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O FANTASMA DOS DENTES

— Mas por que dentes? — perguntou Mik a Zuzana. — Juro que eu não consigo entender.

Zuzana, que caminhava pela calçada na frente dele, parou de repente e se virou para olhar para o namorado. Mik vinha puxando o carrinho com a marionete gigante dela e teve que se deter bruscamente para não atropelá-la. Ela o encarou, pequena mas altiva, o biquinho e as sobrancelhas franzidas rivalizando para ver qual sobressaía mais em sua expressão.

— Não sei por quê. Não é essa a questão. A questão é que ela esteve aqui. Em Praga.

Deixou o restante por dizer, o biquinho vencendo, de forma que por um instante seu rosto mostrou, sem reservas, como ela estava magoada. Karou — o “fantasma dos dentes”, era como a estavam chamando, sem saber que ela e a “garota da ponte” eram a mesma pessoa — aparentemente tinha roubado o Museu Nacional em algum momento de sua série de crimes. O noticiário local havia mostrado um curador enfiando uma pequena lanterna entre as mandíbulas de um tigre siberiano ligeiramente comido pelas traças.

— Como vocês podem ver, ela não levou os caninos, só os molares — dissera o homem, na defensiva. — Foi por isso que não notamos. Não temos nenhuma razão para olhar dentro da boca dos espécimes.

Estava na cara que o fantasma era Karou. Mesmo que a imagem de relance vista na filmagem da câmera de segurança não bastasse para identificá-la, Zuzana tinha uma fonte de informação inacessível às várias forças policiais do mundo: os cadernos de desenho de sua amiga. Todos os noventa estavam empilhados em um canto do quarto de Mik. Desde que Karou tinha idade suficiente para segurar um lápis, ela vinha desenhando aquela história de monstros e portais místicos e dentes. Sempre dentes.

Era uma boa pergunta, a de Mik. Por quê? Bem, Zuzana não fazia ideia. Mas ela tinha preocupações maiores no momento.

— Como Karou pôde vir aqui e nem falar com a gente? — perguntou ela.

Uma sobrancelha se erguia, furiosa, forçando o biquinho à submissão. Com suas botas plataforma e seu tutu vintage, o rosto feroz erguido, a maquiagem de boneca com círculos cor-de-rosa nas bochechas e os cílios postiços tremulantes, Zuzana era a perfeita “fada raivosa”, como Karou a apelidara.

Mik pôs as mãos nos ombros dela.

— Não sabemos pelo que a Karou está passando. Talvez estivesse com pressa. Ou sendo seguida. Sabe, poderia ser qualquer coisa, não é mesmo?

— É isso o que mais me irrita — retrucou Zuzana. — Pode ser qualquer coisa, e eu não sei de nada. Sou a melhor amiga dela. Por que ela não me contou o que está havendo?

— Não sei, Zuze — disse Mik, em uma voz suave. — Ela disse que está feliz. Isso é bom, não é?

Estavam no início da ponte Carlos, indo encontrar uma área para as apresentações do dia. Tinham chegado tarde naquela manhã, a ponte medieval já cheia de artistas e músicos, sem falar em uma boa parcela dos malucos apocalípticos do mundo. Mik observava, meio tenso, uma enorme banda de jazz passar lentamente com suas caixas surradas de instrumentos.

Zuzana não prestava a menor atenção.

— Argh! Nem me fale desse e-mail. Tenho vontade de matá-la, nem que seja só um pouquinho. Aquilo era uma charada? Referências a um filme do Monty Python? Castelos de areia? Tipo... hein? E ela nem mencionou Akiva. O que isso quer dizer?

— Não deve ser boa coisa — reconheceu Mik.

— Pois é. Afinal, eles ainda estão juntos? Ela falaria dele, não é?

— Bem, sim. Assim como você conta a ela tudo sobre mim, todas as coisas engraçadas que digo, e como fico mais bonito e inteligente a cada dia. Com emoticons e tudo...

Zuzana bufou com desdém.

