53

HERÓIS

— Devíamos tê-lo matado quando tivemos a oportunidade — sussurrou Liraz, caminhando ao lado de Hazael pelo acampamento do Domínio.

— Nós não tivemos a oportunidade — lembrou Hazael à irmã. — Não com todos aqueles malditos pássaros no caminho.

— Se ao menos ele tivesse sufocado ali no meio ou sido bicado até a morte, qualquer coisa — replicou ela.

Estava falando de Jael, a quem os dois estavam indo ver agora. Por razões ainda misteriosas, seu adorável tio mandara chamá-los.

— Será que Akiva não podia ter feito os pássaros o matarem?

Hazael deu de ombros.

— Quem sabe o que nosso irmão pode fazer? Acho que nem ele mesmo sabe. E acho que ele nunca nem tinha tentado algo tão grande assim antes. Isso lhe custou muito.

De fato. O esforço de evocar os pássaros deixara Akiva trêmulo e ofegante; ele mantivera os olhos fechados com tanta força que só depois de tudo acabado é que Hazael e Liraz viram que os vasos sanguíneos tinham se rompido, deixando seus globos oculares vermelhos.

— Pela vida de um quimera — disse Liraz.

— Pela vida de um, sim, e a esperança de muitos mais — disse Hazael.

— A esperança de que ela volte — disse Liraz, não sem amargura.

Como ela podia não odiar o fantasma daquela garota que não estava nem viva nem morta, não era humana nem quimera — mas o que diabos ela era, afinal? Aquilo era tão diferente de tudo, tão profundamente anormal, e... Liraz sabia que no fundo sentia ciúme, e odiava isso. Akiva era dela.

Quer dizer, não desse jeito. Ele era seu irmão. Hazael e Akiva eram sua família, sua única família. Eles tinham centenas de outros irmãos e irmãs, mas a ligação entre os três era diferente. Sempre estiveram juntos, e, embora Liraz quase os tivesse perdido em batalhas mais de uma vez, até pouco antes nunca precisara se preocupar em perdê-los dessa forma. Ilegítimos não amavam e se casavam. Era proibido. E... seria ainda pior, pensou ela, porque seria por escolha deles. Não por terem morrido ou sido tirados dela. Iriam, por livre e espontânea vontade, construir suas vidas com outra pessoa, deixando-a para trás.

Ela dissera que não sentia medo, mas era mentira. Seu medo era ser deixada sozinha. Porque de uma coisa tinha certeza: nunca amaria ninguém, não daquele jeito. Confiar seu corpo a um estranho? A proximidade, o silêncio. Não conseguia nem imaginar. Respirar o hálito de outra pessoa enquanto ele respirava o seu, tocar alguém, abrir-se para ele? Só de pensar em tal vulnerabilidade ela corava. Significaria submissão, baixar a guarda, e ela nunca faria isso. Nunca. Só de pensar já se sentia pequena e fraca como uma criança — e Liraz não gostava de se sentir pequena e fraca. Não tinha boas lembranças da infância.

Só com a ajuda de Hazael e Akiva ela conseguira passar por aquilo. Liraz se julgava capaz de fazer qualquer coisa por eles, mas nunca lhe ocorrera que “qualquer coisa” podia incluir deixá-los partir.

— Será que ele os encontrou? — indagou ela, referindo-se aos rebeldes. Falava baixo; estavam quase chegando à barraca de Jael. — Devíamos ter ido com ele.

— Temos um papel a cumprir aqui.

Liraz apenas assentiu. Ela relutara em deixar Akiva ir embora sozinho de novo, mas como poderia impedi-lo? Acabaria fazendo com que ele a odiasse, e isso era impensável. Então esperaram que ele realizasse, com muito esforço, o encanto para ficar invisível — pois estava esgotado depois da evocação — e fosse atrás do Kirin, atravessando o céu tomado pelos pássaros. E os dois então voltaram ao acampamento. Para cumprir seu papel, assim como no passado, e acobertá-lo.

Mas nunca tinham sido chamados diante do capitão do Domínio para contar suas mentiras e meias verdades.

— Pronta? — perguntou Hazael.

Liraz assentiu e entrou primeiro na barraca. A mesma entrada por onde Loriel tinha passado... quando? No dia anterior? Liraz sentiu o breve toque dos dedos do irmão em suas costas e concentrou-se nesse contato para conseguir enfrentar Jael.

