20

UMA TERRA DE FANTASMAS

Akiva, Hazael e Liraz caminhavam por entre os anjos mortos. Não falavam nada, só olhavam, em um turbulento silêncio de raiva. Aqueles corpos tinham sido dilacerados, como camundongos caçados por gatos. Akiva não os reconhecia — as aves carniceiras já tinham feito seu trabalho —, mas em vários rostos havia carne suficiente para se perceber a mutilação. Os sorrisos obscenos não eram vistos havia gerações, mas todos os serafins e quimeras os tinham bem gravados na memória. Eram a assinatura do Comandante.

Ele fizera aquilo com seus mestres serafins quando se erguera contra a escravidão, mil anos antes, e assim mudara o mundo. Era um poderoso e inconfundível símbolo de rebelião.

— Harmonia com as feras — disse Liraz, baixinho.

Akiva ficou tenso. Suas próprias palavras, atiradas de volta na sua cara. E o que ele podia dizer em resposta? Que aqueles mesmos soldados tinham deixado um rastro de aldeias incendiadas em seu caminho e não eram nem um pouco inocentes? Daria a entender que Akiva achava que eles mereciam aquilo. Não era o caso, mas ele também não conseguia sentir indignação e revolta, apenas uma tristeza profunda. Aqueles soldados tinham cometido seus crimes, e sofreram as consequências disso. Era a ordem natural das coisas.

Naquele ciclo de massacres, represália gerava represália, para sempre. Mas aquela não era hora de filosofar, não com aves carniceiras circulando no céu, esperando que eles fossem embora e as deixassem com seu banquete. Então ele guardou esses pensamentos para si.

O sol nascia, tocando com um brilho feérico os caules das plantas, e as folhas se abriam como asas ao sabor da brisa. Tinham muitos tons de verde e dourado, ainda estavam verdes — e nunca teriam a chance de amadurecer. Os soldados começavam a atear fogo ao campo, e as chamas se espalhariam rápido com aquele calor. Antes de o sol subir a pino as plantas já estariam crepitando, assim como os corpos. O fogo levava os mortos. Não havia funerais para soldados.

Um grito veio do alto:

— Vocês aí! O que estão fazendo?

Akiva inclinou a cabeça para trás. Os primeiros raios de sol matinais iluminaram seus olhos cor de âmbar, e o serafim no ar, ao ver quem ele era, ficou pálido.

— Perdão, senhor. Eu... Eu não tinha sido informado de que o senhor estaria aqui.

Akiva se ergueu no ar para ir ao encontro do serafim. Seus irmãos subiram logo atrás.

— Viemos com os reforços do cabo Armasin — explicou ele.

Sendo a maior guarnição das antigas terras livres, o cabo Armasin tinha enviado soldados para reforçar o pequeno contingente do sul, em resposta àqueles ataques.

O jovem líder da patrulha, cujo nome era Noam, parecia ligeiramente atordoado por se ver frente a frente com o Ruína das Feras.

— É bom tê-lo aqui, senhor — disse ele.

Pela segunda vez: senhor. Liraz soltou um pigarro. Akiva não era nenhum senhor. Embora a fama tivesse lhe conferido certo respeito, ele era um Ilegítimo, e seu posto continuava sendo o que sempre fora e sempre seria: baixo.

— O que descobriu? — perguntou Akiva.

O soldado estava com os olhos arregalados.

— A luta aconteceu embaixo do aqueduto, senhor.

Que estava bem atrás deles, uma estrutura antiga e gigantesca, com árvores brotando das fendas nas pedras de tal forma que o aqueduto parecia uma espécie de floresta aérea. Akiva sabia que devia ter sido construído por serafins, no início da primeira expansão do império, muitos séculos antes, quando os anjos chegaram àquela terra selvagem, cheia de tribos hostis e primitivas de feras, e a civilizaram.

Civilizar. A palavra era suave demais para exprimir todo o horror da escravidão e do aniquilamento moral que colocara os quimeras sob o jugo do império. O Comandante destruíra esse domínio, que no entanto ressurgira, e agora Akiva fazia parte daquilo.