— Claro. E sempre assino como Sra. Mikolas Vavra, com um coraçãozinho no pingo do i.

— Hum. Gostei disso.

Ela deu um soco no ombro dele.

— Ah, dá um tempo. Se algum dia você me pedir em casamento, nem pense que eu me identificaria como um adendo seu, igual a uma velha senhora assinando o cheque do aluguel em caligrafia perfeita como Sra. Nome do Marido...

— Mas você aceitaria, é o que está dizendo?

Os olhos azuis de Mik brilhavam.

— O quê?

— Pelo jeito que você falou, a única questão era saber como ficaria o seu nome, e não se aceitaria ou não.

Zuzana corou.

— Eu não disse isso.

— Então você não se casaria comigo?

— Que pergunta ridícula. Eu só tenho dezoito anos.

— Ah, então é uma questão de idade? — Ele franziu a sobrancelha. — Você não está falando de se entregar às loucuras da juventude, não é? Não vamos precisar dar um tempo só para você experimentar outros...

Ela cobriu a boca dele com a mão.

— Que horror. Nem fale uma coisa dessas.

Aliviado, Mike beijou a palma da mão dela.

— Que bom.

Ela se virou e continuou andando. Mik deu um puxão na imensa marionete para fazer o carrinho andar e a seguiu.

— Então — gritou, atrás dela —, só por curiosidade, sabe, puramente teórica, com quantos anos você vai começar a considerar propostas de casamento?

— Acha que vai ser fácil assim? — gritou ela de volta, por sobre o ombro. — Até parece. Vai ter desafios. Como em um conto de fadas.

— Parece perigoso.

— Muito. Então pense bem.

— Não preciso — disse Mik. — Você vale a pena.

E com isso o rosto dela se iluminou de alegria.

Conseguiram encontrar um espacinho ainda não ocupado no lado da ponte que dava para o Centro Histórico. Instalaram ali a marionete, que se erguia enorme com seu casacão preto como um guardião sinistro da ponte, um escuro contraponto ao grupo com túnicas brancas mais à frente. Uma aglomeração de um culto de anjos. Estavam ali à toa, acendendo suas velas de vigília e entoando cânticos — pelo menos até a polícia aparecer, dispersando-os por algum tempo. Eram perseverantes em acreditar que os anjos retornariam àquele lugar, ao cenário de sua mais dramática aparição.

Vocês não sabem de nada, pensou Zuzana com desdém, mas estava ficando cansada do seu senso de superioridade. Então ela tinha conhecido um dos anjos. E daí? Sabia tão pouco quanto todos os outros.

Karou, Karou. O que será que significava o fato de ela ter estado ali e nem ter passado para dizer um oi? E aquele e-mail! Sim, era absurdo, tão misterioso que ficava martelando na sua cabeça, mas... havia algo de muito estranho no que ela escrevera.

Então Zuzana teve um estalo: uma lembrança repentina.

Estou feliz... Estou feliz...

Karou não estava feliz. Zuzana de repente teve um mal-estar. Pegou o celular para ter certeza. Foi fácil achar o vídeo on-line; era um clássico. “Eu não quero ir na carroça!” Essa era a pista. Monty Python em busca do cálice sagrado: ela e Karou tinham passado por uma fase, aos quinze anos, em que provavelmente assistiram àquele filme umas vinte vezes. E lá estava, no final da cena “Tragam seus mortos”.

— Estou feliz... Estou feliz...

Uma cantilena desesperada. Aquilo era o que o velho dizia para convencê-los de que estava bem, logo antes de lhe acertarem a cabeça e atirarem seu corpo na carroça que levava as vítimas da peste. Caramba. Só mesmo Karou para se comunicar usando Em busca do cálice sagrado. Será que ela estava tentando dizer que estava em perigo? Mas o que Zuzana poderia fazer? Seu coração começou a bater acelerado.

— Mik — chamou. Ele estava afinando o violino. — Mik!

Sacerdotisa de um castelo de areia? Em uma terra de poeira e luz das estrelas?

Aquilo também era uma pista?

Será que Karou queria ser encontrada?