até sangrado lá dentro quando o Lobo Branco quase o matara?

A deusa dos assassinos provou meu sangue, pensou ele. Será que tinha gostado, será que queria mais?

Ajude-me a encontrar Karou em segurança, e você terá até a última gota dele.

Ele voou para o sudoeste, o medo o puxando como um anzol, e ainda mais rápido à medida que o sol subia no céu e o medo se transformava no pânico de chegar tarde demais. Tarde demais e... o quê? Encontrá-la morta? Ele revivia a todo momento o instante da execução de Madrigal: o baque surdo de sua cabeça caindo e o retinir dos chifres batendo no chão e a impedindo de rolar para longe do cadafalso. E não era mais Madrigal, mas Karou, a protagonizar aquelas lembranças, a mesma alma em um corpo diferente e sem chifres para impedir que sua cabeça rolasse, apenas a improvável seda azul de seu cabelo. E embora seus olhos fossem agora negros em vez de castanhos, ficariam embotados da mesma forma, se revestiriam novamente do olhar pétreo dos mortos, e seria seu fim. De novo. De novo, e dessa vez para sempre, porque não havia mais Brimstone para ressuscitá-la. Dali em diante, morte significava morte.

Se ele não chegasse lá. Se não a encontrasse.

E enfim surgiram à sua frente: as ruínas que um dia foram Loramendi, a cidade-fortaleza dos quimeras. Torres tombadas, ameias destruídas, ossos carbonizados, toda a cidade um campo de cinzas. Até as barras de ferro que um dia se arqueavam sobre o lugar tinham sido arrancadas, como se pelas mãos dos deuses.

Akiva sentia como se estivesse sendo sufocado pelo próprio coração. Sobrevoou as ruínas, procurando um vislumbre de azul naquela vastidão de cinza e preto — o cenário de sua terrível vitória —, mas não encontrou nada.

Karou não estava lá.

Ele procurou durante todo aquele dia e também no seguinte, por Loramendi e além, perguntando-se furiosamente aonde ela poderia ter ido e tentando não passar a se perguntar o que podia ter acontecido com ela. Mas as possibilidades ficavam mais sombrias à medida que as horas passavam, e seus medos se transformavam em pesadelos inspirados em todas as coisas terríveis que ele já tinha visto e feito. Imagens assaltavam sua mente. Várias vezes ele levou as mãos aos olhos para afastá-las. Ela não. Karou tinha que estar viva.

Akiva simplesmente não conseguia sequer pensar na alternativa.