35
As esfinges tocaram o chão com seus delicados pés felinos, levantando pequenos redemoinhos de poeira no chão ao redor. Os quimeras saíram pelas portas e janelas rumo ao pátio interno, para ouvi-las contar sobre a missão. Entre eles Thiago, vindo a passos largos da guarita. Karou estava atenta e curiosa. O que elas tinham feito? Não só as esfinges, mas todas as patrulhas. Foi irreal ver-se levada pelos próprios pés na mesma direção dos outros.
— Karou — chamou Ten, mas a garota continuou andando.
Quando a viu, Thiago parou, observando-a se aproximar. Os soldados seguiram seu olhar, assim como as esfinges. Todos olhavam-na com a mesma inexpressividade no rosto, mas Thiago sorriu.
— Karou. Foi tudo bem na cidade?
— Ah, sim, tudo bem. — As mãos dela estavam frias e úmidas. — Não precisa interromper o que você ia fazer. Eu só vim mesmo para ouvir.
O Lobo inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, parecendo perplexo.
— Ouvir?
— Sobre a missão. — Karou percebeu que se encolhia, gaguejava. — Só quero saber o que estamos fazendo.
Ela não sabia o que esperava ouvir de Thiago, mas não era isto:
— Está preocupada com alguém em especial?
Karou sentiu o rosto queimar. Insinuação capciosa.
— Não — respondeu ela, ofendida.
Também estava irritada, percebendo que qualquer coisa que dissesse soaria como preocupação com os serafins. Com Akiva.
— Bem, então não se preocupe. — Outro sorriso do Lobo. — Você já tem muito no que pensar. Perdeu o dia inteiro hoje, e preciso ter outra equipe pronta amanhã. Acha que consegue fazer isso?
— É claro — respondeu Ten por ela, pegando Karou pelo braço como fizera no dia anterior. — Já estamos indo.
— Ótimo — disse Thiago. — Obrigado.
Ele esperou as duas se afastarem antes de voltar a falar.
Karou sentia como se tivesse acordado subitamente de um estado de estupor. A intenção de Thiago não era poupá-la dos detalhes; ele claramente não queria que ela soubesse dos planos. Enquanto Ten a conduzia para longe dali, Karou trocou um olhar — breve — com Ziri. Ele parecia tão distante. O comentário de Thiago... Será que todos achavam que ela ainda era apaixonada por Akiva? Nem mesmo sabiam sobre Marrakech e Praga, ou que ela o reencontrara fazia tão pouco tempo. Reencontrara-o e... Não. Nada. Ela o deixara para trás. Era isso o que importava. Daquela vez, fizera a escolha certa.
Já longe do pátio, Karou se soltou com um puxão, encolhendo-se de dor quando a mão de Ten passou por seus ferimentos.
— Que droga! — reclamou. — Acho que tenho o direito de saber para que minha dor está servindo.
— Não seja criança. Todos temos nossos papéis a cumprir.
— E qual é o seu, babá? Ah, desculpe, babá de traidora?
O ar de desafio reluziu nos olhos de Ten.
— Se Thiago pedir, sim.
— E você faz qualquer coisa que ele lhe pede?
Por um segundo, Ten só a encarou, como se a achasse burra.
— É claro — respondeu. — E você também. Principalmente você. Pelo bem do nosso povo, por tudo que perdemos e pela grande dívida que tem conosco.
Karou se sentiu envergonhada, mas logo foi tomada por uma onda de raiva. Nunca a deixariam esquecer o que tinha feito. Ela estava ali por vontade própria, quando, ao contrário deles, tinha uma escolha. Tinha outra vida, e naquele momento o que mais queria era voar de volta para Praga, para seus amigos e aquela vida de arte e chás e de não se preocupar com nada mais terrível que borboletas no estômago — Papilio stomachus, recordou com saudade. Como tudo isso lhe parecia tão pequeno e delicado agora, como algo que se pode colocar dentro de um globo de neve.
Ela não iria embora. Ten estava certa: tinha uma dívida com eles. Mas já estava enjoada da pessoa covarde que se tornara. Achava que Brimstone mal reconheceria aquela criaturazinha lamentável e complacente; com certeza ela nunca tinha seguido as ordens dele tão docilmente.
