21
Sveva acordou com um sobressalto, sentindo um mal-estar repentino. Tinha caído no sono durante a vigia e agora tentava despertar depressa e se situar. Cada célula de seu corpo correu do sonho ao medo em um estalo; o ruído de um galho se quebrando e ela estava acordada, alerta, ouvindo.
Piscou algumas vezes. Amanhecia. Através dos galhos das árvores, via o céu pálido e suave. Quanto tempo tinha dormido? E o galho que se partiu — tinha ouvido mesmo aquilo ou não passara de um sonho?
Ficou ali sentada imóvel, prestando atenção a sua volta. Estava tudo silencioso. Depois de alguns minutos, ela relaxou. Estavam seguras. Sarazal ainda dormia; não precisava saber que ela caíra no sono. Já lhe dava bastante bronca mesmo sem isso. Com um suspiro, Sveva esticou as pernas dianteiras, que estavam dobradas sob o corpo. Eram esguias como as de um filhote de cervo, o pelo ainda ligeiramente coberto de manchas. Ela era a menor das duas garotas, a mais jovem. Era a que estava acostumada a se dar bem, e não a fazer sua parte.
Mas isso era antes.
Quando voltassem para casa, ela teria um comportamento impecável. Nada mais de sonhar acordada, ou de se esconder quando a mãe delas chamasse. A mãe delas. Como devia estar preocupada agora, assim como todo o restante da tribo. Será que sabiam que elas tinham sido capturadas por traficantes de escravos? As duas tinham acabado de sair para correr, para sentir um pouco o vento em seus cabelos depois de um dia de trabalho no tear. Tinha sido Sveva, a mais rápida, quem acabara levando as duas até muito longe, longe demais. Não dera escolha à irmã a não ser ir atrás dela. E Sarazal não poderia deixá-la — irmãs mais velhas não fazem isso. Era tudo culpa de Sveva.
Será que a tribo achava que elas tinham morrido? Sentia-se mal só de imaginar a tristeza que lhes causara. Estamos bem, pensou ela. Tentou se concentrar bastante nisso, desejando que a mensagem atravessasse a distância e alcançasse a mente de sua mãe. As mães conseguem sentir essas coisas, certo?
Estamos bem, mãe. Estamos livres. Fomos libertadas!
Mal podia esperar para contar como tinha sido, os espectros vindo do céu como a vingança materializada em corpos. E que corpos! Imensos, terríveis. Bem, um deles não era terrível: um alto, com chifres compridos e pontudos, tinha tirado uma faca de um anjo morto e colocado em sua mão; ele era bonito.
Ah, quem tinha uma história como aquela para contar? Ela falaria tudo bem rápido, antes que Sarazal pudesse se intrometer. Sveva era mesmo melhor em contar histórias; lembrava-se de todos os detalhes interessantes, como aquele momento em que os escravos cantaram juntos. Eram de tribos diferentes, mas todos sabiam a letra da balada do Comandante. O som de suas vozes unidas, pensou Sveva, era como o som do próprio mundo: terra e ar, folha e rio, e dentes e garras também. E rosnados, e gritos. Alguns escravos haviam assustado Sveva tanto quanto os traficantes, mas todos tinham seguido caminhos diferentes quando lhes tiraram as algemas. A maioria tinha fugido para o sul, carregando chicotes e espadas, prontos a avisar qualquer um que encontrassem. Sveva apertou com força a faca — era grande demais para sua mãozinha —, mas seu destino era o norte e o oeste.
Nossa casa. Estamos indo para casa.
Quando Sarazal melhorasse, quer dizer.
Sveva mordia a bochecha por dentro, preocupada com a perna da irmã — nem o cheiro das ervas do cataplasma que ela fizera conseguia se sobrepor ao fedor da ferida —, quando ouviu outro estalo. Sua pele ficou gelada de súbito, e ela olhou fixamente para a densa floresta, onde a noite ainda se agarrava às sombras das inúmeras árvores donzelas.
