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ASSASSINOS E AMANTES SECRETOS

O dia passou, a noite chegou, e Karou se viu diante da indesejável tarefa de explicar a situação do banheiro a Zuzana. Quer dizer, a situação da falta de banheiro.

Para sua surpresa, Zuzana disse apenas:

— Bem, isso explica o cheiro.

Pelo visto Karou tinha mesmo neutralizado a capacidade deles de se surpreenderem. Decidiu que o melhor seria irem até o rio para que os dois pudessem tomar banho e cuidar de suas necessidades com alguma privacidade. “Privacidade” entre muitas aspas, na verdade. Thiago os encontrou quando estavam saindo e, com seu jeito forçado e antiquado de ser cortês e excessivamente solícito, insistira para que Ten os acompanhasse.

— Só para garantir a segurança de vocês — disse ele.

Segurança, pensou Karou. Claro.

— Não se preocupe — disse ela. — Não vou tentar fugir.

— É claro que não.

E ela sabia que não poderia, nem se quisesse. Não conseguiria escapar das criaturas que tinha feito. Aladas, poderosas e com sentidos apurados, eles os encontrariam em um piscar de olhos. Que belo trabalho eu fiz, pensou enquanto conduzia os amigos portão afora e descia até o rio, com a mulher-lobo logo atrás deles. Com o calor do dia já dissipado, a água fria não era muito convidativa — sem mencionar que a presença de Ten, encurvada em uma pedra ali perto, não os incentivava a tirar a roupa —, então eles não tomaram banho propriamente, só jogaram um pouco de água no corpo, esfregaram o rosto e o pescoço e se deitaram em uma pedra para secar.

— Banho de estrelas — disse Karou.

— Sério — disse Zuzana, estendendo a mão para o alto como se pudesse tocar as estrelas com as pontas dos dedos. — Sempre achei que fotos de céus assim ou não eram reais, ou tinham sido manipuladas.

— Como aquelas que mostram uma lua gigante — acrescentou Mik.

Karou se virou para os dois.

— Já contei a vocês que existem duas luas em Eretz? E uma delas é bem grande assim mesmo.

— Duas luas?

— Sim. Os quimeras... nós as adoramos.

Ela não, na verdade; não mais. Houvera uma época em que ela acreditara na existência de uma força em ação no universo, mas, se de fato existia, essa força a abandonara no templo de Ellai.

— Nitid é a lua grande. Ela é a deusa de praticamente tudo.

— E a outra?

— Ellai — respondeu Karou, pensando no templo, no shh-shh das evangelinas, no sussurro da fonte sagrada a correr. No sangue. — É a deusa dos assassinos e dos amantes secretos.

— Legal — disse Zuzana. — Eu escolheria essa para adorar.

— Aham, sei. E o que você é, assassina ou amante secreta?

— Bem — disse Zuzana, com uma voz melosa —, meu amor não é segredo. — E girou para beijar Mik. — Acho que isso faz de mim uma assassina. E você? — perguntou, virando-se de volta para a amiga.

Karou sentiu um aperto na garganta.

— Assassina eu não sou.

Imediatamente se arrependeu de ter dito isso. O silêncio que se seguiu estava tão cheio de Akiva que ela quase podia sentir o cheiro dele. Idiota, pensou, repreendendo-se por tocar no assunto; era como se ela quisesse falar sobre ele. O silêncio se estendeu, e por um instante ela achou que Zuzana fosse deixar aquela passar; já estava até aliviada. Não queria falar de Akiva. Não queria pensar nele. Deus do céu, queria nunca tê-lo conhecido, queria poder voltar no tempo até aquele dia em Bullfinch e seguir para outro lado no campo de batalha enquanto ele se esvaía em sangue na areia até morrer.

— Queria que você me contasse o que aconteceu — disse Zuzana.

— Não quero falar sobre isso.

— Karou, você está tão infeliz. De que adianta ter amigos se eles não puderem ajudá-la?

— Nesse assunto não há nada que você possa fazer para me ajudar, acredite.

— Vamos, me dê uma chance.

O corpo todo de Karou se retesou.

— Ah, é? Está bem — disse ela, olhando para as estrelas. — Vamos ver. Sabe o fim de Romeu e Julieta, quando ela acorda na cripta e Romeu já está morto? Ele achou que ela estivesse morta e por isso se matou bem ao lado dela.

— Lembro. É incrível. — Houve uma pausa, seguida de um “ai!”, que sugeria que Mik tinha lhe dado um cutucão.

Karou ignorou a amiga.

— Bem, imagine que ela acordou e ele ainda estava vivo, mas... — Engoliu em seco, esperando passar o tremor na voz. — Mas tinha matado toda a família dela. E incendiado sua cidade. E matado e escravizado seu povo.

Depois de um longo silêncio, Zuzana falou, em um fiapo de voz:

— Ah.

— Pois é — disse Karou, e as estrelas sumiram quando ela fechou os olhos.