— Uma emboscada — acrescentou Noam. — Eles foram mortos embaixo do aqueduto e depois amarrados ali.

Ele apontou para a mensagem vermelha pintada na elevada parte superior da construção.

Renascemos. Renascemos.

Akiva ficou olhando para as palavras. Quem?

— É possível que tenham sido os aldeões? — perguntou Liraz.

Noam olhou mais uma vez para os mortos.

— É uma aldeia de Caprina — declarou simplesmente.

Akiva entendeu: aquelas feras, com sua plácida aparência, jamais poderiam ter cometido tal ato, muito menos prendido os corpos no alto do aqueduto.

— Há inimigos mortos? — perguntou Akiva.

— Não, senhor. Somente pessoal nosso, e não há sangue nas armas.

Então eles não tinham desferido um único golpe em defesa própria? Eram soldados experientes que tinham sobrevivido à guerra.

— E ali embaixo, senhor. — Noam indicou a parte da estrada que seguia para o sul pelas colinas. — A caravana de escravos também foi atacada.

Akiva olhou naquela direção. A paisagem era pastoril: a suavidade dos vales, colinas escondendo-se umas atrás das outras como sombras de sombras, tudo tão sereno e tranquilo como o canto de um pássaro. E lá, demorando-se logo acima do horizonte, estava Ellai. Uma lua-fantasma, que a aurora quase fazia desaparecer. Eu vi o que aconteceu aqui, ela poderia ter dito, em provocação. E eu ri.

— E os escravos? — perguntou ele a Noam.

— Fugiram, senhor. Para a floresta. Os traficantes tiveram que... comer correntes.

— Comer correntes? — repetiu Hazael.

Noam assentiu.

— Os grilhões dos escravos.

Akiva olhou para seus irmãos esperando uma reação, mas eles não demonstraram nada. O que vocês fariam, gostaria de lhes perguntar, se alguém acorrentasse nosso povo?

Escravos eram considerados um mal necessário para o império, mas Akiva não pensava assim e não lamentava a perda de traficantes. Já soldados eram outra história, e ali oito tinham sido perdidos. O número de mortos estava aumentando. Tinham sido cinco ataques ao todo. Em uma única noite, em Duncrake, em Véu do Espírito, nos pântanos Iximi e ali, nas colinas Marazel, patrulhas de “limpeza” de serafins tinham sido pegas de surpresa, mortas, mutiladas e deixadas como repulsivos e horripilantes recados para o império.

Era pior que a guerra, pensou ele, sangrar até a morte enquanto longe dali seus companheiros davam vivas e erguiam as taças em brindes pela paz.

Paz, é claro.

Akiva olhou para baixo. Metade do campo já fora incendiado, e os primeiros soldados já tinham sido engolidos pelas chamas. Squalls subiam e depois desciam quase preguiçosamente, carregando os insetos atordoados pela fumaça que voavam em bandos perto do fogo.

— Senhor? — chamou Noam. — Sabe dizer o que foi que fez isso?

Espectros, pensou Akiva imediatamente. Ele já tinha visto bastantes campos de batalha inundados de mortos para saber que somente os maiores, mais monstruosos e mais anormais quimeras poderiam ter causado toda aquela matança. Mas os espectros já não existiam mais.

— Provavelmente alguns sobreviventes da guerra — respondeu ele.

— Há rumores — disse Noam, hesitante — de que os antigos monstros não estão realmente mortos.

Ou seja: o Comandante e Brimstone.

— Acredite — disse Akiva, sendo invadido por lembranças dos últimos momentos dos dois. — Estão mais do que mortos.

E o que aquele jovem soldado de olhos arregalados diria se soubesse quão ardentemente o herói conhecido como Ruína das Feras desejava que não estivessem?

— Mas e a mensagem? Nós renascemos. O que mais poderia significar, senão que eles voltaram?

— É um grito de guerra. Só isso.

