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— Vamos — disse Hazael. — Não há mais nada que possamos fazer.
Mais? Isso implicaria terem feito alguma coisa. Mas não haviam encontrado nenhuma oportunidade. Muitos soldados do Domínio, uma área aberta grande demais. Akiva balançou a cabeça e não disse nada. Talvez seu voo noturno tivesse espantado as criaturas de seu lugar de descanso, talvez tivesse conseguido que alcançassem as ravinas e túneis antes dos anjos. Ele nunca viria a saber. Tudo o que saberia era aquilo que via agora diante de si.
O céu estava perfeitamente limpo, com um tom de azul primaveril. Imaculado. A fumaça ainda estava contida a finas colunas, aqui e ali. Daquela posição no alto das rochas, o mundo parecia um rendilhado de copas de árvores e grama, e os rios que corriam ao sol eram como veios de pura luz percorrendo os contornos das colinas. Montanhas e céu, árvore e rio, e o brilho das asas à medida que os esquadrões do Domínio se moviam de um lugar a outro, ateando fogo a tudo. Aquele lugar era úmido, cheio de trepadeiras: véus de névoa e cachoeiras. Não queimaria facilmente.
Em um lugar como aquele, em uma paisagem como aquela, era quase impossível aceitar o que acontecera ali hoje. Mas as aves carniceiras não deixavam dúvidas.
Eram tantas. Aquelas aves sentiam o cheiro de sangue no ar a quilômetros de distância. A julgar pelo seu número — e pela avidez espasmódica de suas espirais em geral lânguidas —, o cheiro devia estar bem forte.
— E lá estão nossos pássaros — disse Akiva, derrotado.
Hazael entendeu.
— Tenho certeza de que alguns conseguiram chegar a um lugar seguro.
Logo depois Akiva percebeu que dissera isso com Liraz bem ao lado deles. Ela agora olhava para os irmãos. Akiva esperou que ela dissesse alguma coisa, mas Liraz apenas se virou e olhou para os picos das montanhas.
— Dizem que não é possível cruzá-los voando — disse ela. — O vento é forte demais. Só caça-tempestades conseguem sobreviver.
— O que será que há do outro lado? — comentou Hazael.
— Talvez reflita o que há neste, e os serafins de lá tenham caçado os quimeras até os túneis também, e eles vão se encontrar no meio, no escuro, e descobrir que não existe nenhum lugar seguro no mundo todo, nenhum final feliz.
— Ou — disse Hazael, radiante — talvez não haja serafins do outro lado, e exista um final feliz. Sem nós.
Ela voltou o olhar para ele abruptamente. Seu tom, que estava curiosamente distante, endureceu:
— Vocês não querem mais fazer parte de nós, não é? — Ela olhava rapidamente de um para o outro. — Acham que não estou vendo isso?
Hazael contraiu os lábios e olhou de relance para Akiva.
— Eu ainda quero — disse ele.
— Eu também — disse Akiva. — Sempre. — Então se lembrou do céu do outro mundo, quando detivera os dois em sua caçada por Karou e se forçara a lhes contar, finalmente, toda a verdade. Que ele amara uma quimera e sonhara com uma vida diferente. Ele se arriscara a dizer, na época, que sua irmã era mais do que uma arma do imperador e que, se ela descartara a ideia de harmonia, pelo menos não se voltara contra ele. Akiva achava que era o único que estava cansado daquelas mortes? Havia Hazael também. Quantos mais pensavam assim? — Mas podemos ser melhores do que isso — completou.
— Podemos ser melhores? — disse Liraz. — Olhe para nós, Akiva. — Ela ergueu as mãos, mostrando as marcas de tinta. — Não podemos fingir. Carregamos as marcas do que fizemos.
— Só das mortes. Não há marcas para compaixão.
— Mesmo se houvesse, eu não teria nenhuma.
Akiva olhou em seus olhos e viu neles uma espécie de conflito.
— Você só precisa começar, Lir. Compaixão gera compaixão, assim como sangue gera sangue. Não podemos esperar que o mundo seja melhor do que aquilo que o fazemos ser.
— Não — disse Liraz, e sua voz saiu fraca, e por um instante ele achou que ela falaria mais alguma coisa, investigaria mais a fundo, exigiria saber seus segredos. Ou quem sabe confessaria os dela? Mas, quando se virou, ela disse apenas: — Vamos embora daqui. Estão queimando os mortos, e não quero sentir o cheiro.
* * *
Ziri contemplava as chamas. Estava no alto de uma encosta, na segurança provida pelas árvores.
Segurança. A palavra lhe pareceu absurda. Não havia segurança alguma. Era melhor que os anjos ateassem fogo no mundo inteiro e acabassem com tudo logo. As coisas que ele vira queimar naqueles últimos meses... Fazendas, rios cheios de óleo. Crianças correndo em fuga e gritando — em chamas —, até não poderem mais correr e gritar. E, agora, seus amigos.
Ele apertava o punho da faca com tanta força que seus dedos pareciam capazes de atravessar o couro e sentir o aço embaixo, e atravessá-lo também. Segurança, pensou de novo. Era pior do que absurdo: era profano. Assim como a ordem que recebera, ficar em segurança.
