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PARA MATAR VOCÊS MELHOR

Karou se debruçou para examinar as mãos de Ziri e ver mais de perto a recuperação que havia operado. Sentiu uma perturbação no ar atrás de si, mas, quando ia se virar, os dedos de Ziri se fecharam em volta dos seus, e portanto ela não chegou a ver as fagulhas que surgiram da janela e se espalharam pelo chão sujo, onde se consumiram até desaparecer.

— Você está acordado — disse Karou.

Será que ele tinha ouvido o nome que ela falara?

— Que bom que estamos sozinhos — disse Ziri.

Em resposta, Karou soltou a mão e se afastou. O que ele quis dizer com isso? Surpreso com a reação dela, Ziri só então pareceu perceber a inesperada intimidade daquela cena.

— Não, não foi... — Ele parou de falar, ficou vermelho e se sentou, afastando-se um pouco dela na cama. O rubor o fazia parecer bem jovem. Então acrescentou, apressadamente: — Falei isso porque preciso lhe contar o que aconteceu. Antes que ele volte.

Ele? Quem? Por um aflitivo instante o nome de Akiva lhe voltou à mente. Frustrada, ela balançou a cabeça para afastá-lo.

— Thiago?

Ziri assentiu.

— Não posso contar a ele o que realmente aconteceu, Karou. Mas preciso contar a você. E... preciso da sua ajuda.

Karou olhou para ele sem entender. O que ele queria dizer com aquilo? Que tipo de ajuda? Sentia-se lenta, ainda envolta no feitiço perturbador dos sonhos, e alguma coisa que não conseguia definir bem o que era a incomodava.

Ziri se apressou em preencher o silêncio:

— Sei que não mereço sua ajuda, considerando a forma como a tratei. — Ele engoliu em seco, olhou para as mãos, flexionou os dedos. — Não mereço isso. Não devia ter dado ouvidos a ele. — A vergonha pesava em seu rosto. — Queria falar com você, e era o que devia ter feito. A ordem era de que não nos falássemos, mas sempre achei isso errado.

Karou levou um tempo para compreender o que ele dizia.

— Você está dizendo... que Thiago ordenou a vocês que não falassem comigo?

Ele assentiu, tenso e infeliz.

— Que razão ele deu para isso?

— Disse que não podíamos confiar em você. Mas eu confio. Karou... — respondeu ele, relutante.

— Ele disse isso? — Karou sentiu com se tivesse levado um tapa. Como era idiota. — Ele disse para mim que vinha conversando com vocês, que com o tempo acabariam todos confiando em mim assim como ele confiava.

Ziri não falou nada, mas a mensagem era clara: Thiago vinha mentindo para ela aquele tempo todo. Não que fosse uma surpresa.

— O que mais ele disse?

Ziri parecia desamparado.

— Ele nos lembrava o tempo todo da sua... traição. — Sua voz era suave, embora a postura estivesse encurvada. — De que você vendeu nosso segredo para os serafins.

Ela arregalou os olhos.

— Vendi...? — O quê? Isso sim a surpreendeu, a magnitude da mentira. — Ele disse isso? — Ziri assentiu, e Karou ficou zonza. Thiago vinha dizendo aos quimeras que ela vendera segredos aos serafins? Não era de se estranhar que a chamassem de traidora quando ela passava. — Eu nunca vendi nada.

E então lhe ocorreu: ela não vendera nada, e não contara nada também. Passara as últimas semanas tão ocupada em chafurdar na sua vergonha que nem sequer questionara do que deveria se envergonhar. Qual fora seu crime, exatamente? Amar o inimigo, isso era grave; libertá-lo, mais grave ainda, mas eles não sabiam que ela havia feito isso, e além do mais... não fora ela quem contara a Akiva o maior segredo dos quimeras.

Fora Thiago.

O Lobo Branco vinha lançando sobre suas costas o peso do crime que ele próprio cometera, mantendo-a isolada do restante da companhia, alimentando regularmente de mentiras os dois lados. Tudo para controlá-la, a ela e a sua magia. E vinha funcionando perfeitamente, não? Ela vinha acatando todos os seus pedidos.

Mas não faria mais isso. Seu coração batia disparado. Ela olhou para Ziri.

— Não é verdade. — Sua voz saiu como um sussurro distorcido. — Eu não contei... para o anjo. — Não era capaz de dizer seu nome de novo. — Nunca contei a ele sobre a ressurreição. Eu juro.

Se ao menos Ziri acreditasse nela, alguém saberia e acreditaria que embora ela pudesse, até certo ponto, ser uma traidora, aquilo não era obra sua. E então ocorreu-lhe que Brimstone devia ter pensado que tinha sido ela.

