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Mais uma noite caiu sobre a casbá, as estrelas nunca tão lentas em seu arco quanto quando havia vidas em jogo.
Karou se distraía com o trabalho, com a renovada urgência na feitura dos corpos. Tentava não pensar que estava começando do zero, mas era difícil, considerando que as probabilidades eram muito sombrias.
Podia levar dias para ficarem sabendo de alguma coisa. Era um longo caminho até as Terras Distantes, tendo que passar por todas as terras livres e o vasto continente meridional. Sem asas, teriam sido várias semanas de uma caminhada penosa, mas isso era coisa do passado, felizmente. Karou se lembrava de ficar irritada, quando era Madrigal, com o ritmo insuportável de seus batalhões. Mas com asas, dependendo do que acontecesse, as patrulhas podiam voltar em questão de dias.
Ou nunca mais.
A possibilidade de ninguém voltar era bem real, e a tensão de saber disso, e esperar, esperar para saber alguma coisa sem nunca saber de verdade, isso era tão antigo quanto a própria guerra, e o pior tipo de espera, arrastada e infeliz, em que podia pensar.
Então ela ficou surpresa ao ouvir o alerta da sentinela logo após o amanhecer — cedo demais. Chegou à janela em um instante, com um colar de dentes ainda nas mãos. Subiu no parapeito na ponta dos pés e continuou, subindo em direção ao céu. Não fazia nem trinta e seis horas e já surgiam formas no horizonte, uma patrulha inteira. Parecia um milagre.
Mais um minuto e ela pôde identificar a figura imensa de Amzallag. Era a equipe dele.
Nada de Ziri, então.
Por enquanto. Ela ignorou a decepção que sentia. Estava feliz ao menos de ver Amzallag, e surpresa em saber que uma equipe — qualquer equipe, ainda que não fosse a que mais esperava — havia retornado intacta de uma batalha tão difícil, e tão rápido! Pousou nas telhas verdes e ficou vendo-os aterrissar. Thiago apareceu para falar com eles, como sempre fazia, e apertou seus braços, sem parecer especialmente satisfeito ou surpreso. Ela não conseguiu ouvir o que diziam, mas podia ver que as mangas dos soldados estavam endurecidas de sangue ressecado.
Outra patrulha retornou, e mais outra.
O sol subiu, os esquadrões voltavam para casa um a um, e o milagre disso começou a parecer suspeito. Como era possível que não tivessem perdido ninguém? No meio da manhã, todas as equipes tinham retornado, menos a de Balieros, e Karou mal conseguia respirar com o bolo que sentia na garganta.
— Para onde eles foram? — perguntou ela a Ten ao voltar para seu quarto, procurando se ocupar com o trabalho.
— Como assim? Eles foram às Terras Distantes — respondeu a mulher-lobo, mas Karou sabia que era mentira.
Estavam de volta cedo demais, vivos demais, e havia algo de errado com o clima. Estava pesado.
Dali de cima ela viu o soldado Virko — que, com seus chifres espiralados de carneiro, lembrava um pouco Brimstone — ir para o contraforte do xixi e vomitar, caído de joelhos. O som que ele fazia crescia e sumia, crescia e sumia, atravessando em ondas o pátio onde o restante da companhia, que andava por ali em um silêncio estranho, ficou ainda mais quieta, parecendo evitar olhar uns para os outros.
Amzallag se sentou sob a arcada e pôs-se a limpar a espada. Quando Karou olhou lá para baixo, uma hora depois ou até mais, ele continuava no mesmo lugar, seus movimentos violentos, furiosos.
No entanto, foi quando avistou Razor que Karou sentiu a boca se encher com a saliva doce que antecede a ânsia de vômito. O que quer que as equipes tivessem feito naquele período de um dia e meio — o que, de forma alguma, seria tempo suficiente para chegar às Terras Distantes e voltar —, tinha acrescentado um balanço arrogante a seu silencioso e suave caminhar reptiliano, e... ele carregava um saco. De tecido marrom, cheio e pesado, e... manchado com um fluido cuja cor era indeterminada em razão do tom do próprio saco. Karou segurou a ânsia de vômito; ela sabia que líquido era aquele e de que cor, e por mais que tivesse se repreendido por sua ignorância deliberada alguns dias antes, não queria saber mais do que aquilo.
Então se viu de novo com os dentes de antílope na mão, e os colocou de lado. Volta e meia ela ia de novo até a janela. Ten lhe deu uma bronca pela falta de concentração, mas ela não conseguia se conter. Havia algo de errado.
Errado.
Errado.
E então, finalmente, enquanto a hora mais quente do dia lentamente ia embora, a sentinela deu o alerta de novo. Ziri. Karou se lançou pela janela. O céu estava da cor do cobalto, sem nuvens e sem profundidade, sem nada a esconder.
Vazio. Ela se virou para a torre da sentinela, confusa. Era Oora quem estava de guarda, mas ela não olhava na direção do portal. O Lobo apareceu ao seu lado, e Oora apontou para baixo, ao longe. Karou teve que estreitar os olhos para enxergar o que eles estavam vendo. Quando conseguiu, disse baixinho:
— Não. Não, não. Não.
Humanos, dois, subindo com dificuldade a base rochosa do penhasco.
Indo diretamente para a casbá.