Quando chegaram ao quarto, ela pegou o colar que começara mais cedo, enquanto Ten, impaciente, despejava o conteúdo da maleta na mesa. Prensas de bronze se espalharam em todas as direções com estardalhaço. Karou pegou uma, mas não a prendeu. Não estava em condições de conjurar um corpo.
O que ela não podia saber?
— Quer que eu pague o dízimo? — perguntou Ten.
Karou olhou para ela. A mulher-lobo não oferecia sua dor com muita frequência, e a garota se surpreendeu ao responder:
— Não, obrigada.
Foi só quando se ouviu pronunciar essa resposta que percebeu que ia fazer algo.
O que eu vou fazer?
Ah.
Ela brincou com o torno, apertando e afrouxando o parafuso. Será que ainda lembrava como? Fazia tanto tempo.
O que devo fazer para sentir dor?
Nada. Nada de dor para você. Só prazer.
Ainda brincando com o torno, ela disse a Ten:
— Imagino que você não conheça a história do Barba Azul.
— Barba Azul? — Ten olhou para o cabelo de Karou. — Parente seu?
Karou abriu um sorriso amargo.
— Eu não tenho nenhum parente, lembra?
— Ninguém mais tem — respondeu Ten simplesmente.
E era verdade, percebeu Karou. Todos ali tinham perdido... todo mundo. Eram um povo sem mais nada a perder.
— Bem — continuou ela, prendendo tranquilamente o torno na teia de pele e músculo que ligava o polegar à palma da mão. Era um ponto sensível. — Barba Azul era um lorde. Quando levou sua nova esposa para o castelo, entregou-lhe as chaves de todas as portas e disse que ela poderia ir aonde quisesse, menos abrir uma pequena porta que havia no porão. E que ela nunca deveria entrar lá.
Ela apertou o torno, e sentiu a dor começar a desabrochar dentro dela como uma flor.
— Imagino que tenha sido o primeiro lugar aonde ela foi — disse Ten.
— Assim que ele virou as costas.
Ten tinha acabado de se virar para pegar o bule de chá. Ao ouvir as palavras de Karou, virou-se novamente e soltou um palavrão.
Karou soube, pela reação dela, que tinha funcionado; finalmente se lembrara do encanto de invisibilidade de Akiva. Engraçado, a dor parecera uma grande coisa naquela época. Não mais. Pulsava no ritmo das batidas do seu coração, quase natural.
Não ocorreu a Ten que Karou pudesse nem ter se levantado dali. A mulher-lobo logo pensou que ela havia saído pela janela de novo, e portanto, quando se refez do choque e conseguiu agir, foi naquela direção. Karou saiu sorrateiramente pela porta. Foi uma ironia o fato de que a ausência da barra tenha facilitado sua fuga. Com cuidado para manter o encanto, desceu rapidamente e saiu ao pátio para ouvir o que pudesse antes que Ten chegasse lá com a notícia de seu desaparecimento.
Não ouviu muita coisa.
Não foi sua sombra que a entregou. O encanto não escondia sombras, então ela procurou se manter afastada da claridade e não fez nenhum barulho. Tinha certeza disso. Não estava nem tocando o chão. Ainda assim, fazia apenas alguns minutos que estava ali no pátio, tempo suficiente apenas para saber sobre a natureza doentia do “recado” que os rebeldes vinham enviando aos serafins e sobre... a reação do imperador — meu Deus, o céu escuro e brilhante com os soldados do Domínio, uma demonstração impiedosa de poder, da qual não haveria chance de ninguém escapar, nenhuma, nenhuma esperança —, quando Thiago parou no meio de uma frase, virou-se em seus pés de lobo e, levantando um pouco a cabeça, abrindo um pouco as narinas, farejou o ar.
E olhou para ela.
Karou congelou. Já estava imóvel, e a alguns metros de distância, porém ficou sem respirar, observando com pavor aqueles olhos sem cor. Não conseguiam localizá-la exatamente, mas estavam perto. Thiago farejou o ar de novo. Não podia vê-la, ela sabia disso, tampouco o restante do exército, que seguiu a direção do olhar do Lobo. Ainda assim — idiota, idiota —, eles sabiam, da mesma forma que Thiago, que ela estava por perto.
Eram feras. Podiam sentir seu cheiro.