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ALGUNS LUXOS

— Eu disse que nenhum humano seria ferido. — A voz de Karou, já rouca de tanto argumentar, lhe soou como um rosnado. — Essa foi a primeira condição. Nenhum humano ferido. Ponto final.

Ela andava de um lado para o outro no pátio. Os quimeras estavam reunidos na galeria e no chão, alguns se aquecendo ao sol, outros abrigados na sombra.

Como se estivesse lhe ensinando uma verdade dura da vida, Thiago retrucou:

— Na guerra, Karou, alguns luxos devem ser deixados de lado.

— Luxos? Como não matar pessoas inocentes? — Ele não falou nada. Era exatamente o que queria dizer. Karou sentiu um nó no estômago. — Ah, não. Definitivamente não. Quem quer que sejam, eles não têm nada a ver com a sua... — Ela parou e se corrigiu: — Com a nossa guerra.

— Mas se eles colocarem em risco nossa localização, passam a ter tudo a ver com isso. Você devia saber desse risco, Karou.

Ela sabia? Porque é claro que ele tinha razão: bastaria que um andarilho saísse contando histórias para atrair a atenção de toda a mídia para a casbá. E o que aconteceria então? Ela não gostava de pensar nisso. Os militares, claro. Era uma vez uma época em que uma história sobre monstros no deserto podia ter sido encarada apenas como “viagem” de mochileiros que fumaram muito haxixe, mas os tempos tinham mudado. Então, e agora?

— Eles podem passar direto — disse ela.

Mas era uma esperança vã, os dois sabiam disso. Fazia uns quarenta graus lá fora e não havia outro destino em um raio de quilômetros. Além disso, mesmo à distância dava para ver que aquelas pessoas não estavam indo muito bem no percurso.

Subiam com dificuldade, parando a cada minuto para se abaixar com as mãos nos joelhos, tomar água de cantis, e então... a menor delas se curvou, com ânsia de vômito. Estavam muito distantes para que Karou pudesse ouvir alguma coisa, mas era óbvio que corriam o risco de terem uma insolação, se é que já não era o caso. Os andarilhos ficaram recurvados juntos por um bom tempo, até recomeçarem a caminhada. Karou andava de um lado para o outro. Eles precisavam de ajuda, mas aquele com certeza não era o lugar onde encontrariam isso. Se ao menos soubessem para onde estavam indo... Mas, mesmo que soubessem, os dois claramente não estavam em condições de voltar.

Thiago estava calmo, sempre tão enlouquecedoramente calmo — até perder a cabeça, mas enfim —, porque os andarilhos não representavam nenhum perigo iminente. Estava tranquilo em deixá-los se aproximar. E então o quê?

O fosso?

Mais uma vez Karou sentiu um aperto no estômago. Dava para sentir o cheiro do fosso hoje. Talvez porque tivesse carne nova — Bast finalmente tinha feito a caminhada com o Lobo. Karou já fizera o novo corpo dela; estava ali no chão naquele instante — e talvez porque a brisa, apesar de fraca, fosse insistente e viesse daquela direção. Parecia estar dizendo: Aqui, sinta o cheiro. Aqui, sinta o cheiro, repetidamente.

Karou parou de andar de um lado para o outro e se postou diante do Lobo. Endireitou os ombros e tentou não tremer, tentou soar como alguém a ser levada em consideração quando disse:

— Vou até lá ajudá-los. Dou a volta com eles pelo portão dos fundos até o armazém. — Lá era frio e isolado. Era onde a caminhonete ficava. — Dou um pouco d’água para os dois, eles não veem ninguém, depois eu os levo de volta até a estrada. — Ela fez uma pausa. Ela ouvia o que dizia e sabia que não estava transmitindo toda a firmeza que gostaria. — Você não vai precisar fazer nada — continuou, mas sua voz falhou, e ela se xingou mentalmente. Que hora perfeita para parecer uma adolescente. — Eu cuido disso.

— Muito bem — disse Thiago. Como era forçada aquela expressão em seu rosto. Karou quase podia ver os cordões que mantinham aquela máscara de benignidade no lugar, e isso a deixava furiosa. Falar com ele era como dar murros em uma parede. — Vá em frente, então.

