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— Você — disse Ziri.
Dizia-se entre os quimeras que todos os serafins se pareciam, mas qualquer quimera saberia quem era aquele anjo logo ao vê-lo. A cicatriz que dividia seu rosto era única.
Ziri assoviou.
— Espere até meus amigos ouvirem que matei o capitão do Domínio. Eles não vão acreditar.
Jael riu, com um som úmido. Ele deu um passo à frente, e seus soldados se espalharam para cercar Ziri. Três anjos não o preocupavam muito, mesmo que um deles fosse o irmão do imperador. Três eram fáceis de matar. Mas então ouviu um som vindo de trás, se virou e viu mais... seis... emergirem da mata a distância. Ah. E quando olhou de volta para Jael, havia mais três atrás dele. Uma dúzia.
Então era a morte.
Provavelmente.
— Sabe, todo soldado quimera se diz o autor dessa sua cicatriz — disse Ziri a Jael. — É uma brincadeira que fazemos quando estamos entediados, para ver quem inventa a melhor história. Quer ouvir a minha?
— Todo soldado quimera? — indagou Jael. — E quantos são hoje em dia, quatro? Cinco?
— Bem, um quimera vale... — ele fez toda uma encenação para contá-los e então abriu um largo sorriso — pelo menos uma dúzia de serafins. Então isso deve ser levado em conta.
Ele pegara suas lâminas logo que os vira. Estavam mantendo distância por enquanto, mas Ziri sabia que se aproximariam e tentariam pegá-lo. Que viessem. Toda a angústia das últimas horas estava viva em suas mãos — seus dedos latejavam no punho das armas.
— A história é mais ou menos assim — começou Ziri. — Estávamos jantando juntos, você e eu. Como fazemos de tempos em tempos. Era um tetraz. E o tempero tinha passado do ponto. Você matou o cozinheiro por isso. Temperamento ruim, sabe? — E acrescentou como um aparte instrutivo: — São detalhes assim que fazem uma história parecer real. Mas enfim: você ficou com um osso preso no bigode. Já mencionei que você tinha um bigode?
Jael não tinha bigode. Ziri sentiu que os soldados se aproximavam a sua volta. Jael estava a uma distância segura, uma paciência calculada em seu rosto.
— Eu tinha? — indagou.
— Era ralo e sem graça, mas não importa. Fui tentar tirar o osso, usando a sua espada, e foi esse o meu erro. Porque estou acostumado com lâminas bem menores. — Ele ergueu suas facas em forma de lua crescente para ilustrar o que falava. — E, bem, eu errei no corte. Um erro fenomenal, sem dúvida, embora eu sempre diga: quem dera tivesse errado na outra direção. — Ele cortou o ar como se cortasse uma garganta. — Nada pessoal.
— É claro que não. — Jael correu um dedo pela longa linha irregular de sua cicatriz. — Quer saber a verdadeira história?
— Não, obrigado. Estou a um passo de acreditar na minha versão.
Um movimento rápido. Atrás de Ziri, um soldado; ele se virou, as facas cintilando, o sol incidindo forte e convidativo nas curvas afiadas. O aço queria sangue, e ele também. O soldado recuou.
— Pode abaixar as armas — disse Jael. — Não vamos matar você.
— Eu sei — replicou Ziri. — Eu vou matar vocês.
Eles acharam engraçado. Vários riram. Mas não por muito tempo.
Ziri se moveu em um borrão. Acertou primeiro os que riam, e dois anjos morreram ali mesmo onde estavam, suas gargantas cortadas antes que os outros pudessem sequer pegar suas armas.
Se algum deles tivesse lutado algum dia com um Kirin, não teriam se sentido tão confiantes por estarem em maior número, não a ponto de ficarem tão perto assim dele com as espadas embainhadas. Eles sacaram suas armas bem rapidamente depois disso. Os dois corpos desabaram no chão, e outros dois anjos estavam sangrando antes mesmo de os aços retinirem. Então a luta começou. Nithilam, como os serafins diziam. Caos.
Ziri estava em minoria, mas usou isso a seu favor. Movia-se tão rápido no kata rodopiante das lâminas de lua crescente que os serafins mal sabiam onde procurá-lo. Tentavam segui-lo, e ele se afastava. Os anjos acabavam entrando no caminho dos golpes dos outros. Para Ziri era fácil: todos eram inimigos. Todos eram alvo. Suas lâminas de lua crescente pareciam se multiplicar no ar; era para isso que tinham sido feitas, não para cortar sorrisos, mas para enfrentar vários oponentes ao mesmo tempo, bloqueando, retalhando, trespassando. Mais dois anjos caíram: intestinos perfurados, tendões cortados.
