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UM SORRISO DE VERDADE

Todo o cuidado que Karou vinha tendo em esconder seus hematomas foi por água abaixo quando arregaçou as mangas e colocou a maleta de ferramentas na mesa. Mas foi um choque pequeno, diluído por outros maiores, e Zuzana não disse nada. Karou não olhou para ela; não queria ver sua reação. Procurou se concentrar em Ziri.

Thiago e Ten o deitaram na cama — sem chance de Zuzana e Mik dormirem ali naquela noite —, e Ten foi buscar água fervida para lavar as feridas. Ziri continuava inconsciente, o que para ele era uma bênção, já que Karou não tinha nada capaz de aliviar a dor para lhe dar. Por que teria? Ela não era uma curandeira.

Mas... talvez fosse; afinal, ela podia fazer o que um curandeiro comum não podia — pelo menos em teoria. A mesma magia usada para conjurar um corpo podia também emendar e curar. Era possível até reparar um corpo morto e devolver-lhe a alma, embora apenas se isso fosse feito imediatamente após a morte, antes que houvesse o menor sinal de decomposição, e se os ferimentos não tivessem sido graves. Como os soldados não costumavam morrer na porta do ressurreicionista, a colheita de almas era a alternativa mais prática. Além do mais, Brimstone explicara que geralmente era mais fácil conjurar uma nova forma do que recuperar uma antiga.

Seria, segundo ele, como remendar um rasgo em uma malha de lã: o novelo de lã, antes uma fibra contínua no momento da criação original, agora estaria repleto de interrupções, cada uma delas um emaranhado de pontas soltas e costuras desfeitas. Para serem reparadas, essas interrupções exigiam uma grande habilidade, e era improvável que o remendo resultasse em um conjunto exatamente igual ao de antes.

Karou se ajoelhou para examinar os ferimentos de Ziri. Por mais terrível que parecesse o sorriso, ela tinha certeza de que conseguiria dar um jeito. Os cortes retos tinham sido feitos com firmeza, por uma lâmina bem afiada. Talvez ficassem algumas cicatrizes, mas e daí?

Thiago se inclinou por cima do ombro dela.

— Isso... são cinzas? — perguntou ele.

Karou percebeu que sim. Eram cinzas o que escurecia a boca de Ziri, inclusive por dentro.

— Parece que ele comeu isso — disse ela.

— Ou foi forçado a comer — replicou Thiago sombriamente.

Forçado a comer cinzas? Por quem? Karou pegou as mãos de Ziri e abriu-as com cuidado. Quando viu o que tinham feito com ele, deixou escapar um leve gemido de angústia. As mãos haviam sido perfuradas, como se Ziri tivesse sido crucificado. A esquerda estava completamente rasgada, do meio para fora, no tecido entre o terceiro e o quarto dedos, como se ele tivesse feito força para se soltar. Só de imaginar a dor, Karou se sentiu zonza, um ruído branco zunindo em seus ouvidos. Delicadamente, ela colocou as mãos de Ziri de volta sobre o peito.

— Então. Você pode curar as mãos dele? — perguntou Thiago.

Karou notou o tom cético em sua voz, e não o condenou por isso. Mãos eram partes muito complexas do corpo. Na escola de artes, tivera que desenhá-las e legendá-las nas aulas de anatomia: todos os vinte e nove ossos, dezessete músculos só na palma, e... mais de uma centena de ligamentos.

— Não sei — admitiu ela.

— Se não puder, é melhor que me diga logo.

Ela se sentiu gelar.

— Por quê? — perguntou, embora já soubesse a resposta.

— Se Ziri não puder usar as mãos, esse corpo não tem mais utilidade para ele... nem para mim.

— Mas é o corpo original dele.

Thiago balançou a cabeça, não de todo desprovido de compaixão.

— Eu sei. E, por mais raro que isso seja, você acha que ele vai lhe agradecer por recuperá-lo se não puder mais empunhar as facas?

É só isso que importa?, perguntou-se Karou, e a triste resposta foi: sim.

