50
Zuzana sentou na beirada da cama. Karou dormia; a pele em torno de seus olhos azul-escura, sua respiração era regular e profunda. Ziri dormia ao lado de Karou, a respiração em sincronia com a dela. Zuzana tinha lavado o rosto da amiga com água fria, assim como as mãos e os pulsos, antes de estender os braços dela ao lado do corpo.
— Ela precisa descansar — falou para Mik. — E eu preciso comer. Duvido que você também não esteja morrendo de fome.
Em resposta, Mik abriu a mochila e tirou algo dela.
— Aqui — disse ele.
Zuzana pegou. Era — ou tinha sido — uma barra de chocolate.
— Derreteu na nossa caminhada infernal — falou ela.
— E depois desderreteu, tomando um formato novo e instigante.
Virando o rosto para a janela, Zuzana inspirou fundo, depois abanou o ar na direção de Mik.
— Está sentindo? É cheiro de comida. O chocolate com formato instigante pode ser a sobremesa. Podemos dividi-lo com os quimeras.
A ruga de preocupação dele apareceu.
— Você não está pensando em descer até lá sem Karou.
— Estou.
— E oferecer chocolate.
— Sim.
— Tudo bem. Quem é você e o que fez com a verdadeira Zuzana?
— Como assim? — disse ela, adotando uma inflexão de voz dura e indiferente. — Sou a humana chamada Zuzana, e não estou tentando atraí-lo lá para onde estão os monstros. Confie em mim, humano apetitoso... quer dizer, Mik.
Ele riu.
— Só não surto com isso porque você não saiu do meu lado desde que chegamos. — Ele pegou a mão dela. — Não saia de perto de mim, ouviu?
Ela o olhou com doçura.
— Nem para ir ao banheiro?
— Ah, é. Tem isso. — Eles tinham feito um pacto de nunca virarem um daqueles casais que usam o banheiro um na frente do outro. “Preciso me manter misterioso”, Mik lhe dissera solenemente, segurando a mão dela entre as suas. — Bem, então precisamos pelo menos ter uma senha para saber se o outro é um impostor. Vai que, sabe como é, um monstro rouba meu corpo nos cinco minutos que eu levar para fazer xixi.
— Você acha que eles podem roubar corpos? E o mais importante: você leva cinco minutos para fazer e ainda assim se recusou a mijar em cima de Kaz quando eu pedi?
— Vou ter que me desculpar por isso a vida inteira, não é? Mas sério agora: uma senha.
— Está bem. Que tal... impostor?
Mik a olhou sem acreditar.
— Nossa senha anti-impostor vai ser impostor?
— Bem, é fácil de lembrar.
— Mas a questão é não deixar ninguém perceber. Se eu suspeitar que você não é você, preciso descobrir isso sem que você saiba que eu sei. Como nos filmes. Vou estar de costas para você, de frente para a câmera, e vou dizer casualmente, hã, mascate no meio da conversa...
— Mascate? Essa é nossa senha?
— Isso. E você não vai demonstrar nenhuma reação, e eu vou fazer uma careta de pânico — ele mostrou como seria a careta de pânico — porque acabei de descobrir que forças hostis se apossaram do seu corpo, mas, quando eu me virar, vou estar na maior tranquilidade do mundo. Fingindo que não desconfiei de nada enquanto planejo em segredo a minha fuga.
— Fuga? — perguntou ela, fazendo bico. — Quer dizer que você não vai tentar me salvar?
— Está maluca? — Ela a puxou para si. — Eu enfiaria a cabeça goela abaixo de qualquer monstro para resgatar você.
— Sei. E vamos torcer para que o monstro tenha convenientemente me engolido sem mastigar. Como nos contos de fadas.
— Claro. E eu cortaria a barriga dele e tiraria você de lá. Mas seria uma pena para o monstro não mastigar você: ia perder a chance de provar do seu delicioso sabor.
Mik mordiscou o pescoço dela, que deu um gritinho e o empurrou.
— Então vamos lá, meu corajoso vasculhador de gargantas de monstros, vamos arranjar alguma coisa para jantar. Tenho quase certeza de que não seremos nós o prato principal. — Ela cheirou o ar. — Afinal, já estão cozinhando. — Quando ele já ia recomeçar os protestos, ela estendeu a mão. — Do que você tem mais medo: deles ou de uma Zuze com hipoglicemia?