Uma náusea a dominou. Se ele de fato pensara isso, devia tê-la perdoado, porque lhe dera vida, segurança e até — embora ela só o tivesse percebido depois — amor. Era terrível pensar que ele talvez tivesse acreditado que ela traíra seu segredo, sua magia, sua dor. E mais: era terrível saber que nunca poderia lhe contar a verdade. Fosse lá o que Brimstone pensasse, ele morrera acreditando naquilo, e o caráter definitivo disso a fez sentir a morte dele como nada antes.

— Eu acredito em você — disse Ziri.

Isso já era alguma coisa, mas não o suficiente. Karou levou a mão ao estômago, que, apesar de vazio — ou talvez justamente por causa disso —, estava se revirando de náusea. Ziri estendeu a mão, vacilante, mas desistiu.

— Sinto muito — disse ele, angustiado.

Ela procurou se acalmar.

— Obrigada por me contar.

— E tem mais…

Mas então, assustadoramente alto, ouviram um som vindo lá de fora. Um grito, um choro. O coração de Karou bateu descompassado quando se deu conta do que a incomodava. Era a ausência. De Zuzana e Mik. Onde estavam seus amigos?

E quem tinha acabado de gritar?

* * *

No pátio, Zuzana cobriu os ouvidos e trincou os dentes.

Mik era mais diplomático. Assentiu para o quimera chamado Virko, que tinha acabado de arrancar um estridente e ensurdecedor iiiiiiiiirc do violino.

— Isso mesmo — disse Mik. — É assim que... hã... sai o som.

Virko segurava o instrumento mais ou menos da maneira correta. Embora o violino parecesse bem menor junto a seu maxilar proeminente, suas mãos enormes conseguiam manejar bem o arco. Uma coisa que Zuzana notara é que muitos quimeras tinham mãos humanas — ou quase humanas —, ainda que o restante do corpo fosse inteiramente de fera. A julgar pela coleção de espadas, machados, adagas, arcos e outros instrumentos de matar e desmembrar que carregavam, habilidade manual devia ser imperativo para aquele pessoal.

Para matar vocês melhor, meus queridos.

No entanto, apesar de tudo aquilo — armas, garras e coisa e tal —, eles não eram tão assustadores. Quer dizer, eram criaturas absurdamente assustadoras de se olhar, mas não agiam de forma ameaçadora. Talvez porque Zuzana e Mik tinham cruzado primeiro com Bast, aquela que estava no chão do quarto de Karou, e ela entendera quando os dois fizeram a mímica de comer e os levara até onde os quimeras faziam as refeições, apresentando-os com palavras que Zuzana e Mik não entenderam.

— O que vocês vão querer fazer com esses humanos, bife ou ensopado? — traduzira Mik, baixinho, mas Zuzana podia ver que ele estava mais impressionado do que assustado.

Os quimeras lhes pareceram mais curiosos do que qualquer outra coisa, na verdade. Talvez um pouco desconfiados, e alguns tinham feito o sangue de Zuzana gelar pelo simples fato de não piscarem enquanto os encaravam fixamente; ela tentara se manter afastada desses, mas no geral tinha corrido tudo bem. O jantar estava insosso, mas não chegava a ser pior do que a comida do péssimo restaurante para turistas de Marrakech em que haviam parado a caminho dali; e eles aprenderam algumas palavras em quimera: jantar, delicioso, pequena (essa última — e apenas essa, esperava Zuzana — em referência a ela). Zuzana despertara grande fascínio nos quimeras, e se submetera a tapinhas na cabeça com uma boa vontade que não lhe era nada usual.

Naquele momento, no pátio, era o violino de Mik o que os fascinava. Virko tirou do instrumento mais alguns guinchos estridentes e um som engasgado, até que outro quimera o empurrou e rosnou alguma coisa que devia significar Devolva isso, porque Virko então devolveu o violino a Mik e fez um gesto pedindo que ele tocasse. Mik atendeu prontamente. Zuzana, que agora já reconhecia algumas das músicas preferidas do namorado, identificou aquela como uma composição de Mendelssohn que sempre arrepiava os pelos de sua nuca e a fazia se sentir feliz e triste ao mesmo tempo, com um gosto agridoce na boca. Era grande e intrincada, meio... fofa em algumas partes e épica em outras, e perturbadora. Zuzana, parada atrás, viu a mudança que se operou nas criaturas ao seu redor.

Primeiro: o choque, a surpresa em ver que o mesmo instrumento que tinha produzido aqueles guinchos horríveis nas mãos de Virko pudesse fazer aquilo. Houve algumas trocas de olhares, alguns murmúrios, mas tudo isso passou rapidamente e só ficou o encantamento e o silêncio, a música e as estrelas. Alguns soldados se agacharam ou se empoleiraram nos muros, mas a maioria ficou de pé. Outros começaram a espiar de portas e janelas e a sair lentamente para o pátio, inclusive as figuras recurvadas das duas cozinheiras, que nada tinham de soldados.