Provavelmente era apenas um skote, disse a si mesma, ou uma ave trepadora.
Certo?
Seu coração batia disparado; quem dera Sarazal estivesse acordada. Irmãs mais velhas podiam ser irritantes quando se queria apenas aproveitar o dia, mas traziam conforto quando você estava fugindo, no meio de uma floresta estranha, vulnerável em meio a sons e sombras, precisando de alguém que lhe dissesse que ia ficar tudo bem.
Sveva se levantou sem fazer barulho, as pernas de cervo estendidas à sua frente, seu silfídico torso humano erguendo-se devagar. Os Dama eram a menor das tribos de centauros, leves e flexíveis, conhecidos por sua velocidade. Ah, a velocidade; eram os mais rápidos de todos os quimeras, e, como Sveva era a mais rápida dos Dama, gostava de se gabar dizendo que era a criatura mais rápida do mundo. Sarazal dizia que isso não era necessariamente verdade, mas, fosse ou não, Sveva adorava correr, ansiava por isso. Poderiam já estar a meio caminho de casa agora, rumo às florestas altas de ezerin e às planícies Aranzu, cobertas de musgo, onde se estendia a tribo dos Dama, nômade e selvagem.
Estariam a meio caminho agora, se não fosse pela perna de Sarazal.
Ela ainda não tinha nem se mexido. Estava toda encolhida nas samambaias macias, de olhos fechados, o rosto relaxado e tranquilo, e, por mais que Sveva quisesse que ela acordasse, não conseguia chamá-la. Sarazal passara dias com tanta dor que nem conseguia dormir direito. Tudo por causa das algemas. Agora que a provação das duas tinha acabado, era nisso que Sveva concentrava seu ódio. Interessante como um ódio menor podia crescer dentro de um maior e tomar conta de tudo. Quando pensava nos traficantes de escravos agora — e, embora estivessem mortos, ela os odiaria para sempre —, era a imagem da algema de Sarazal, mais do que qualquer outra coisa, que fazia seu peito apertar e seu rosto contrair-se em uma expressão de fúria.
Como os quimeras tinham tantas formas e tamanhos diferentes, os traficantes carregavam todo tipo de algemas e usavam as que dessem — todos os tamanhos de anéis de ferro e correntes de aço, presos em pernas, cinturas, pescoços. Mas nunca nos braços. Tinha sido Rath, outro escravo — um apavorante garoto dos Dashnag, cujos longos caninos brancos faziam Sveva se encolher como uma flor murcha —, que lhes contara por quê.
— Um braço dá para cortar fora e escapar — dissera ele. — Não é impossível viver sem um braço.
Ah.
— Para mim é — replicara Sveva, com certo ar de superioridade.
Selvagens, lembrava-se de ter pensado, como se fosse por falta de sentimentos mais nobres que os Dashnag não se importavam muito com seus membros.
— Você diz isso porque não sabe o que lhe espera.
— E você sabe?
Ela não devia ter dito aquilo. Rath podia ter comido seu rosto com uma bocada só, mas ela não tinha resistido. Ele estava tentando assustá-la? Até parece que ela já não estava assustada o bastante.
Talvez, pensou, ela realmente não estivesse tão assustada assim naquele momento. Mas agora estava. Sentia o odor desagradável e doce de infecção que vinha de sua irmã e sabia que, quando a tocasse, ela estaria ardendo em febre. As ervas não estavam adiantando.
Sveva as encontrara — todas, até sana-febre. Quer dizer, ela estava quase certa de que era sana-febre. Bom, mais ou menos certa. Mas ela via a ferida na perna de Sarazal, pousada delicadamente no travesseiro de samambaias, e não parecia nem um pouco melhor. Passou os dedos pelas marcas doloridas que as algemas deixaram na própria pele e sentiu o peso da culpa pela sorte que não merecia.
