31
Akiva podia ter passado aquela noite sem fogueira no acampamento. Já vira fogo suficiente por um dia: o céu ainda estava coalhado de fumaça das chamas que tinham ateado para expulsarem os quimeras fugitivos da segurança da floresta. Quando ergueu os olhos, não viu uma única estrela. Mas uma fogueira era a parte central e imprescindível de um acampamento, seu ponto focal. Os soldados se reuniam em volta do fogo para limpar suas lâminas, comer e beber, e, embora estivesse sem apetite, sede ele tinha. Tinha bebido seu terceiro jarro d’água, mergulhado em pensamentos tão sombrios quanto o céu, quando uma voz chamou sua atenção.
— O que vocês estão fazendo?
Era uma pergunta agressiva, vinda de Liraz. Akiva levantou a cabeça. Ela estava do outro lado da fogueira, a luz das chamas a cobrindo de um brilho lúrido.
— O que acha? — retrucou um soldado da Segunda Legião que Akiva não conhecia.
Ele estava sentando com outros dois. Quando Akiva viu o que seguravam — o que estavam prestes a fazer —, cerrou os punhos de raiva.
Ferramentas de tatuagem: bastava uma faca e um tubo de tinta para se registrar mortes na pele.
— Acho que você vai aumentar a sua contagem — respondeu Liraz —, mas não pode ser isso, claro que não; afinal, nenhum soldado que se preze marcaria o dia de hoje nas mãos.
Hoje. Hoje. O que a patrulha de Liraz fizera naquele dia? Akiva não sabia. O olhar dela, quando ele e Hazael a encontraram após seu dia também sombrio, parecia desafiá-lo a perguntar, mas ele não queria saber. Alguns integrantes do grupo dela estavam feridos — marcas de açoite, mordidas. Nada sério, mas revelavam o suficiente. Akiva também não havia contado o que fizera horas antes naquela ravina a sudeste dali. Ele e Hazael não tinham nem conversado a respeito, mal trocando olhares que confirmavam o que havia acontecido.
A questão é que a contagem era para mortes em batalha, para soldados assassinados. Não para cidadãos comuns em fuga.
— Eles estavam armados — alegou o soldado, dando de ombros.
— Ah, e isso basta para o exército geral? Um escravo com uma faca já se torna um oponente importante? Quantos desses aí revidaram? — perguntou ela, apontando para as mãos dele, para todas as linhas pretas em seus dedos. — Algum?
O soldado se levantou de repente. Era uns trinta centímetros mais alto que Liraz, mas, se achava que isso lhe daria alguma vantagem, logo aprenderia com seu erro. Akiva ficou de pé também — não porque achasse que a irmã precisava de ajuda, mas por se surpreender com a raiva dela.
— Minhas marcas foram merecidas — disse o soldado, aproximando-se dela, altivo.
Liraz não recuou. Por entre os dentes trincados e com amargo desprezo, disse:
— Hoje não.
— E quem é você para decidir?
Os lábios dela se repuxaram, mostrando os dentes em um sorriso maldoso.
— Pergunte por aí.
Talvez tenha sido o sorriso, ou algo que viu nos olhos dela, mas o soldado hesitou em seu ar de valentão.
— Isso deveria me assustar?
— Bem, eu estou com calafrios — intrometeu-se Hazael, se aproximando. — Posso lhe contar algumas histórias, se quiser mesmo saber. Eu a conheço desde pequeno.
— Que sorte — disse um dos outros, o que despertou algumas risadas idiotas.
— É uma sorte mesmo, eu sei. — Hazael estava sendo sincero. — É bom ter alguém por perto para salvar a sua vida. Foram quantas vezes, Lir? Quatro?
Liraz não respondeu. Akiva se colocou ao lado deles.
— Fazendo novos amigos, Lir?
— Aonde quer que eu vá.
Akiva dirigiu-se aos outros soldados:
— Vocês sabem que ela está certa. É uma desonra orgulhar-se do trabalho de hoje.
— Estou só seguindo ordens — defendeu-se o soldado, que ficara desconfortável na presença de Akiva.
— Vocês receberam ordens de gostar do que fizeram?
— Vamos — disse um dos outros, puxando o amigo pelo cotovelo; enquanto se retiravam, Akiva e seus irmãos ouviram alguns resmungos de “Ilegítimos”.
Liraz gritou para eles:
— Se eu vir tinta fresca em algum de vocês amanhã, vou arrancar seus dedos.
O valentão soltou uma gargalhada cética e olhou para trás.
— Não me provoque — completou ela.
— Não a provoque — disse Hazael. — Por favor. Acho que ela ficaria um pouco feliz demais com uma coleção de dedos.
Depois que eles se afastaram, Liraz se sentou. Olhou de esguelha para Akiva.
— Não preciso da ajuda do Ruína das Feras para discutir com alguém.
Hazael ficou ofendido.
— E quanto a mim? Tenho quase certeza de que foi de mim que eles ficaram com medo.
— Claro, porque nada assusta mais do que ficar alardeando quantas vezes sua irmã salvou sua vida.
— Bem, eu não falei quantas vezes salvei a sua. No momento estamos empatados, não?
— Eu não estava tentando ajudar — interrompeu Akiva. — Só concordando com você. — Ele hesitou, e então perguntou: — Liraz, o que aconteceu hoje?