A boca de Mik, antes séria de preocupação, se repuxou em um sorriso.
— Não sei.
— Pegue seu violino — disse ela.
Dando de ombros, ele obedeceu. Zuzana sentiu a testa de Karou uma última vez e então eles saíram do quarto, descendo as escadas em busca de comida.
* * *
Foi um sono agitado e perigosamente profundo. Karou perdeu a noção dos dias e noites, das próprias vidas — humana e quimera —, vagou pelas lembranças como se fossem salas de um museu. Sonhou com a loja de Brimstone e sua infância lá, e com Issa, Yasri e Twiga, com ratos-escorpião e sapos alados... com Brimstone. E mesmo dormindo sentia como se tornos apertassem seu coração.
Sonhou com o campo de batalha de Bullfinch, a neblina, a primeira vez que vira Akiva, caído no chão, morrendo.
Com o templo de Ellai. Amor e prazer e esperança, a grandeza do sonho que a preenchera durante aquelas semanas — ela nunca fora, em nenhuma das suas duas vidas, tão feliz como naquela época — e a delicadeza do osso da sorte que ela e Akiva haviam segurado juntos, os nós dos dedos se tocando justo antes do osso se partir.
E, finalmente, Karou sonhou consigo mesma em uma cripta, acordando como um espectro — ou como Julieta — em uma mesa de pedra. Ao seu redor, corpos irreconhecíveis de tão queimados, e no meio deles estava Akiva, as mãos em chamas e tendo abismos insondáveis no lugar dos olhos. Ele a olhava por sobre os mortos e pedia que o ajudasse.
Ela acordou de um pulo, e o dia novamente tinha se transformado em noite, e havia o calor de uma presença ao seu lado.
— Akiva — soltou ela, arfando.
O nome escapara do sonho, aquele nome que abria um buraco em seu peito só de lhe surgir à mente. Quando dito em voz alta era dilacerante e cruel, como uma estaca, um tapa — e não apenas para ela, mas também para Ziri, se ouvisse. Porque não era Akiva ao seu lado, claro que não. E o que a percorreu naquele instante foi amargura, uma pontada dupla: uma quando ela pensou que fosse ele.
E outra quando percebeu que não era.
* * *
Akiva se assustou ao ouvir seu nome, ao ouvir a voz de Karou, e ao vê-la sentada, acordada, tão perto. Não conseguiu deter a onda de calor que o percorreu em resposta ao grito dela, uma chama que devia ter saído de suas asas e a alcançado do outro lado do quarto. E não só a ela como também a... àquele deitado ao seu lado, que não se moveu nem abriu os olhos nem mesmo quando ela gritou.
Akiva se manteve imóvel, oculto sob o encanto, mas Karou nem mesmo olhou em volta; seus olhos foram direto para o Kirin, e Akiva não conseguia imaginar o que a fizera chamar por seu nome, mas, o que quer que fosse, parecia já ter sido esquecido. Ela observava o quimera agora, e Akiva fechou os olhos. Procurou acalmar a respiração e lembrar a si mesmo, enquanto ia até a janela, que ela não podia ouvir as batidas de seu coração.
Ele queria ficar. Nunca mais queria tirar os olhos de Karou, mas, agora que ela havia acordado — pois ele precisava saber que ela acordaria —, não podia suportar ficar espionando-a daquela forma. E ele não se sentia capaz de aguentar o que talvez visse em seguida, quando o Kirin acordasse.
Não ia ficar pensando no que havia entre os dois. Não tinha esse direito.
Ela estava viva, era só o que importava.
Isso e o fato de que... era ela a ressurreicionista. Isso provocava nele um torpor que embotava quase todo o resto.
Quase.
Vê-la dormindo ao lado de outro homem era algo importante demais para ser embotado. Uma cena bem parecida com aquela ocorrera em Praga, quando vira o casal de amigos dela pela janela, e o ciúme absurdo que o abalara naquela ocasião, ao pensar, por um instante, que era ela lá deitada, o atacou de novo. Se tivesse um pingo de decência, desejaria que ela estivesse feliz com alguém de seu povo, porque, apesar de toda a incerteza daqueles dias, de uma coisa ele não tinha dúvida: não havia esperança de que ela ainda pudesse amá-lo.
Karou pegou a mão do Kirin, e foi mais do que Akiva podia suportar. Lançando-se janela afora, ele foi embora.