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VONTADE DE SORRIR

Ela tirou o torno no rio, deixou a magia se desfazer e observou seu corpo voltar a ficar visível. Sua mão estava arroxeada no ponto em que a prensa se prendera. Um hematoma. Algo podia ser mais insignificante que um hematoma?

Será que Thiago descobriria sobre o encanto? Aquilo fora uma estupidez. Se o Lobo suspeitasse de que ela podia ficar invisível, ele e sua espiã nunca mais tirariam os olhos dela. Sem falar que, se ele desconfiasse de que Karou podia fazer isso, iria querer saber como. Iria querer que todos os seus soldados soubessem como, e não seria bom, se isso pudesse ajudar os quimeras?

Ajudá-los a matar mais anjos enquanto dormiam?

Foi o que Tangris e Bashees tinham feito. Ninguém sabia exatamente como conseguiram; de alguma forma elas se envolviam nas sombras para se aproximarem sem serem vistas, mas só um encanto não explicaria os assassinatos em massa perpetrados em perfeito silêncio. Quem dormia tão profundamente a ponto de não acordar arfando ao sentir sua garganta sendo cortada? E, no entanto, as vítimas continuavam dormindo enquanto morriam, uma garganta após outra, toda a vida do lugar sendo eliminada até só restarem as assassinas.

Karou não sabia por que aquilo a incomodava. Era indolor. Quantos quimeras aqueles soldados tinham matado, certamente com menos compaixão?

Compaixão? Que pensamento terrível.

Karou permaneceu sentada, argumentando consigo mesma, desejando mais desesperadamente do que nunca ter com quem conversar. Havia alguns conflitos internos que ela simplesmente não conseguia solucionar. Não conseguia aceitar aquela brutalidade da qual fazia parte, e por isso vinha tentando fingir que aquilo não passava de um pesadelo, para poder seguir em frente.

Não conseguia aceitar a guerra.

Sua vida como Karou de forma alguma a preparara para aquilo. Guerra era uma coisa sobre a qual se ouvia falar no noticiário, e ela nem mesmo assistia ao noticiário, era horrível demais. E se achava que Madrigal poderia ajudá-la, como se seu eu interior pudesse torná-la capaz de aceitar aquela feia realidade, estava enganada também. Por que Madrigal tinha feito o que fizera, conspirando com Akiva pela paz? Porque não tinha estômago para a guerra, mesmo fazendo parte de sua vida. Sempre fora uma sonhadora.

E o que estava acontecendo em Eretz... Os rebeldes tinham piorado, e muito, as coisas. Tinham mexido em um ninho de vespas. Os rostos mutilados em sorrisos, as gargantas cortadas, o recado escrito com sangue. Onde Thiago estava com a cabeça ao provocar o império daquela maneira? E a resposta do império era rápida e assustadora. Para os quimeras, seria cataclísmica. A força total do Domínio enviada para exterminar civis?

O que Thiago tinha imaginado que aconteceria? O que ela imaginara?

Ela não tinha parado para pensar; não fizera questão de saber, e agora veja só.

Estou feliz... Estou feliz...

Karou tirou os sapatos e mergulhou os pés na água fria. Deviam estar procurando por ela na casbá, e a encontrariam facilmente. Ela esperava bem à vista. Após um bom tempo ouviu o barulho de asas, e então uma sombra a cobriu. Tinha chifres e, por um instante, alinhou-se com a própria sombra de Karou, fazendo parecer que os chifres eram dela.

Ziri.

Fora Ziri quem fizera os cortes na sua patrulha. Suas lâminas curvas — como as dela — eram perfeitas para isso; bastava enganchá-las nos cantos da boca de um cadáver e, com um giro rápido do pulso, estava feito: a representação de um sorriso. E foi isso que se tornou minha pequena sombra Kirin. Virou-se para olhar para ele, mas, como o sol estava bem atrás de Ziri, ela teve que proteger os olhos. Agora que ele a encontrara, parecia não saber o que fazer. Karou viu o olhar dele percorrer seus braços — uma confusão de hematomas e tatuagens — antes de voltar para seu rosto.

— Você está... bem? — perguntou Ziri, hesitante.

Eram as primeiras palavras que ele lhe dirigia. Se tivessem vindo antes, ela teria ficado muito feliz. Desde os assustadores primeiros dias que passara entre os rebeldes, ela esperava tê-lo como um amigo, um aliado; julgara reconhecer algo nele... compaixão? A doçura de sua juventude? Mesmo naquele instante, ela via o garoto nele, os olhos castanhos arredondados, sua seriedade e timidez. Mas ele tinha se mantido distante todas aquelas semanas, e agora, quando finalmente decidira falar com ela, já não importava mais.

— Você parece... — gaguejou ele, desconcertado. — Você não parece bem.

— Ah, não? — Só rindo mesmo. — Que surpresa.

