28
Havia tantos tipos diferentes de silêncio, pensou Sveva, apertando o rosto no ombro de Rath e tentando não respirar. Mas aquele era o pior. Era um silêncio do tipo “faça um barulho sequer e morra”, e, embora ela nunca tivesse passado por aquela experiência antes, percebeu instintivamente que aquele silêncio ficava mais carregado quanto maior fosse o número de pessoas sob o compromisso de mantê-lo. Era até possível confiar que você conseguiria ficar quieto, mas trinta e tantos estranhos?
Com bebês?
Estavam escondidos embaixo de uma caverna feita pela terra escavada em estações de cheia pelo riacho que passava na frente deles, salpicando seus cascos — e as imensas patas de Rath —, o burburinho da água cobrindo pelo menos alguns sons mais baixos, como choramingos e fungadas. Aliás, Sveva notou que não ouvia nada disso. Com os olhos fechados, poderia até achar que estava sozinha, se não fosse pelo calor de Rath, de um lado, e de Nur, do outro. A mãe Caprina segurava seu bebê junto ao corpo. Sveva a todo momento esperava que Lell fosse começar a chorar, mas a criança continuava quieta. O silêncio, pensou ela, era incrível: algo perfeito e frágil. Assim como vidro, caso se quebrasse nunca mais voltaria a ser igual.
Se Lell chorasse, ou se o casco de alguém derrapasse na margem, ou se algum som se elevasse acima do inocente murmúrio da água, todos morreriam.
E mesmo se a assustada criança dentro dela quisesse culpar Rath por estarem ali, não conseguiria. Ah, mas não por falta de vontade. Era bom ter alguém para culpar, mas o problema com Sveva e a culpa era que, se ela fosse tentar chegar à origem de tudo, só veria a si própria, correndo pelo vale à frente de Sarazal, o vento no cabelo, sem dar ouvidos aos pedidos da irmã para que voltassem. A culpa daquilo tudo não era de Rath. E mais: ela e a irmã provavelmente já estariam mortas se não fosse por ele. E os Caprina, bem, eles estariam morrendo agora mesmo. Naquele exato momento.
Como era terrível e estranho saber disso.
Se Rath não tivesse sentido o cheiro dos Caprina e os seguido, os alcançado e se juntado a eles, então aquele silêncio carregado não existiria; aquele mesmo ar estaria sendo cortado por gritos e balidos, e Lell, aquele doce e pequeno embrulhinho, estaria berrando, assim como todos os outros, em vez dos carneiros.
* * *
— Carneiros! — exclamou Hazael, rindo, e Akiva teve a impressão de que seu riso era de alívio.
Ele então viu que na ravina só havia carneiros, com sua lã densa e seus chifres curvos, nenhum Caprina, nenhum quimera sequer.
— Você e você. — Kala apontou para dois soldados. — Matem-nos. Todos os outros... — Ela se virou em um meio círculo, examinando a equipe. Pairava no ar, as asas largas a ponto de roçar as árvores inclinadas nas margens da ravina e soltar faíscas. — Vão e encontrem os donos.
* * *
Ao ouvir os berros dos carneiros, Sveva escondeu ainda mais o rosto no ombro de Rath. Ele havia convencido os Caprina a afugentar seu rebanho e voltar ao longo do leito do riacho, para saírem da ravina e encontrarem outra — em que estavam agora —, em busca de abrigo. Todos juntos, eles eram muitos, e os carneiros eram muito barulhentos, ingovernáveis demais. Não podiam arriscar suas vidas ficando com os animais. Bem que Rath tinha dito que o rebanho seria visto.
Agora os carneiros estavam morrendo.
Sveva agarrou com força a mão da irmã: estava frouxa e mole. Os berros dos carneiros eram terríveis, mesmo a distância, mas não duraram muito. Quando finalmente diminuíram de intensidade, ela imaginou sentir os anjos circulando no céu acima de suas cabeças. Anjos, caçando. E eram eles a caça. Ela apertou o punho de sua faca roubada, mas isso só a fez se sentir ainda mais ciente da própria pequenez, com aquela arma feita para os punhos grandes e brutos dos anjos.
Talvez ela pudesse usá-la para acertar um anjo. Qual seria a sensação? Ah, seu ódio fervia; ela quase ansiava por essa chance. Sempre odiara anjos, é claro, mas de uma maneira vaga e distante. Eles eram os monstros das histórias de ninar. Sveva nunca tinha sequer visto um até ser capturada. Por séculos aquela terra tinha sido segura — os exércitos do Comandante a protegiam. Que azar viver em uma época de insegurança! Agora, de repente, os serafins eram reais: algozes ardilosos, bonitos de uma maneira que tornava a beleza algo terrível.
E por outro lado havia Rath, que era bonito de um jeito que o tornava assustador... Bem, se não bonito, então pelo menos majestoso. Imponente. Que estranho se sentir confortada pela presença de um carnívoro, mas ela sentia. Mais uma vez, Sveva notou que abria mão de um pouco de sua superficialidade; desde que fora levada como escrava, seu mundo se ampliara à força. Ela vira serafins e espectros; tinha visto mortos e sentido seu cheiro, e naquele mesmo dia, só naquele dia, tinha aprendido mais sobre os povos do que em todos os seus catorze anos de vida. Primeiro Rath, depois os Caprina: criadores de carneiros que ela antes chamava de feras criadoras de gado e, se lhe fosse dada a chance de escolha, teria deixado que se virassem sozinhos. Nur fizera um cataplasma para Sarazal e lhe dera especiarias misturadas com água, na tentativa de fazer diminuir a febre. Eles tinham lhe dado comida, e deixado que carregasse por um tempo a pequena Lell, com seu suave cheiro de grama, uma perna de cada lado do tronco de Sveva, os braços em volta de sua cintura, onde, até poucos dias antes, havia um grande grilhão preto.
Sveva mantinha os olhos fechados. Seu rosto estava apoiado no ombro de Rath, seu quadril imprensado contra o de Nur, e o silêncio os mantinha juntos. Era o pior tipo de silêncio, mas a proximidade era boa. Eles não eram seu povo, mas... eram, e talvez isso significasse que qualquer um podia fazer parte de qualquer povo, o que era um bom pensamento a se ter no momento em que o mundo parecia desabar. Sveva se perguntou se alguma dia voltaria para casa, para seus pais, e contar.
Tentou rezar, mas, tendo passado toda a sua vida rezando apenas à noite, tinha a sensação de que as luas não eram grandes protetoras quando os anjos decidiam caçar de dia.
No fim, acabou não sendo Lell quem os entregou, mas Sarazal.
Ela acordou de repente, sua mão mole subitamente ganhando força e se soltando da de Sveva. A febre tinha baixado; o cataplasma e os temperos de Nur haviam funcionado. Os grandes olhos escuros de Sarazal, quando se abriram, estavam bem mais vivos do que quando Sveva os vira pela última vez. Só que... ao se abrirem, a primeira coisa que viram foi o rosto assustador de Rath, a poucos centímetros do dela.
Então Sarazal abriu a boca e gritou.