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COMEMORAÇÃO

Karou era boa em várias coisas, mas dirigir não era uma delas. Ela ainda nem tinha idade para tirar carteira, o que agora lhe parecia engraçado. Não sabia sobre a legislação no Marrocos, mas na Europa era preciso ter dezoito anos para dirigir, e ainda faltava um mês para isso acontecer — isto é, a não ser que contasse suas duas vidas juntas. Devia ter pedido um certificado, pensou enquanto a velha caminhonete azul que usava para buscar suprimentos para a casbá pulava e derrapava pela estrada.

Um grande solavanco deixou o veículo apoiado nas duas rodas laterais, suspenso por um momento antes de bater de volta no chão com um impacto que fez Karou pular uns trinta centímetros no ar. Uff.

— Desculpe! — cantarolou ela por sobre o ombro, com uma falsa doçura.

Ten estava na parte de trás, escondida dos olhos humanos. Karou mirou em outra lombada.

— Se não quisesse estar aqui, já teria ido embora — dissera ela a Thiago antes de sair, com a mulher-lobo a tiracolo, apesar de seus protestos. — Não preciso de uma carcereira.

— Ela não é uma carcereira — replicara ele. — Karou, Karou. — A intensidade de seus olhos era mais irritante que nunca. — Só não consigo suportar a ideia de você ir sozinha. Faça o que estou lhe pedindo. Se alguma coisa acontecesse a você, eu estaria perdido.

Não nós estaríamos perdidos. Eu estaria.

Eca.

É claro, podia ser pior. O próprio Thiago poderia ter ido, e ela passara por um breve momento de tensão, receando isso. Mas, como ele estava aguardando o retorno das Sombras Vivas de sua missão, decidira esperar na casbá.

— Traga algo para comemorarmos — dissera ele. — Se puder.

Os pelos em sua nuca se arrepiaram.

— O que estamos comemorando?

Em resposta, Thiago apontou para seu estandarte e sorriu. Vitória e vingança.

Certo.

Então, perguntava-se Karou, o que se leva para uma comemoração de vitória e vingança? Birita? Seria difícil encontrar isso no Marrocos, e ainda bem. Álcool era a última coisa que ela daria aos soldados.

Bem, talvez não a última.

Quando chegou na rua principal longa e empoeirada de Agdz, que lembrava mais o Velho Oeste do que as Mil e uma noites, ela evitou a loja em cuja vitrine recordava-se de ter visto rifles. Não queria correr o risco de que Ten, mesmo escondida, visse aquilo e perguntasse o que eram.

Não seriam um ótimo presente para a comemoração? Sem dúvida.

A questão das armas estava sempre presente na mente de Karou. Ao pensar nisso, levou a mão à barriga, às três pequenas cicatrizes a lembravam das balas que um dia rasgaram sua pele, no porão de um navio em São Petersburgo. Lá, em torno dela, meninas e mulheres, com suas bocas desdentadas, sangravam e choravam e corriam.

Karou odiava armas, mas sabia o que podiam representar para a rebelião. Mil vezes pensara em contar a Thiago sobre essa tecnologia humana fatal, e mil vezes desistira. Por várias razões, a começar pelos seus sentimentos a respeito do assunto e pelas pessoas com quem teria que negociar para consegui-las. A situação já não estava bem ruim mesmo sem traficantes de armas envolvidos? Mas isso tudo seria suportável se não fosse pela razão mais importante, à qual ela sempre voltava.

Brimstone nunca levara armas para Eretz.

Só lhe restava imaginar qual teria sido o motivo, mas seu palpite era simples: porque daria início a uma corrida armamentista, acelerando absurdamente o ritmo da matança, o que era a última coisa que ele gostaria. Brimstone lhe dissera — para seu eu Madrigal —, nos últimos momentos antes de ela ser executada, que, desde muitos séculos antes, ele só vinha lutando contra a maré, tentando manter seu povo vivo até que outra maneira pudesse ser encontrada, uma mais verdadeira. Um caminho para a vida, para a paz.

Vida e paz. Vitória e vingança.

E esses dois binômios nunca se encontrariam.

Na cidade, Karou comprou caixotes de damascos, cebolas e abobrinhas. Adaptando-se aos hábitos locais, ela usava um hijab de algodão cobrindo o cabelo azul, e uma djellaba de manga comprida com uma calça jeans. Não chegariam a confundi-la com uma marroquina, mas, com seus olhos pretos e seu árabe perfeito, também não achariam que fosse ocidental. Tomando cuidado para não deixar que vissem seus hamsás, ela comprou tecidos, couro, chá e mel, amêndoas e azeitonas e tâmaras secas. Ração para as galinhas e pão pita. Carne vermelha marmorizada — não muita; para não estragar. Praticamente toneladas de cuscuz — sacos tão grandes que ela mal conseguia levantá-los, mas ainda assim teve que dispensar ajuda; afinal, havia um monstro com cabeça de lobo escondido na traseira da caminhonete. Muito obrigada, Ten.

A uma mulher com ar indagador que trabalhava para um organizador de passeios turísticos, ela explicou:

— Turistas famintos.