Até o Duas Vezes Mais Branco parecia transfigurado, completamente imóvel em toda a sua beleza estranha e repulsiva, um olhar de terrível e profunda melancolia no rosto. Zuzana se perguntou se o tinha julgado mal, mas logo descartou a ideia.

Aquela história de só usar branco não era coisa de gente normal. Quando ela olhava para Thiago, só conseguia pensar em ter uma arma de paintball à mão, mas, droga, não dava para prever todas as possíveis eventualidades na hora de fazer a mala.

* * *

Karou balançou a cabeça, admirada. Zuzana se balançava levemente no pátio enquanto Mik tocava violino para uma audiência e tanto. Quando morava em Praga, Karou nunca teria imaginado aquela cena.

— Como eles vieram parar aqui? — perguntou Ziri.

Ele também tinha se levantado e estava de pé atrás dela, olhando por sobre seu ombro.

— Eles me encontraram.

A simplicidade daquilo a aqueceu por dentro. Eles tinham procurado por ela e a encontrado; ela não estava sozinha, afinal. E a música... A melodia se erguia e ondulava no ar, preenchendo o mundo inteiro. Ela não ouvia música fazia semanas, e era como se uma parte ofegante sua tragasse avidamente aqueles sons e voltasse à vida. Karou subiu no peitoril da janela, pronta para saltar lá de cima e se unir aos amigos no pátio, mas Ziri a deteve.

— Espere, por favor.

Ela olhou para trás.

— Não sei quando terei outra oportunidade de falar com você. Karou, eu... Eu não sei o que fazer.

— O que quer dizer?

— As almas. — Ele estava agitado. Virou-se de costas e afastou-se, depois curvou-se para pegar alguma coisa e voltou com um turíbulo nas mãos. — Minha equipe.

— Você os salvou? — Ela desceu do peitoril, voltando para o quarto. — Ah, Ziri. Isso é maravilhoso. Eu achei...

— Vou ter que relatar o que houve a Thiago, mas não sei se devo.

Ele sentiu o peso do receptáculo na palma das mãos.

Karou estava confusa.

— Não sabe se deve contar a ele que salvou sua equipe? E por que não contaria?

— Porque nós desobedecemos as ordens dele.

Karou não sabia o que dizer. Desobedeceram o Lobo? Isso simplesmente não acontecia. Depois de uma pausa, ela perguntou:

— Por quê?

Ziri estava sério, e falou com muito cuidado:

— Você sabe quais eram as ordens?

— As... As Terras Distantes. Defendê-las contra os soldados do Domínio — respondeu ela, apesar de não acreditar nisso.

Ele balançou a cabeça.

— Era um contra-ataque. Aos serafins civis.

Karou levou a mão à boca.

— O quê?

Sua voz saiu frágil como porcelana. Ziri continuou:

— É uma campanha de terror, Karou. — Ele parecia estar se sentindo mal. — É só o que podemos tentar fazer, diz ele, já que somos tão poucos.

Terror, pensou Karou. Sangue. Sangue. Quantos tinham morrido em Eretz, dos dois lados, nos últimos dias?

— Mas nós o desobedecemos. Fomos às Terras Distantes. Foi... — Ele tinha o olhar perdido, assombrado pelas lembranças. — Talvez Thiago tivesse razão. Não havia nada que pudéssemos fazer. Eles eram muitos. Eu fiquei para trás, em segurança, e vi minha equipe ser morta.

— Mas você conseguiu recuperar as almas deles. Você colheu...

— Era uma armadilha. E eu caí direitinho.

— Mas... você escapou. — Ela tentava entender. — E voltou.

— Sim. É isso que eu não entendo. — Antes que ela pudesse perguntar o que ele queria dizer, Ziri respirou fundo e enfiou a mão por dentro de sua túnica, toda suja de sangue e cinzas, e pegou algo de um bolso interno. Karou viu de relance um tom forte de verde, mas só isso. O que quer que fosse, era pequeno e cabia perfeitamente na mão dele. — Eles me pegaram, Karou. Jael me pegou. Ele ia me obrigar a contar. — Seus olhos, grandes e castanhos, marcados pela exaustão, se arregalaram com uma estranha intensidade. — Sobre você. E... eu ia acabar contando. Eu queria pensar que conseguiria resistir, mas não: eu teria contado. — Suas palavras saíam engasgadas. — Mais cedo ou mais tarde.

— Qualquer um contaria. — Karou manteve a voz sob controle, mas o pânico tomava conta dela. — Ziri, o que aconteceu?