— O que você acha? — foi a única resposta dela.
O que ele achava é que haviam cruzado com alguns dos escravos fugidos da caravana e, como o soldado dissera, cumprido as ordens. Pelo modo como Liraz olhava para a fogueira, Akiva teve a impressão de que ela não tinha gostado nada da tarefa, mas ele não esperaria o contrário. Ela podia se orgulhar de uma batalha bem travada, mas nunca de um massacre. A questão era o quanto ela estava comprometida em seguir ordens. E... será que ela o surpreenderia, assim como Hazael?
Akiva olhou para o irmão e viu que Hazael o olhou de volta. Ficaram ali se entreolhando por um tempo, por sobre a cabeça da irmã, finalmente admitindo o que tinham feito naquele dia na ravina.
Ou, mais exatamente, o que não tinham feito.
Quando Akiva ouvira o grito — breve, entrecortado, inequívoco —, Hazael estava mais próximo do local de onde viera o som do que ele. A distância não era grande, mas ainda assim foi Hazael quem reagiu primeiro, dobrando as asas de repente e mergulhando em direção ao leito rochoso do riacho, com as pernas flexionadas em posição de prontidão, caso precisasse levantar voo de novo. Meio segundo depois Akiva estava ao seu lado, e viu o que ele via: um grupo trêmulo de criadores de gado, apavorados e encolhidos em uma concavidade na ravina.
Os Caprina eram uma das tribos mais dóceis de quimeras, tão inadequados para a luta que eram dispensados do exército. O fato é que muitas tribos quimeras não davam bons soldados: eram pequenos, ou não tinham um tipo físico muito apropriado para empunhar armas, ou eram aquáticos, ou tímidos, ou mesmo grandes, lentos e desajeitados demais. As razões eram tantas quanto o número de tribos, o que explicava por que Brimstone passara tanto tempo em seu trabalho: vários quimeras simplesmente não eram feitos para lutar, e com certeza não para lutar contra serafins.
A principal força do exército sempre saíra de algumas dezenas de tribos mais selvagens, e foi com surpresa que Akiva reconheceu um deles no meio daquele grupo. Um Dashnag entre os Caprina. Pequeno, ainda jovem, mas mesmo os menores Dashnags eram criaturas brutais, embora aquele estivesse carregando uma esguia jovem cervo-centauro em seus braços fortes — a jovem cobria a própria boca; devia ter sido ela quem gritara, e seus límpidos olhos de cervo pareciam incrivelmente grandes em seu rosto pequeno e doce. Outra garota cervo estava encolhida de medo junto ao garoto Dashnag, e, embora Akiva não pudesse saber precisamente o que reunira aquelas criaturas naquele momento, o quadro era simples e pintava em escala reduzida o que os anjos tinham feito com Eretz: graças ao terror, tinham conseguido que os povos se unissem contra eles.
Tudo isso em um instante. O garoto Dashnag então colocou a jovem cervo de lado, com cuidado. Havia medo em seus olhos, mas ele estava disposto a defender aquele grupo. Akiva tinha suas espadas nas mãos, mas não queria usá-las.
Não precisamos ser assim, pensou ele.
— Haz... — começou.
Seu irmão se virou em sua direção. Parecia confuso, estreitando os olhos.
— Que estranho — disse ele, interrompendo Akiva. — Eu podia jurar que tinha ouvido alguma coisa aqui embaixo.
Akiva levou um segundo para entender. Então uma onda de alívio — e gratidão — o invadiu.
— Eu também — disse Akiva, com cautela, esperando ter interpretado corretamente o irmão.
O garoto Dashnag os observava com atenção, cada músculo preparado para saltar. Os Caprina e as duas garotas Dama tinham os olhos arregalados, sem piscar. Um bebê começou a resmungar — um bebê —, e sua mãe o segurou com mais força.
— Deve ter sido um pássaro — arriscou Akiva.
— Um pássaro — concordou Hazael.
E então... deu as costas aos fugitivos. Entrou no riacho, espirrando água, casualmente e até de maneira um pouco cômica, e se abaixou para pegar uma das flores que cresciam de caules frágeis à beira d’água, enfiando-a em um buraco de sua cota de malha. Ainda estava lá.
Só à noite, no acampamento, ele a tirou. Entregou a flor a Liraz, fazendo Akiva ficar tenso, temendo que ele lhe contasse que tinham poupado o equivalente a uma vila inteira de quimeras, incluindo um Dashnag, que, embora fosse só um garoto, certamente se tornaria um soldado em breve. O que ela acharia disso? Mas Hazael disse apenas:
— Trouxe um presente para você.
Liraz a pegou, olhou para a flor e depois para Hazael, impassível. E então a comeu. Mastigou a flor e a engoliu.
— Hum — fez Hazael. — Que forma diferente de se receber uma flor.
— Ah, quer dizer que você anda distribuindo flores por aí?
— Sempre — respondeu ele. E provavelmente era verdade. Hazael tinha um jeito de aproveitar a vida apesar das muitas restrições sob as quais viviam por serem soldados e, o que era pior, por serem Ilegítimos. — Tomara que não seja venenosa — completou com bom humor.
Liraz deu de ombros.
— Existem maneiras piores de morrer.