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O tilintar metálico dos turíbulos, o tinido suave dos dentes.
Os dedos de Karou trabalhavam sem descanso nas bandejas. Selecionando, tecendo. Dentes, dentes. Gente, touro. Lascas de jade, ferro. Dentes de iguana — serreados e terríveis —, ossos de morcego. Selecionando, tecendo. Quando chegou aos dentes de antílope, ela se recostou e os observou.
— Para quem são esses?
Karou se assustou e fechou a mão em volta deles. Tinha se esquecido de Ten por um instante. Observando. A mulher-lobo estava sempre observando.
— Para ninguém — respondeu, e os colocou de lado.
Ten deu de ombros e voltou à tarefa de misturar incenso.
No Museu de História Natural de Londres, Karou hesitara ao lado do lindo órix macho por alguns minutos, passando as mãos por seus longos chifres sulcados, lembrando-se de como era sentir aquele peso na própria cabeça.
— Você poderia ser Kirin de novo — dissera Ten, mas a ideia nunca ocorrera a Karou.
Os dentes de antílope não eram para ela, mas para Ziri, e Karou nem quisera levá-los. Supersticiosamente, a preparação lhe parecera capaz de atrair a morte dele — como cavar um túmulo antes do falecimento de alguém. Sim, a morte era esperada, a morte era rotineira, mas... não para Ziri.
Ziri Sortudo.
Extraordinariamente, ele ainda tinha seu corpo natural. Fosse por sua velocidade ou habilidade — ou sorte, ele seria o primeiro a dizer —, nunca havia morrido. E, por mais tolo e hipócrita que fosse se preocupar com a “pureza” dele, era assim que Karou se sentia. Ele era o último de sua tribo, o último sangue verdadeiro de seu povo. Havia algo de sagrado nisso, e, quando ele saíra naquela primeira missão, um temor frio se cristalizara nela e crescera, só se acalmando quando ela o vira voltar.
E agora Karou esperava de novo — vê-lo apenas, e assim saber que os Kirin ainda não tinham desaparecido do planeta —, mas desta vez não era como antes. Desta vez ela não sabia como ele poderia voltar. Suas palavras de despedida para ele — suas únicas palavras para ele — tinham sido muito cruéis, como se Ziri fosse o culpado pelo que estava acontecendo. Algum dia ela teria a chance de retirar o que dissera?
Selecionando, tecendo. Dentes, dentes.
As horas passavam, e seu medo aumentava. O sol nasceu, arrastando as muitas horas atrás de si, e nunca um dia naquele lugar parecera tão lento, tão quente, tão interminável. Karou se sentia envelhecida quando finalmente chegou o crepúsculo. Várias vezes se pegou com os dentes de antílope nas mãos.
Naquela noite em Londres, ela acabara por levar seu alicate até a boca do órix. Não estava atraindo a morte de Ziri, se convencera, mas se preparando para sua inevitabilidade. Todos os soldados quimeras morriam. Talvez a hora dele tivesse chegado. Ela tentou imaginá-lo voltando em um turíbulo, sua verdadeira carne — o último Kirin em toda Eretz — abandonada em algum lugar, ferida ou queimada... e descobriu que conseguia enfrentar isso.
Desde que não tivesse que considerar a outra possibilidade: de que ele talvez não voltasse de forma alguma.