O Comandante e Brimstone estavam mortos, sem qualquer chance de retornarem. Ele os vira morrer.

Mas... também tinha visto Madrigal morrer.

Sua certeza foi levemente abalada. Seria possível? Sua pulsação acelerou um pouco. Ele pensou no turíbulo que encontrara, na pequena palavra escrita em letras fortes: Karou. Se houvesse outro ressurreicionista, talvez aquele nome não fosse uma provocação tão grande quanto ele acreditara.

Não. Ele não podia se permitir ter esperança.

— Só havia Brimstone — disse Akiva, mais ríspido do que pretendia.

Liraz o observava com os olhos ligeiramente apertados. Será que ela sabia o que se passava na cabeça dele? Ela sabia sobre o turíbulo, é claro. “Chega de segredos”, dissera ela, e de fato não havia mais nenhum. Uma breve chama de esperança contava como segredo? Se sim, era um segredo que ele achava justo guardar para si.

Noam assentiu, aceitando suas palavras. Com um tom leve, como se apenas repetisse tolices em que não acreditava, disse:

— Outros dizem que são fantasmas.

Seus olhos, no entanto, traíam um medo real, e Akiva bem que o entendia. Afinal, as últimas palavras de Brimstone também lhe deram calafrios.

Ele se lembrou de como a voz de Joram tinha reverberado pela ágora de Loramendi no silêncio que se seguiu à destruição de toda a resistência. O Comandante e Brimstone estavam de joelhos; tinham sido mantidos vivos para testemunhar as mortes de todos os outros.

Todos os outros.

Você os condenou — sibilara Joram no ouvido do Comandante. — Vocês nunca iriam vencer. São animais. Acharam mesmo que poderiam dominar o mundo?

— Esse não era o nosso sonho — respondera o Comandante, com serena dignidade.

— Sonho? Poupe-me de seus sonhos de fera. Sabe qual é o meu sonho?

Como se alguém não soubesse que ele pretendia dominar toda Eretz.

A galhada de cervo do Comandante estava quebrada, lascada. Ele tinha sido espancado, e sustentava a cabeça erguida com visível dificuldade. Ao seu lado, Brimstone não conseguia fazer nem mesmo isso. Estava curvado para a frente, o peso do corpo apoiado na mão estendida, o outro braço tentando conter o sangramento de uma ferida no tronco, e seus grandes ombros subiam e desciam enquanto ele tentava respirar. Já não tinha muito tempo de vida, mas ainda assim conseguiu levantar a cabeça e responder.

Aquela voz. Foi a única vez que Akiva a ouviu, e o som — a sensação que provocava — jamais o deixaria. Profunda como o bater de asas de um caça-tempestades, parecia ter se alojado em sua mente e lá ficado desde então.

— Almas mortas sonham apenas com morte — disse o ressurreicionista ao imperador. — Sonhos pequenos para homens pequenos. É a vida a única capaz de crescer e preencher mundos. Ou temos a vida como mestre, ou a morte. Olhe só para você. É um senhor de cinzas, de restos carbonizados. Sua vitória o deixou imundo. Aproveite essa vitória, Joram, porque nunca vai conhecer outra. Você é o senhor de uma terra de fantasmas, e nunca será mais que isso.

Parecia uma maldição, pensou Akiva, e Joram reagiu com ardor.

— Sim, será uma terra de fantasmas, isso eu lhe prometo. Uma terra de cadáveres. Fera alguma andará por essa terra senão sob o peso de correntes, e tão açoitada pelo chicote que mal consiga erguer a cabeça!

A ira era o estado de espírito mais comum do imperador. Serafins eram seres ardentes, mas falava-se que Joram se inflamava como o núcleo de uma estrela. E isso lhe despertava tamanha voracidade — como se tivesse um inferno a alimentar — que, quando transformava-se em fúria, era terrível, fora do alcance de qualquer razão ou controle.