— Mantenham-no vivo! — urrou Jael, e Ziri percebeu, mesmo em meio ao turbilhão confuso de sangue e aço, que aquilo não era uma boa notícia.
Disparou para cima deles, agarrando os punhos das facas com força para que o sangue não escorresse por baixo dos dedos, deixando-as escorregadias. Depois atacou-os em pleno voo, levando a luta para o ar, e cortou e matou, sem ver de fato alguma esperança de escapar. Afinal, eram soldados serafins; ele era rápido, mas eles estavam longe de serem lentos, e eram muitos. Não era a primeira vez em sua vida que desejava ter hamsás. As marcas poderiam ter enfraquecido seus oponentes, dando-lhe alguma chance. Quando o desarmaram, o número de anjos tinha sido reduzido à metade, e ele só tinha feridas superficiais — o que ele atribuía tanto à disciplina dos inimigos quanto à própria agilidade. Eles o queriam vivo, e por isso Ziri assim permanecia.
Estava de joelhos diante deles, e ninguém ria agora. Jael foi em sua direção. Tinha perdido sua presunção; a expressão estava rígida e a cicatriz muito branca em contraste com o vermelho de seu rosto enfurecido. Ziri viu que receberia um chute e se curvou para absorver o golpe, mas ainda assim o impacto no estômago foi forte e o deixou sem ar.
Ofegante, transformou a respiração difícil em risada.
— Mas por que isso? — perguntou ele, endireitando-se. — Se fiz algo que o ofendeu...
Jael o chutou de novo. E de novo. Ziri já não conseguia mais rir. Foi só quando já estava sufocando com o sangue que Jael se aproximou para arrancar o turíbulo das suas costas. Seu olhar de triunfo era duro, e Ziri sentiu a primeira pontada de medo.
— Tenho uma história muito divertida também, só que a minha é verdadeira. Encontrei seu Comandante e Brimstone recentemente, e ateei fogo neles assim como fiz com seus companheiros, e é por isso que sei que estão mortos e acabados, e que isso — ele ergueu o artefato — só pode estar sendo levado para outra pessoa. Então... quem?
Ziri podia ouvir o sangue pulsando estranhamente alto em sua cabeça. Começou a entender o que estava acontecendo: os serafins tinham preparado uma armadilha na clareira e esperado para ver se alguém apareceria para colher as almas. Antes os rebeldes eram fantasmas, como o Lobo dissera; agora eram reais. Ele cortara suas mãos.
— Perdão — disse Ziri, fingindo não entender. — Quem o quê, mesmo?
Jael olhou para baixo. Revirou as cinzas com a ponta da espada.
— Você vai me contar quem é o ressurreicionista — disse ele. — Quanto mais cedo, melhor. Para você, é claro. Pessoalmente, eu não me importo se isso der... um pouco de trabalho.
Bem, aquilo não parecia nada divertido. Ziri não tinha nenhuma experiência com tortura, e, quando pensava nisso, havia um rosto que lhe vinha à mente.
O de Akiva.
Nunca se esqueceria daquele dia. A ágora, toda Loramendi presente para assistir, e o amante de Madrigal forçado a ver tudo também. O serafim ficara de joelhos, como Ziri estava naquele momento, enfraquecido de tanto apanhar, e por causa dos hamsás, e arrasado pela tristeza. Ele revelara alguma coisa para o Lobo? Ziri achava que não, e, por mais estranho que fosse, aquilo lhe deu forças. Se o anjo pudera resistir à tortura, ele também conseguiria. Para proteger Karou e, com ela, a esperança dos quimeras, ele achava que poderia aguentar qualquer coisa.
— Quem é? — perguntou de novo o capitão.
— Chegue mais perto — replicou Ziri, com um sorriso cruel. — Vou falar bem no seu ouvidinho.
— Ah, que bom. — Jael parecia satisfeito. — Tive medo de que você fosse facilitar as coisas. — Ele fez um sinal para seus soldados, e dois se aproximaram para pegar Ziri pelos braços. — Segurem-no. — E, cravando o cajado do turíbulo na terra escura, começou a arregaçar as mangas. — Estou me sentindo inspirado.