De fato. Karou percebeu que literalmente comprara comida para um pequeno exército, e não conseguia nem achar graça disso.

Não parava de pensar nas esfinges, e no que deviam estar fazendo.

Isso fez com que sua vontade de pensar em algo para levar para a comemoração dos soldados praticamente sumisse. Jogou uma garrafa de água para Ten e fechou a porta traseira do carro. Saindo da cidade, viu uma loja que a fez reconsiderar. Tambores. Tambores tribais berberes. Algumas vezes, no passado, os soldados tocavam tambores nos acampamentos militares. Cantavam também. Ninguém nunca cantara na casbá, mas lembrou-se de Ziri e Ixander brincando no pátio, daqueles momentos de risadas do qual não participara, e comprou dez tambores. Depois dirigiu pelo longo caminho de volta enquanto a luz do dia sumia.

Estavam descarregando a caminhonete quando as Sombras Vivas voltaram.

* * *

— Pensei que as Sombras Vivas fossem as Sombras que morreram — comentou Liraz.

Tinham recebido notícias de Thisalene, e Akiva ainda estava meio zonzo. O horror, a quantidade de mortos, a ousadia do ato. A tolice do ato. Atacar tão perto de Astrae era atacar a crença da santidade do próprio império. Será que aqueles rebeldes sequer sabiam o que haviam provocado?

Hazael soltou um suspiro longo e cansado.

— Sou só eu, ou vocês também notaram que os quimeras não gostam muito de ficar mortos?

— Bem, pelo menos isso temos em comum com eles — disse Liraz.

— Temos mais do que isso em comum — afirmou Akiva.

Liraz se virou para ele.

— Com você, principalmente — provocou Liraz. Ele achou que a irmã estava sendo sarcástica em relação a viver em “harmonia” com as feras, mas ela abaixou a voz e acrescentou: — O costume de ficar invisível, por exemplo?

Akiva gelou.

Ela sabia o que ele vinha fazendo nas últimas noites, ou só estava falando do encanto de forma geral? Liraz ficou olhando para ele por um tempo, e parecia haver algo escondido naquele olhar, mas, quando ela continuou, foi só para dizer:

— Se nosso pai soubesse que você pode fazer isso... — Ela encerrou a frase com um assovio. — Poderia ter sua própria Sombra Viva.

Akiva olhou em volta. Não gostava de falar sobre isso no acampamento — sua magia, seus segredos. Mesmo chamar o imperador de “pai” já era passível de punição, primeiro porque o uso do seu título honorífico era obrigatório por lei, e em segundo porque os Ilegítimos não tinham o direito de reivindicar a paternidade de Joram. Eles eram armas, e armas não tinham pai, nem mãe, e, se uma espada pudesse reivindicar seu criador, seria o ferreiro, não a mina de onde fora retirado o metal de que era feita. É claro que isso não impedia Joram de se vangloriar do número de “armas” que tinha saído de sua “mina”. Os intendentes mantinham um registro. Mais de três mil soldados bastardos nascidos no harém.

Restavam pouco mais de trezentos dos três mil soldados, e a maioria das mortes eram recentes.

Akiva viu que não havia ninguém por perto que pudesse ouvi-los.

— Você também poderia fazer — ele lembrou a Liraz.

Ele ensinara aos irmãos o encanto de invisibilidade para que pudessem entrar no mundo humano e ajudá-lo a queimar as marcas de mão nas portas de Brimstone. Os dois de fato conseguiam fazê-lo, embora com dificuldade, e não por muito tempo.

Ela fez um som de nojo.

— Não, obrigada. Prefiro que minhas vítimas saibam quem as matou.

— Para que possam sonhar com seu belo rosto por todo o descanso eterno — replicou Hazael.

— É uma bênção morrer pelas mãos de alguém tão belo — retrucou Liraz.

— Então isso não inclui Jael — observou Hazael.

Jael. Akiva olhou para o céu. O nome era um doloroso lembrete.

— Não. Pelos deuses da luz. — Liraz estremeceu. — Não há bênção que possa ajudar as vítimas dele. Sabe, tenho duas razões para gostar de ser Ilegítima, e as duas são Jael.

— Que razões?

Akiva não conseguia imaginar por que alguém, principalmente a irmã, ficaria feliz em ser uma bastarda do imperador.

Os Ilegítimos eram as mais eficazes e menos reconhecidas de todas as forças do império. Nunca podiam comandar, para que não aspirassem a nada mais alto que seus postos, e serviam apenas para aumentar as fileiras de soldados, emprestados aos regimentos da Segunda Legião para fazer o trabalho sujo. Não recebiam aposentadoria, pois esperava-se que servissem até morrer, e não tinham permissão de casar, ter filhos ou terras, ou mesmo de morar em outro lugar que não os alojamentos. Era uma espécie de escravidão. Não tinham direito nem a um funeral, sendo apenas cremados em urnas comuns, e, como seus nomes eram mais emprestados do que deles de fato, considerava-se desnecessário gravá-los em uma lápide ou placa. O único registro de vida que um Ilegítimo deixava era seu nome riscado da lista dos intendentes, para que pudesse ser dado a um novo bebê choramingante que logo seria arrancado dos braços da mãe.