Balieros ordenara que ele se escondesse.
Em toda missão, sempre era preciso que alguém ficasse escondido, em segurança, para em alguma eventualidade como aquela colher as almas dos outros caso fossem mortos. Era uma honra, um grande voto de confiança — a de ter nas mãos a perpetuidade de seus companheiros —, e também uma tortura.
Ziri Sortudo, pensou com amargura. Ele sabia por que Balieros o escolhera. Era tão raro um soldado estar em seu corpo original; o comandante lhe dera a chance de conservá-lo. Como se ele se importasse com isso. Ser o único restante era pior. Fora obrigado a assistir ao massacre sem fazer nada. Até o garoto Dashnag tinha lutado — e bem —, mas não Ziri, embora seu corpo e sua mente tivessem lhe implorado que voasse até a luta.
A única transgressão que se permitira tinha sido matar um serafim que perseguira a pequena garota Dama, um cervo-centauro, linda como uma boneca. Era a mesma menina que ele ajudara a libertar dos traficantes de escravos nas colinas Marazel, e ela empunhava a faca que ele lhe dera. E pensar que tinham chegado tão longe e quase morrido bem ali. Ele viu seu grupo, as garotas Dama e os Caprina, desaparecer em uma fenda nas rochas, o que era bom. Assim tinha algo sólido a que se agarrar enquanto assistia à morte de seus companheiros. Saber que aquilo tudo não tinha sido em vão.
Os cinco tinham tirado cinco vezes mais vidas do que as que perderam, e o garoto Dashnag tinha sido responsável por boa parte deste número. Ziri vira os serafins observando boquiabertos os mortos, gesticulando — Ixander principalmente, cujo corpo tivera que ser arrastado por três deles quando tudo terminara. Eles empilharam os cadáveres e então, assassinos profanos que eram, cortaram suas mãos antes de atearem fogo neles. Cortaram e guardaram as mãos — por quê? Como troféus? —, e então incendiaram toda a clareira e assistiram às chamas devorarem os cadáveres mutilados. Ziri sentia o cheiro agora — misturado ao doce aroma da grama carbonizada, havia o fedor de pelos e chifres queimados, e, o mais horrível de tudo, o cheiro de carne assada —, e imaginou as almas dos companheiros pairando na clareira, mantendo uma tênue ligação com seus corpos queimados pelo máximo de tempo que pudessem.
Ele não podia esperar muito mais. Queimar os corpos acelerava a evanescência, e já fazia horas. Logo seria tarde demais. Se Ziri tinha alguma esperança de salvar seus companheiros, tinha que fazer isso agora.
Os anjos tinham ficado ali desde a manhã até a tarde, mas finalmente estavam indo embora, levantando voo com toda a sua abominável graça e se afastando.
Ele desceu a encosta decidido, mantendo-se sob o abrigo das árvores. Quando chegou à clareira, o inimigo já havia desaparecido no horizonte. Ele examinou o lugar. O fogo serafim era devastador, ardendo tão intensamente que os corpos tinham sido completamente destruídos. Um vento começava a se levantar, revirando o monte de cinzas, soprando-as nos olhos de Ziri e, pior, espalhando o pouco que as almas tinham a que se agarrar. Ele acendeu quatro cones de incenso no turíbulo e o segurou com firmeza. Cinco soldados e um voluntário. Esperava ter conseguido colher a alma de todos, inclusive a do menino.
Pronto, fizera todo o possível. Ele girou a parte de cima do turíbulo para fechá-lo e atravessou a alça do bastão nas costas. Observou o céu. Estava vazio, mas ele sabia que precisava esperar escurecer para voar — mais tempo se escondendo, esperando. Os soldados do Domínio estavam por toda a parte, ainda espalhando o recado do imperador de forma terrivelmente eficiente, e, como ele vira... gostando do que faziam.
A princípio, no ataque inicial dos rebeldes, Ziri odiara cortar os sorrisos do Comandante nos mortos, mas agora só conseguia pensar que a alegria sombria dos anjos tinha que ter uma resposta à altura.
E se o ato de revidar despertasse também nele uma alegria sombria? O que Karou pensaria disso? Não. Ziri afastou o pensamento. Ele não gostara nem um pouco, mas também não podia culpar Karou pelo desprezo com que o tratara. Naquele dia no rio, ele se surpreendera com a dor profunda que sentira — com a forma como ela o olhara, a forma como fora embora. Na hora ele tentara ocultar a vergonha sob um véu de raiva — quem era ela para desprezá-lo? —, mas já não podia mais se enganar. Quando Balieros reunira a tropa para lhes perguntar se estavam com ele, se queriam massacrar inimigos civis ou ajudar o povo, Ziri pensara logo em Karou, em apagar o desprezo dela e substituí-lo por outra coisa. Respeito? Aprovação? Orgulho?
Talvez ele ainda fosse aquele garotinho apaixonado, afinal.
Ziri balançou a cabeça. Depois virou-se em direção às copas das árvores que o ocultavam. E foi então que os viu ali, observando-o: três anjos de braços cruzados.