Ele matou Brimstone na mesma hora. Um só golpe; com certeza pretendia cortar-lhe a cabeça, mas não conseguiu, tão grosso era o pescoço da fera. Quando Brimstone desabou em uma torrente de sangue, Joram puxou sua espada com violência e a ergueu para mais uma tentativa. Com um urro de raiva, o Comandante, aquela criatura tão antiga, abaixou sua galhada quebrada e se lançou em direção ao imperador. Foram necessários dois soldados para derrubá-lo, o que só conseguiram depois que ele havia lanceado Joram com um galho denteado, atirando-o ao chão, sem matá-lo, sem nem mesmo feri-lo seriamente, mas roubando sua dignidade naquele dia de triunfo.

E, desde então, Joram vinha cumprindo a promessa que fizera: uma terra de fantasmas, de fato.

— Se fantasmas pudessem continuar a matança do ponto em que os vivos pararam — disse Akiva a Noam —, já estaríamos todos exterminados há muito tempo.

Noam assentiu mais uma vez, aceitando suas palavras como sabedoria. Então perguntou:

— Senhor? Temos novas ordens?

Liraz não conseguiu mais se conter:

— Não precisa chamá-lo de senhor — disse ela. — Você sabe muito bem o que somos.

Ilegítimos. Bastardos. Lixo.

— Eu… — gaguejou Noam. — Mas ele é…

— Esqueça isso — disse Akiva. — Não. Não temos novas ordens. Quais foram as últimas ordens? — Tinham acabado de chegar; ele não sabia. — Devemos rastrear os rebeldes?

Mas Noam balançou a cabeça em negativa.

— Não há o que rastrear. Eles simplesmente desapareceram. Devemos... Devemos responder.

— Responder?

— As mensagens, os sorrisos. O imperador... — Ele engoliu em seco; estava sendo cuidadoso, pesando as palavras que diria a Akiva, mas faltava-lhe convicção. — O imperador também quer mandar um recado.

Akiva ficou em silêncio, absorvendo aquilo. No cabo Armasin, ele tivera sorte: no norte, não havia restado ninguém para matar. Ali era outra história. Aldeões em fuga, escravos libertos, quimeras tentando chegar às Terras Distantes, onde acreditavam que encontrariam proteção, um caminho pelas montanhas para uma nova vida. E agora ele deveria caçá-los? Fazer deles um recado?

O Ruína das Feras. Ele deveria ser bom naquilo.

Akiva foi tomado por uma mistura de desespero, cansaço e desamparo. Não queria ser parte do recado de Joram.

A fumaça que soprava dos cadáveres no campo fez os anjos baterem suas asas e se afastarem dali, pousando no alto do aqueduto. Ao ver o sangue e as penas partidas onde os soldados tinham estado presos, Noam deixou que a emoção quebrasse sua impassibilidade marcial.

— Para que tudo isso? — perguntou ele com fervor, dirigindo-se ao céu, a ninguém. — Não consigo me lembrar. Acho... Acho que eu nunca soube. — Então fixou o olhar abruptamente em Akiva. — Senhor — implorou, esquecendo-se da repreensão de Liraz —, quando isso tudo vai acabar?

Nunca, pensou Akiva. Ele olhou nos olhos do jovem soldado e soube que, em pouco tempo, aquela parte dele que o fazia perguntar o porquê logo estaria morta, por obrigação — outra alma arrancada para dar lugar a um monstro. Exércitos precisam de monstros, como o velho corcunda lhe dissera no Marrocos, para fazerem seu terrível trabalho. Quem sabia disso melhor que Akiva? Ele olhou para Hazael e para Liraz. Seria muito tarde para os dois? Para ele mesmo?

Desesperado e cansado, desamparado e dominado pelo cheiro de carne queimada que vinha dos companheiros mortos, ocorreu-lhe algo em que já não pensava havia muito tempo, desde que Madrigal fora arrancada nua de seus braços no templo de Ellai.

Imaginou dois futuros para Eretz: um como Joram queria, e outro, como poderia ser.

Um tipo diferente de vida.