Viva sem ser notado, mate quem lhe ordenarem matar e morra no anonimato. Esse poderia ser o lema dos Ilegítimos, mas não. O verdadeiro era: Sangue é força.

— Por ser Ilegítima — explicou Liraz, contando a primeira razão no dedo —, nunca servirei sob o comando de Jael.

— Uma boa razão — concordou Akiva.

Jael era o irmão mais novo do imperador, e o comandante do Domínio, a legião de elite do imperador, fonte de infinita amargura para os bastardos. Qualquer Ilegítimo superaria um soldado do Domínio em uma luta ou — se chegassem a isso — combate, mas ainda assim os soldados do Domínio eram considerados superiores em tudo. Vestiam-se com elegância e recebiam provisões financiadas pelos cofres das mais importantes famílias do império — que preenchiam as fileiras da legião com seus segundos e terceiros filhos e filhas —, além de terem sido ricamente recompensados ao final da guerra, recebendo de presente castelos e terras após a divisão das terras livres.

Uma meia-irmã bastarda mais velha chamada Melliel ousara perguntar a Joram se os Ilegítimos receberiam também uma parte. A resposta do pai deles, dissimuladamente fazendo que até mesmo sua recusa fosse uma forma de se gabar de sua virilidade, fora:

— Não há castelos suficientes em Eretz para todos os meus bastardos.

Ainda assim, apesar de todos os benefícios que os soldados do Domínio tinham, eles serviam ao bel-prazer de Jael, e o bel-prazer de Jael era, pelo que se dizia, algo horripilante.

— Continue — disse Hazael. — O que mais?

Liraz ergueu mais um dedo.

— Em segundo lugar, por ser Ilegítima, nunca me deitarei com Jael.

Akiva olhou para a irmã, perplexo. Era a primeira vez que a ouvia fazer alguma referência a sua sexualidade, mesmo que de maneira oblíqua. Ela vestia sua ferocidade como uma armadura, e era uma armadura totalmente assexuada. Liraz era intocável e intocada. Pensar em sua irmã... deitada sob Jael... era uma imagem abominável e difícil de apagar da cabeça.

Hazael parecia horrorizado também.

— Realmente espero que não — comentou ele, a voz soando fraca de tanto horror.

Liraz revirou os olhos.

— Olhem só para vocês. Já conhecem a reputação do nosso tio. Só digo que estou segura por ser da família, e é um dos únicos motivos que tenho para agradecer aos deuses da luz.

— Que se danem os deuses da luz — disse Hazael, indignado. — Você está segura porque o estriparia com as próprias mãos se tentasse tocá-la. Eu diria até que eu mesmo faria isso, mas sei que, antes que qualquer um chegasse lá para ajudá-la, nosso tio já estaria com as tripas para fora. O que, aliás, o tornaria menos feio.

— É, imagino que sim. — Tanto a expressão quanto a voz de Liraz pareciam cansadas. — E quanto a todas as outras garotas? Não acha que elas também têm vontade de arrancar as tripas dele? Mas o que aconteceria? Forca? Tudo se resume à vida, não é?... e a saber se vale a pena mantê-la, não importa o que aconteça. E então: será?

Ela olhou para Akiva. Estava perguntando para ele?

— Será o quê?

— Será que vale a pena continuar a viver, não importando o que aconteça?

Estaria ela falando de viver ferido, viver com o pesar? Será que considerava a perda dele verdadeira e queria mesmo saber, ou havia uma farpa ali em algum lugar? Às vezes Akiva achava que não conhecia nem um pouco a irmã.

— Vale — respondeu ele, desconfiado, pensando no turíbulo, e em Karou. — Enquanto estamos vivos, há sempre uma chance de as coisas melhorarem.

— Ou piorarem — rebateu Liraz.

— Sim — admitiu ele. — Geralmente pioram.

Hazael os interrompeu.

— Minha irmã, Luz, e meu irmão, Raio de Sol... Vocês deveriam se oferecer para animar as fileiras. Desse jeito vão acabar fazendo todo mundo querer se matar amanhã de manhã.

Amanhã de manhã. Todos eles sabiam o que iria acontecer pela manhã.

Liraz se levantou.

— Vou dormir enquanto posso, e vocês deviam fazer o mesmo. Quando eles chegarem, duvido que teremos alguma chance de descansar.

Ela saiu; Hazael foi atrás.

— Você não vem? — perguntou ele a Akiva.

— Só um minuto.

Ou mais. Akiva olhou para o céu. Ainda estava escuro até onde a vista alcançava, mas ele imaginou sentir uma mudança no ar: uma alteração provocada pelo bater de muitas, muitas asas. Era ilusão, ou profecia, ou apenas temor.

Seria uma longa distância a percorrer naquela noite, um vasto território a cobrir, muitos quimeras a salvar. Nada de descanso para ele. O Domínio estava a caminho.