Sentiu que o Lobo a observava, mas manteve os olhos em Ziri. Pobre Ziri, ferido de maneira tão brutal. Lindo Ziri, com pernas e braços longilíneos, o gracioso eco de um povo morto. Que corpo monstruoso Thiago pediria para substituir aquele, tão perfeito? Isso não ia acontecer. Ela não deixaria Ziri ir para o fosso. Não mesmo.

— Vou curá-lo.

— Se for mais rápido fazer um novo... — começou Thiago.

— Eu consigo — retrucou Karou acidamente, e o Lobo se recostou.

Quando ela se virou em sua direção, ele a avaliava com o olhar.

— Está bem, então. Tente. Mas antes preciso interrogá-lo.

— O quê? Acordá-lo? — Karou balançou a cabeça em negativa. — É melhor assim...

— Karou, o que você acha que aconteceu com ele? Ziri foi torturado. Preciso saber por quem, e se ele revelou alguma coisa.

— Ah.

Ela então compreendeu que era importante, e, por mais que odiasse despertar Ziri para a dor, ela o acordou, o mais delicadamente possível.

Foi terrível ver os olhos dele piscarem até se abrirem por completo, turvos de dor. Olhos que procuraram o rosto dela, depois se dirigiram para o Lobo e de volta para ela. Mais uma vez Karou viu neles a urgência que percebera quando Ziri chegara, e teve certeza de que ele queria lhe contar alguma coisa.

Thiago, com seu estilo todo próprio, ajoelhou-se ao lado de seu soldado para interrogá-lo.

— Quem fez isso? — perguntou em um tom reconfortante, mas logo ficou claro que Ziri não conseguia falar, não com os músculos das faces rompidos.

O Lobo teve, então, que pensar em perguntas que Ziri pudesse responder fazendo que sim ou que não com a cabeça, o que claramente lhe causava dor.

— Você contou alguma coisa a eles? — perguntou Thiago, entendendo apenas que “eles” eram serafins.

Ziri fez que não, de forma resoluta, sem hesitação.

— Muito bem. E... o restante da equipe?

Ziri fez que não de novo. Seus cílios se encheram de lágrimas, e Karou entendeu que estavam mortos. Ela já imaginara, mas ainda assim a notícia a atingiu como um soco. Cinco soldados, mortos. Balieros. Ixander. Lembrou-se da inesperada delicadeza da alma de Ixander, de como tinha desejado fazer algo melhor para ele do que aquele corpo monstruoso.

— Conseguiu colher as almas? — perguntou o Lobo, e Karou se inclinou para a frente, esperançosa.

Ziri hesitou. Seus olhos se focaram em Karou. Desesperados. Confusos. Não fez que sim nem que não. O que aquilo significava? Thiago perguntou de novo, mas Ziri piscou e fechou os olhos, os cílios fazendo as lágrimas rolarem por seu rosto sujo de cinzas, e ele gemeu. Estava perdido em meio à dor, e, após mais algumas tentativas, Thiago teve que desistir, agora mais tranquilo ao saber que a posição deles não fora comprometida. Ficou de pé.

— Vá em frente — disse a Karou. — E boa sorte.

Quisera ela poder dizer que não tinha a ver com sorte, mas na verdade também rezava para que funcionasse. Quase queria pedir ajuda a Nitid.

— Obrigada.

Depois que Thiago saiu, ela pegou alguns tornos em cima da mesa. Ziri fez um som confuso, e, quando Karou olhou, viu que ele balançava a cabeça, agitado. Só entendeu quando ele bateu no peito com as mãos mutiladas. Ele queria oferecer sua dor.

— Ah, não. Não. Você teria que permanecer consciente para pagar o dízimo...

Ele assentiu, bateu de novo no peito, tentou falar. Seu rosto se contorceu, fazendo o sangue voltar a brotar dos cortes.

— Pare — gritou Karou, segurando as mãos dele para impedi-lo.

Os dedos se curvaram, e ele segurou a mão dela com força apesar da imensa dor que aquilo lhe causava. Assentiu de novo.

Os olhos de Karou estavam cheios d’água.

— Está bem — disse ela, limpando as lágrimas. — Está bem.