Os traficantes tinham prendido Sveva pela fina cintura com uma algema de ferro que devia ter sido projetada para as pernas de um enorme touro-centauro, mas, quando chegaram a Sarazal — ela era a última da fila; que azar tinha sido, puro azar —, não encontraram nada que encaixasse e acabaram prendendo-a com um pedaço de ferro qualquer logo acima da articulação de sua pata dianteira esquerda. O metal cortara a pele, o machucado tinha inchado, e foi então que a algema improvisada fizera o verdadeiro estrago, cortando ainda mais fundo a pele já ferida, e rasgando cada vez mais a cada passo que ela dava. Depois de um tempo Sarazal estava mancando tanto que os traficantes a teriam deixado para trás se os espectros não tivessem aparecido. Rath dissera que eles teriam feito isso antes caso os Dama não fossem tão valiosos, e ele nem precisou lhe explicar que, se deixassem sua irmã ou qualquer um deles para trás, não seria vivo.
Mas os espectros tinham aparecido — vindos só as luas sabiam de onde, com asas como ela nunca vira antes, muito mais assustadores do que qualquer figura saída dos pesadelos —, e bem na hora. Sarazal mal conseguia andar, e elas não tinham se afastado muito, porque Sveva era pequena demais para carregar a irmã.
Ela suspirou. Não ouviu mais nenhum som vindo das sombras, o que era bom, mas as sombras estavam sumindo. Já era dia. Estava na hora de acordar Sarazal. Relutantemente, Sveva tocou o ombro dela. Como já esperava, a pele estava bem quente e, quando ela aos poucos abriu os olhos, não pareciam normais: tinham aquele brilho turvo dos doentes. Sveva sentiu o estômago se revirar com a culpa. Queria apoiar a cabeça da irmã no colo, pentear com os dedos seu cabelo cacheado e avermelhado e cantar para ela, não a balada do Comandante, mas uma música doce, que não falasse de ninguém morrendo. Contudo, apenas murmurou:
— Já amanheceu, Sara, hora de levantar.
Um resmungo.
— Não consigo.
— Consegue sim. — Sveva tentava soar alegre, mas um pânico desesperado crescia dentro dela. Sarazal estava muito mal. E se ela...? Não. Afastou o pensamento. Aquilo não podia acontecer. — É claro que consegue. Mamãe está esperando pela gente.
Mas Sarazal só choramingou de novo e voltou a se aninhar nas folhas de samambaia. Sveva não sabia o que fazer. Era sempre a sua irmã que estava no comando, mandando, planejando e convencendo. Talvez devesse deixá-la dormir mais um pouco, pensou, deixar a sana-febre agir.
Se é que aquilo era mesmo sana-febre. E se não fosse? E se estivesse fazendo mais mal do que bem?
Eram esses pensamentos que ocupavam sua mente quando ela ouviu uma voz atrás de si. Não houve nenhum galho partido para avisá-la — de repente estava bem ali, quase junto ao seu ouvido, fazendo-a sentir calafrios por todo o corpo.
— Vocês precisam ir embora.
Sveva se virou, brandindo a faca grande demais, e se deparou com Rath, o garoto Dashnag de caninos longos, semioculto nas sombras. Apesar de ainda ser um menino, ele era muito grande. Sveva respirou fundo, ofegando, vacilante de pavor. Rath lançou-lhe um olhar demorado, e Sveva não conseguia decifrar a expressão em seu rosto de fera. Ele tinha cabeça de tigre e olhos felinos que captavam a luz e brilhavam. Era um caçador, sempre à espreita, um carnívoro. Ela podia deixá-lo para trás facilmente se corresse, sabia disso... só que não podia, porque se corresse deixaria Sarazal para trás.
— O que está fazendo aqui? — exclamou ela. — Estava nos seguindo?
A voz de Rath era profunda e áspera.
— Estava procurando os espectros. Mas eles sumiram, e eu não contaria com eles para salvar vocês duas vezes.
Aquilo era uma ameaça?
— Deixe a gente em paz — disse ela, colocando-se na frente da irmã.
Rath deixou escapar um som de impaciência.
— Não é de mim que vocês precisarão ser salvas — disse ele. — Se estivesse observando o céu, você saberia.