E ela foi, tentando ter ao menos a dignidade de não sair pisando duro como uma criança impotente. Passou pelo portão, e a brisa estava mais forte ali: um cheiro podre, algo errado no ar. Corpos se putrefazendo em um fosso, e, se ela não os ajudasse, os andarilhos acabariam lá também, junto com qualquer outro humano que tivesse o azar de perambular até aquele lugar desolado. O que ela fizera, trazendo os rebeldes para este mundo?

Mas então pensou em Eretz, e em quais teriam sido as chances dos rebeldes se ela não tivesse feito isso — e as chances de todos os quimeras —, e já não sabia mais o que era certo. Karou precisava acreditar que os rebeldes tinham alguma humanidade. Eram soldados, não assassinos cruéis, e também não eram animais selvagens com um apetite irracional. Claro que Amzallag não machucaria ninguém sem motivo, assim como Balieros, ou Ziri, ou a maioria dos outros. Mas bastava pensar em Razor — e naquele saco — para saber que tudo podia acontecer.

Teve que se lembrar de manter os pés no chão quando saiu da casbá. Agora seu primeiro impulso era voar, de tão desacostumada que estava à sociedade humana, e não era fácil caminhar naquele terreno irregular.

Percebeu, então, que seu cabelo estava descoberto. E se os andarilhos a reconhecessem? Eles realmente poderiam ser perigosos. Mas o que fazer?

Não demoraram muito para vê-la. Em toda a encosta que descia da fortaleza, ela seria a única coisa em movimento à vista. Ainda estavam muito afastados para que Karou os visse com clareza, mas ela ouviu o grito que lhe foi dirigido, e parou de andar como se tivesse atingido uma parede. O som correu por sobre as rochas e arbustos, um grito a plenos pulmões que se diluiu na distância.

A voz.

Não era possível. Mas o que ela ouvira fora “Karou!”, e a voz era a de Zuzana. Àquela altura, Karou já tinha aprendido que “possível” e “impossível” eram, na melhor das hipóteses, categorias fluídas. Ah, meu Deus, não, pensou, olhando fixamente para as figuras e vendo o que nunca esperava ver: Zuzana e Mik, ali.

Não eles, não ali.

Como? Como?

E isso importava? Eles estavam ali, e correndo perigo — a insolação, os quimeras. Karou sentiu o coração disparar e como que inchar dentro do peito; de pânico, de... alegria... e mais pânico, e mais alegria, e uma onda de raiva — no que eles estavam pensando? —, e então ternura, espanto, e ela estava com os olhos molhados quando seus pés deixaram o chão, e então seguiu a encosta voando e apertou os dois em um abraço que ameaçava terminar o que o calor começara.

Eram mesmo eles. Karou recuou um pouco para olhar para os dois. Zuzana sucumbira de um alívio somado à exaustão. Marcas de lágrimas se destacavam em suas bochechas vermelhas, e ela ria e chorava, esmagando as mãos de Karou com a força de um torno — apertando bem na parte machucada, o que a deixou sem ar.

— Caramba, Karou — exclamou Zuzana, a voz esganiçada e rouca de tanto ter gritado. — Logo no deserto? Não podia ter sido Paris ou algo do tipo?

E Karou também ria e chorava, mas Mik não — nem um, nem outro. Ele apoiava Zuzana com a mão em suas costas, o rosto tenso de preocupação.

— Podíamos ter morrido. — disse ele. As garotas ficaram em silêncio. — Eu nunca devia ter concordado com isso.

Depois de um segundo, Karou concordou.

— Não, não devia. — E então observou a paisagem do deserto com novos olhos, imaginando como seria chegar até ali a pé. — No que vocês estavam pensando?

— O quê? — Mik a encarou, depois olhou para Zuzana e então de volta para Karou. — Você não queria que a gente viesse?

Karou ficou surpresa.

— É claro que não. Eu nunca teria... Meu Deus. Como foi que vocês me acharam, para começo de conversa?

Como? — Mik se sentia desorientado de tanta frustração. — Zuze decifrou a sua charada, ora essa.

Charada?

— Que charada?

— A charada — disse Zuzana. — Sacerdotisa de um castelo de areia, em uma terra de poeira e luz das estrelas.

Karou olhou para ela sem entender. Lembrava-se de haver escrito aquele e-mail; tinha sido logo depois de trazer os quimeras pelo portal até a casbá, quando estava em Ouarzazate à procura de suprimentos para Aegir.