Ela se levantou, espanou a poeira da calça jeans e pegou os sapatos. Olhou para Ziri — precisava erguer a cabeça, de tão alto que ele ficara. Em um de seus chifres tinha uma marca de corte, com vários sulcos raspados; bastava olhar para perceber que o chifre o salvara de um golpe fatal. Ele tivera sorte. Ela ouvira os outros quimeras dizerem isso. Ziri Sortudo.

— Não se preocupe comigo — disse Karou. — Da próxima vez que eu tiver vontade de sorrir, acho que sei quem procurar.

Ziri se encolheu como se tivesse levado um tapa. Karou passou por ele, subiu o barranco poeirento e seguiu em direção à casbá. Não voou, foi andando. Não estava com a menor pressa de voltar.

* * *

O irmão do imperador parecia cortado ao meio. Uma cicatriz começava no alto de sua cabeça, passava pelo meio do rosto, fazia a curva do queixo e então acabava — infelizmente —, quase na garganta. E também não era uma linha fina, mas um queloide franzido e lívido que dominava o que restava do nariz e partia seus lábios, revelando dentes quebrados. Ninguém sabia como ele tinha conseguido aquela marca. Ele afirmava ser uma cicatriz de batalha, mas rumores o contradiziam — embora fossem tantos e tão variados que era impossível descobrir qual (se é que algum era) o verdadeiro. Nem Hazael, com seu talento para descobrir as coisas, fazia ideia.

Qualquer que fosse a origem da cicatriz, o resultado é que era quase insuportável ouvir Jael comer, pois os sons que ele fazia eram como os de um cachorro lambendo suas partes íntimas.

Akiva mantinha o rosto impassível, como sempre, embora fosse um desafio. Ninguém causava tanto desconforto quanto o capitão do Domínio.

— Pense nisso como um grupo de caça — disse Jael casualmente após engolir meio pássaro defumado frio com uma golada de cerveja, sem se importar em limpar a saliva que escorria pela boca deformada. — Um grupo de caça bem grande. Você costuma caçar? — perguntou ele.

— Não.

— É claro que não. Soldados não têm gana por esportes... Até o inimigo se tornar a presa. Acho que você vai gostar.

Acho que não, pensou Akiva.

A força total do Domínio estava pronta para atacar os fugitivos do continente sul, vários milhares de tropas se preparando para deter sua fuga para as Terras Distantes e então seguir para o norte, matando toda criatura viva no caminho.

— Eu falei que era cedo demais para retirar nossa força principal — disse Jael. — Mas meu irmão não acreditou que o sul fosse uma ameaça.

— Não era — disse Ormerod, o comandante da Segunda Legião, que até então vinha supervisionando aquela varredura e que não estava, pelo que parecia a Akiva, muito feliz em ser destituído do cargo.

Estavam no pavilhão dele — um lugar não muito frequentado por Akiva. Longe disso. Bastardos não se sentavam à mesa principal ou comiam com seus superiores. Estava ali, desagradavelmente surpreso, a pedido de Jael.

— O príncipe dos bastardos — aclamara o capitão ao vê-lo chegar.

Akiva já fora obrigado a trabalhar com ele no passado. Mesmo na época, quando seus ideais estavam alinhados — a destruição de Loramendi, por exemplo —, ele o desprezava. E percebia que o sentimento era mútuo.

— Que honra — dissera Jael aquela manhã. — Eu não tinha pensado em procurá-lo aqui. Junte-se a nós para o café da manhã. Aposto que tem muitos comentários a tecer sobre nossa atual situação.

Ah, e como tinha, mas nenhum que pudesse ser expressado àquela mesa.

— O sul não era uma ameaça antes e continua não sendo agora — continuou Ormerod, sua honestidade sendo objeto da admiração de Akiva.

Ele quase se sentia obrigado a concordar com aquilo.

— Quem quer que esteja atacando os serafins, não é do povo.

— Sim, bem... os rebeldes estão se escondendo em algum lugar, não estão? — Jael suspirou. — Rebeldes. Meu irmão está irritado. Ele só quer planejar sua nova guerra. É pedir muito? E eis que a antiga volta, ressurgindo dos mortos.

Ele riu da própria piada, mas Akiva não.

Nova guerra? Tão cedo? Ele não iria perguntar. Curiosidade era fraqueza, e tanto Joram quanto Jael gostavam de prolongar o suspense e deixá-lo perdurar o máximo possível.

Ormerod aparentemente não tinha aprendido essa lição.

— Que nova guerra?

Jael manteve os olhos fixos em Akiva, com ar de divertimento, e seu olhar era direto e pessoal.

— É uma surpresa — respondeu, sorrindo, se é que se podia chamar aquilo de sorriso: a boca se contorceu em algo que era quase um esgar; os lábios pálidos repuxados pela cicatriz.

Eis um sorriso que os quimeras poderiam melhorar, pensou Akiva. Mas se Jael estava tentando provocá-lo, teria que fazer melhor que aquilo. Não era difícil de deduzir. Quem mais poderia ser o próximo alvo de Joram senão os serafins renegados, cuja liberdade e magia o irritavam havia anos?