* * *

O alerta da sentinela soou quando eles estavam subindo de volta a encosta, um troar profundo que Karou reconheceu como sendo de Amzallag, e ela levantou voo na mesma hora, estreitando os olhos na direção do portal. A princípio, não viu nada. Seriam mais humanos? Não. Amzallag apontava para o céu.

E então as estrelas cintilaram. Uma figura veio cortando a noite, no começo visível apenas por cobrir as estrelas. Uma figura, sozinha — uma, somente uma? —, e... batia as asas com dificuldade e um ritmo irregular. Lançava-se para a frente, caía, parava, avançava mais um pouco, a dor evidente em cada movimento. Soldados ergueram-se no ar, indo ajudá-lo — foi aí que Karou viu que era ele. Era Ziri. Vivo. Ela queria ir até lá também, mas seus amigos estavam ali embaixo, e de qualquer forma ela não imaginava que Ziri fosse querer vê-la, não depois do que ela lhe dissera da última vez. Então ela voltou a pousar e disse:

— Vamos. Depressa.

Ten quis saber o que Karou tinha visto, então ela lhe contou, e a mulher-lobo saiu trotando à frente enquanto Karou segurava os cotovelos de Zuzana e Mik e os fazia subir correndo a encosta, praticamente levantando-os do chão de tanta pressa.

— O que houve? — perguntou Zuzana. — Karou, o que foi?

— Só venham.

Quando chegaram perto, Nisk e Emylion estavam pousando com Ziri, diante de Thiago. Suas asas pendiam frouxas, e o Lobo se ajoelhou para apoiá-lo. Karou sentia os ouvidos zunirem enquanto procurava de onde vinha o sangue, o sangue que cobria o corpo inteiro de Ziri. De onde vinha? Ele estava curvado, a cabeça baixa, os braços retesados contra o corpo, e... havia algo de errado com suas mãos. Estavam escuras de sangue, rígidas e recurvadas, como garras — ah, céus, o que tinha acontecido com as mãos dele? —, e então ele levantou a cabeça, e seu rosto...

Karou ficou sem ar.

Às suas costas, ouviu Zuzana dar um grito.

Ziri estava mais branco que neve, e isso foi o que Karou conseguiu ver, mas o restante estava... confuso. Ele estava pálido e coberto de cinzas — seu queixo, sua boca... os lábios estavam pretos, cobertos de coágulos e crostas, mas nem era isso o pior. Os olhos de Karou se desviaram, perderam o foco, e ela os forçou de volta.

O que tinham feito com ele?

Mas é claro. Claro que tinham feito aquilo. Tinham cortado Ziri como eles cortaram seus inimigos, mas ele ainda estava vivo, exibindo aquele sorriso terrível. Ele tinha sido... entalhado. E sangrava, pálido devido ao choque e à perda de sangue. Seus olhos procuraram por ela e a acharam e se focaram em um estalo — um estalo repentino quando seus olhos se encontraram —, e os dela se arregalaram quando viu que ele lhe dizia coisas com aquele olhar, mas ela não conseguia entender. Faltavam as palavras, só havia a urgência.

Então ele pendeu para a frente e Thiago o pegou, mas não antes que um de seus longos chifres batesse no chão, a ponta se quebrando com um barulho que pareceu um tiro. Ten aproximou-se às pressas e pegou o outro braço de Ziri, e, pendurado entre os dois, desmaiado, ele foi erguido e levado embora. Karou pegou o pedaço de chifre — por que fez isso, não sabia — e os seguiu a passos curtos e apressados, fazendo um gesto para que Zuzana e Mik fossem também.

— Esperem — disse ela quando Thiago e Ten chegaram à porta do alojamento onde os soldados dormiam. — Levem-no para o meu quarto. Acho que... Acho que talvez eu possa curá-lo.

Thiago assentiu e mudou de direção. Ten o acompanhou, e Karou, atrás deles, sentiu um formigamento na nuca e se virou. Observou atentamente o caminho atrás de si. O chão estava cheito de detritos; o muro atrás era alto e as estrelas brilhavam, mas não havia nada além disso.

Então se virou de novo e se apressou para alcançá-los.

* * *

Akiva caiu de joelhos. Não tinha respirado desde que a vira. Arfava agora, e seu encanto falhou, e, se Karou não tivesse ido embora, teria visto a forma dele recortada no ar, suas asas delineadas em brasas e centelhas. A uns cinco metros dela.

De Karou.

Ela estava viva.

Em breve todo o resto faria sentido. Em breve Akiva perceberia o significado de tudo aquilo — o lugar, os quimeras, o que ela dissera; uma coisa levaria à outra e o destruiria — em um estalo repentino e doloroso. Mas durante aqueles instantes, antes de respirar, o mundo pareceu silencioso e tão radiante, e Akiva só conseguia pensar em uma coisa, e a ela se agarrou, querendo viver para sempre naquele momento.

Karou estava viva.