— O quê? — O coração de Sveva retumbava. — Do que você está falando?
— Tem anjos vindo para cá. Soldados, não traficantes de escravos. Se quiserem sobreviver, vocês precisam ir embora agora.
Anjos. O ódio de Sveva se inflamou.
— Estamos escondidas aqui — insistiu ela. As copas das árvores formavam um manto contínuo vistas de cima, estendendo-se por quilômetros e quilômetros. Duas garotas Dama seriam como dois pontinhos de poeira. — Nunca vão nos encontrar.
— Eles não precisam ver para matarem vocês — disse Rath. — Veja com seus próprios olhos.
Ele apontou para um espaço entre os arbustos que, Sveva sabia, abria caminho para uma pequena elevação e uma cadeia de montanhas, com vista para as colinas ao redor. A garota deu uma olhada na irmã, que voltara a dormir, os lábios se movendo e as pálpebras agitadas em meio aos pesadelos. Rath fez outro som impaciente, e Sveva decidiu ir verificar. Contornou-o devagar, avançando de lado, seus cascos fendidos pisando nervosamente, e, depois que passou por ele, correu a toda velocidade até o topo da elevação.
Fumaça.
Do outro lado do vale, no meio do caminho que as levaria para casa, cerca de meia dúzia de colunas de fumaça negra se erguia da floresta de tempos em tempos. Abaixo da fumaça viam-se violentas labaredas de fogo, e acima, cintilando no ar como miragens de calor, serafins.
Eles iam queimá-las. Queimar aquela terra. Queimar o mundo.
Atordoada, ela voltou para perto de Rath.
— Viu? — perguntou ele.
— Vi — retrucou ela, com raiva. Com raiva dele, como se fosse culpa do garoto. Mas era melhor que o pânico que ela sentia pulsar logo abaixo da raiva. Ela tentou levantar a irmã, mas Sarazal resistiu.
— Não — disse ela, a voz fraca como a de uma criança. — Eu não consigo, não consigo.
Sveva nunca a tinha visto daquele jeito. Tentou de novo.
— Vamos, Sarazal, você consegue sim. Não tem jeito.
Mas Sarazal balançou a cabeça.
— Svee, por favor. — Ela contraiu o rosto e apertou os olhos. — Dói. — Era a primeira vez que ela admitia sentir dor. Sua voz saiu em um sussurro distante, profundo, suplicante. — Vá. Você sabe que não vou conseguir. Não vou culpá-la. Ninguém vai. Svee, Svee, talvez você seja mesmo a mais rápida do mundo. — Sveva tentou sorrir. Svee era seu apelido quando bebê. Ela sentiu um aperto no peito. — Então corra! — gritou.
Sveva a sacudiu.
— Vou deitar aqui e morrer com você, está me ouvindo? É isso o que você quer? Mamãe vai ficar uma fera com você! — Sua voz soava estridente, cruel. Ela precisava fazer a irmã se levantar. — E nem venha me dizer que no meu lugar você iria embora sozinha. Sei que não faria isso, e eu também não vou fazer!
Sarazal tentou se levantar, mas gritou de dor ao apoiar o peso do corpo na perna inchada, e desabou de volta no chão.
— Não consigo — sussurrou, com os olhos febris arregalados de pavor.
Então Rath deu um pulo. Sveva tinha quase se esquecido dele. Ela não viu o começo do salto, só o final, quando ele pousou na samambaia à frente delas, um pouso inacreditavelmente leve para seu tamanho, e levantou Sarazal, passando um dos seus grandes braços por baixo da barriga lisa de cervo dela, o torso humano preso firmemente ao seu ombro. Sarazal arfou, rígida de dor e medo, mas Rath não disse nada. Deu outro salto e se pôs em movimento, se afastando do fogo que chegava perto e do brilho radiante dos anjos sem nem sequer olhar para trás, em direção a Sveva.
Após um instante de entorpecimento e surpresa, ela o seguiu.