Os Stelian.

Para Akiva, o povo de sua mãe eram mais fantasmas do que aqueles rebeldes surgidos do nada. Ele não permitiu aquele prazer a Jael. No momento, sua preocupação era a batalha presente e aquelas terras do sul onde o fogo serafim ainda lançaria morte a tudo que vivia ou respirava, fosse planta, animal ou fera. E agora? O desespero o dominou, impaciente, recusando-se a se acalmar. Ele pensou nos quimeras que tinha poupado e alertado. Seriam isolados, encurralados, capturados, mortos. O que ele poderia fazer? Milhares de soldados do Domínio. Não havia o que fazer.

— Para Joram, esta rebelião pode ser um estorvo, mas para mim é uma bênção — dizia Jael. — Precisamos ter alguma coisa para fazer. Acredito que um soldado ocioso é uma afronta à natureza. Você não concorda, príncipe?

Príncipe.

— Não acredito que a natureza pense em nós a não ser como um problema.

Jael sorriu.

— A terra queima, as feras morrem, e as luas choram no céu ao ver isso.

— Cuidado — alertou Akiva, também abrindo um ligeiro sorriso. — Os quimeras foram criados a partir das lágrimas da lua.

Jael o olhou friamente.

— O Ruína das Feras cuspindo mitos das feras. Você conversa com os monstros antes de matá-los?

— Devemos conhecer nossos inimigos.

— Sim. Devemos.

De novo aquele olhar: direto, pessoal, divertido. O que significava? Akiva não era nada para Jael além de um dos bastardos da legião de seu irmão.

Porém, quando a refeição por fim terminou, ele ficou se perguntando o que mais representaria para o capitão.

Jael empurrou sua cadeira para trás e ficou de pé.

— Obrigado por sua hospitalidade, comandante — disse ele a Ormerod. — Partiremos em uma hora. — Então se virou para Akiva. — Sobrinho. É sempre um prazer vê-lo. — Ele se virou para sair, mas então parou e voltou. — Eu provavelmente não deveria admitir isso agora que você é um herói, contudo fui a favor de o matarem na época. Sem ressentimentos, espero.

Akiva olhou para Jael, impassível. Quando sua vida estivera em discussão?

Ormerod se mexeu, inquieto, e gaguejou algumas palavras, mas nem Akiva, nem Jael lhe deram atenção.

— A conspurcação do seu sangue, você sabe — disse Jael, como se devesse ser óbvio. Então. A mãe dele, de novo. Akiva recompensou a ironia com o mesmo desinteresse que tinha mostrado diante da provocação sobre a nova guerra. Tinha apenas pequenos fragmentos de lembrança da mãe, além do comentário enigmático do imperador: Foi terrível o que houve com ela. Qual era o interesse de Jael? — Meu irmão tinha fé em que o sangue dele provaria ter força; Sangue é força, etc... E agora ele diz que estava certo. Você foi um teste, e os resultados foram gloriosos, então acho que não se pode dizer nada contra você agora. Que pena. Odeio estar enganado sobre essas questões.

E com isso, Jael do Domínio, o segundo serafim mais poderoso do império, se virou para sair, parando rapidamente apenas para dar uma ordem a Ormerod antes de continuar andando.

— Mande uma mulher para minha barraca, está bem?

Ormerod ficou pálido. Abriu a boca, mas não disse nada. Foi Akiva quem primeiro se ergueu. Lembrou-se das palavras de Liraz, e de “todas as outras garotas” de quem falara. Só lhe ocorreu naquele instante que sua irmã tinha falado sobre um medo que sentia. Não diretamente; ela não faria isso, e foi só então que ele sentiu o medo por ela, e por “todas as outras garotas” também. Não apenas medo. Fúria.

— Não temos mulheres aqui — disse ele. — Apenas soldados.

Jael parou. Suspirou.

— Bem, não se pode ser muito exigente em um campo de batalha. Uma delas terá que servir.

* * *

A um mundo de distância, o Lobo Branco preparava suas tropas. Reuniu-as no pátio ao anoitecer e as enviou em equipes aladas, sem exceção. Nove grupos de seis, além das esfinges, que formavam uma equipe separada. Cinquenta e seis quimeras. Parecera uma quantidade enorme durante o dízimo, tantos hematomas, mas, dali da janela, Karou imaginou-os em um céu cheio de soldados do Domínio e soube que não eram nada. Lembrou-se do sol brilhando nas armaduras, da envergadura flamejante das asas dos serafim, da terrível visão do inimigo pronto para a batalha — e se sentiu entorpecida. O que eles esperavam, lançando-se em ofensiva daquele jeito? Era suicídio.

Eles se ergueram no ar, em formação de esquadrão, e voaram.

Ziri não olhou para a janela dela.