Ten voltou com água e alguns panos, e Karou começou a limpar os ferimentos do quimera. Karou tinha um pouco de antisséptico, e, à medida que o passava nos ferimentos, sentia a dor de Ziri se amplificar no ar a sua volta, quase como correntes elétricas. Ela precisava de ajuda; era um terrível desperdício deixar aquilo tudo se dissipar enquanto limpava as feridas. Virou-se para Ten, mas só de olhar para as mãos desajeitadas e brutas da mulher-lobo, desistiu. Não podia confiar os ferimentos de Ziri a ela. Olhou por cima do ombro e viu que Zuzana e Mik continuavam ali, junto à parede, do outro lado do quarto. A garota estava pálida, observando tudo atentamente com os olhos arregalados. Sem dúvida não era aquilo que ela tinha em mente quando se dispusera a ser seu Igor, uma assistente de ressurreicionista, mas suas mãos eram pequenas e gentis, e Zuzana tinha anos de prática com trabalhos delicados.

— Zuze, acha que pode me ajudar? Não precisa, se não se sentir confortável...

— O que posso fazer? — interrompeu, indo para perto de Karou.

Ten quis se oferecer, mas Karou dispensou-a e explicou a Zuzana do que precisava. Embora tenha ficado ainda mais pálida, Zuzana pegou uma gaze limpa, a bacia d’água e o antisséptico e olhou para Ziri.

— Oi — disse ela. Depois, para Karou: — Como se diz oi em quimera?

Karou falou, e ela repetiu, e embora não pudesse responder, Ziri assentiu.

— Foi ele que você desenhou. O da sua tribo.

— Sim.

— Está bem. Vamos começar.

Karou assentiu para encorajá-la e observou-a por um instante para ter certeza de que Zuzana ficaria bem. Então respirou fundo, mergulhou na terrível dor de Ziri e começou a reuni-la e a utilizá-la.

* * *

Ela não sabia por quanto tempo estivera perdida dentro de si mesma, naquele estranho estado em que trabalhava a magia de Brimstone. Não era a mesma sensação meditativa, contínua e fluida, de quando conjurava um novo corpo, e sim uma tentativa insegura de remendar e reconstruir algo que um dia tinha sido completo. Muito tempo parecia ter se passado; ela estava em um curioso estado de suspensão, como se estivesse embaixo d’água e, embora precisasse subir à tona para respirar, não subia. Sair daquele estado foi como emergir de águas escuras e profundas. Ela piscou várias vezes, respirou. O sol tinha nascido; as venezianas estavam fechadas, mas a luz vazava pelas frestas, e, embora os muros da fortaleza protegessem o quarto do calor mais forte, o frescor da noite tinha acabado; e parecia que boa parte do dia já tinha se passado.

— Karou. — Era a voz de Zuzana, abafada e reverente. — Isso foi... incrível.

O quê? Karou tentou fazer os olhos ganharem foco. Estavam secos, como se ela não piscasse houvesse horas, o que talvez fosse verdade. Ela olhou em volta. Ten tinha ido embora. Zuzana ainda estava ao seu lado; e Mik a segurava do outro lado, o braço em volta de Karou. Ela percebeu, com enorme cansaço, que ele era praticamente a única força que ainda a mantinha de pé. A exaustão era uma força equivalente à gravidade, inexorável. Nunca sentira a cabeça tão pesada.

Finalmente olhou para Ziri, que também ficara consciente por horas, alimentando-a com sua dor, e viu que ele olhava para ela de volta. Sorriu. Foi um sorriso completamente esgotado, cheio de tristeza e de outras coisas que ela não conseguia entender, mas um sorriso genuíno, não uma mensagem feia cortada na pele.

Tinha conseguido.

Ela comemorou ao ver o rosto dele. Conseguira sanar os ferimentos, e quase sem deixar cicatrizes. E as mãos? Aquele seria o verdadeiro teste. Pegou suas mãos, segurou-as e as observou com atenção. A princípio prendeu o fôlego, porque as cicatrizes eram feias e nodosas, e ela achou que tinha falhado, mas então Ziri flexionou os dedos e os movimentos foram fluidos, e Karou pôde respirar novamente. Deixou escapar um sorriso e tentou se levantar, mas a vertigem a dominou.

O quarto tombou para o lado.

E por um instante não havia mais nada além disso.