— Então foi assim que vocês me encontraram? Ah, Zuze. Sinto muito. Não foi minha intenção atrair vocês até aqui. Nunca pensei que...

— Ah, você só pode estar brincando. — Mik levou as mãos à cabeça e se virou de costas. — Viemos até o fim do mundo, e você nem nos quer aqui?

Zuzana parecia arrasada. Karou se sentiu péssima.

— Não é que eu não queira vocês aqui! — Ela puxou a amiga para mais um abraço esmagador. — Eu quero. Tanto. Tanto. É só que... eu nunca teria trazido vocês para... isso. — E apontou para a casbá.

— O que é isto? — perguntou Zuzana. — Karou, o que você está fazendo aqui, meu Deus?

Karou abriu a boca, depois voltou a fechá-la, duas vezes, como um peixe. Por fim, disse:

— É uma longa história.

— Então pode esperar — disse Mik com firmeza. Karou nunca o tinha visto com raiva antes, mas seu rosto estava vermelho de irritação, os olhos apertados de maneira acusadora. — Podemos, por favor, tirá-la do sol?

— É claro. — Karou respirou fundo. — Vamos.

Colocou uma das mochilas deles no ombro e foi arrastando a outra, enquanto Mik ajudava Zuzana a subir a encosta. Karou não os levou pelo caminho mais longo, que contornava o armazém, em vez disso foi direto até o portão principal, onde eles pararam, olhando fixamente.

Mais uma vez, Karou viu sua vida com novos olhos, imaginando como aquelas criaturas deviam parecer para humanos.

Thiago estava de pé, com uma expressão perplexa, Ten logo atrás. Ele quase poderia se passar por humano, mas Ten já era outra história, com sua cabeça de lobo e seus ombros curvados. E os outros, então, eram um show de horrores: soldados reunidos na galeria e no chão, até mesmo no telhado, estranhamente imóveis a não ser pelo chicotear de um rabo aqui, o agitar de uma asa ali. Todos em tamanhos monstruosos, com muitos e variados olhos, sem piscar. Razor, mais próximo do que seria confortável para Karou, açoitou sua língua de serpente rapidamente, e Karou se viu de prontidão, os pés já quase saindo do chão, para o caso de ele resolver saltar sobre os visitantes.

Mik falou, em um sussurro rouco:

— Só esclarecendo para eu poder relaxar um pouco: Karou, seus amigos não vão comer a gente, vão?

Não, pensou Karou. Não vão. E respondeu, também em um sussurro:

Acho que não. Mas tentem não parecer muito apetitosos, ok?

Ao que foi recompensada com uma risadinha de Zuzana.

— Isso pode ser um problema, considerando que somos incrivelmente apetitosos. — E meio segundo depois, completou, tensa: — Espere aí. Eles não entendem tcheco, entendem?

— Não — respondeu Karou.

O tempo todo ela olhava para Thiago, e ele para ela. O mau cheiro do fosso pairava no ar, e foi naquele momento que o pesadelo surreal que era a vida dela deixou de existir, desapareceu de repente, e tudo se tornou real. Aquela era sua vida, não um sonho sinistro do qual acordaria; tampouco era o purgatório, e sim sua vida real, no mundo real — nos mundos reais —, e agora seus amigos haviam entrado naquela vida também, que agora era deles.

Isso mudava as coisas.

— Estes humanos são meus convidados. — Karou sentiu que as palavras vinham de alguma parte firme e decidida dentro de si que não existia uma hora antes. Não falou alto, mas havia uma mudança significativa em sua voz. Vinda daquela parte, sua voz soava forte e verdadeira; não era persuasiva, ou desesperada, ou antagônica. Apenas era. Aproximou-se do Lobo, mais do que era de seu agrado. Forçou-se a invadir o espaço físico dele, como ele fazia com ela, e ergueu o rosto. — As vidas deles não são um luxo. São meus amigos, e eu confio neles.

— É claro — disse Thiago, sorrindo como um perfeito cavalheiro. — Isso muda tudo.

Ele assentiu para Mik e Zuzana e até os saudou, mas seu sorriso... simplesmente era errado. Falso, como se ele o tivesse aprendido em um livro.