Loriel disse que estava bem. Que não tinha sido nada — que era só um homem, e homens a gente lava.

Ela era mais velha do que a maioria das soldadas, mais experiente. Tinha se oferecido voluntariamente — para poupar alguma virgem de ser atirada a Jael, dissera ela —, e, embora Liraz não corresse perigo, por ser da família, achou que era um ato de coragem como nenhum outro que já testemunhara. Mais corajoso do que seguir na linha de frente em uma batalha ou voltar para buscar companheiros feridos. Mais corajoso do que enfrentar um bando de espectros. Liraz já fizera essas coisas, mas sabia que nunca seria capaz de entrar na barraca dele e sair de lá depois, não com aquele propósito.

— Meu senhor — disse ela, com a reverência apropriada.

Hazael parou ao seu lado e fez o mesmo.

— Sobrinha, sobrinho — falou Jael, de modo arrastado.

Estava sendo debochado, mas Liraz gostou de vê-lo ressaltar o fato. E não se esqueça disso, pensou. Então ergueu o olhar para ele.

E não gostou nem um pouco do que viu em seu rosto. O olhar de Jael estava direcionado a ela, ignorando Hazael, e parecia... interessado. Inequívoca e perturbadoramente interessado.

— Qual é o seu nome? — perguntou Jael, dirigindo-se a ela.

Hazael foi quem respondeu:

— Minha irmã se chama Liraz. E meu nome é Hazael.

Mas Jael repetiu apenas o nome dela:

— Liraz — disse com um som úmido, seguido por um pesado suspiro. — Ilegítima. Que pena. Você é mais fresca do que outras frutas que apareceram no meu caminho. Mas meu irmão tem essa mania de... se meter.

Hazael riu.

— Entendi — disse ele, e dessa vez conseguiu fazer Jael tirar os olhos dela. — Mania de se meter. Essa foi engraçada.

Pare, suplicou Liraz mentalmente, mas Jael não ligou, apenas sorriu. O riso de Hazael soava verdadeiro. Ele tinha o dom de saber rir.

Agora que Jael se dera ao trabalho de olhar para Hazael, viu o que todos viam quando os dois estavam lado a lado, e ficou olhando de um para o outro.

— Gêmeos? — perguntou ele. — Não? Mesma mãe, pelo menos.

Mas Hazael balançou a cabeça em negativa.

— Não, senhor, é somente a força do sangue de nosso pai.

Liraz ficou tão surpresa que teve que se virar e olhar para ele. Chamar Joram de “pai” em uma conversa com Jael? Ela sabia o que ele estava fazendo, tentando manter o foco em si mesmo. Pare com isso, pensou de novo, mas Jael não encarou aquilo como ofensa. Talvez pelo jeito tolo e bem-humorado de Hazael, e talvez porque seus pensamentos estavam em outro lugar.

— Posso ver — disse o capitão. — Mas esse não é o caso do Príncipe dos Bastardos, é? Eu diria que a mancha Stelian é o que predomina.

Mancha? Era verdade que Akiva não se parecia em nada com Joram; mais do que isso, Liraz não sabia dizer. Ela não se lembrava da própria mãe, que dirá da de Akiva. O que Jael queria?

— Disseram-me que Akiva não está no acampamento. É verdade?

— Sim, senhor — responderam eles em uníssono.

— E disseram-me também que, se alguém sabe onde ele está, são vocês dois.

— Ele ainda está caçando, senhor — disse Hazael. — Rebeldes.

Nem é mentira, pensou Liraz.

— Admirável. O valente Ruína das Feras nunca descansa. Mas vocês voltaram sem ele?

— Eu estava com fome, senhor — disse Hazael, contrito.

— Bem, suponho que nem todos possam ser heróis.

Seu desdém irritou Liraz.

— E o senhor, capturou algum rebelde? — perguntou ela, sem a contrição cômica de Hazael.

Os olhos de Jael correram de volta para ela. Um segundo depois, ele respondeu com firmeza:

— Não.

Mentiroso, pensou Liraz, lembrando-se de Jael torturando o Kirin. Ele tinha se divertido. Tinha obrigado o quimera a engolir as cinzas de seus companheiros. Isso a fizera passar mal. Engraçado como era fácil torcer pelo inimigo quando este enfrentava Jael. Bem, com certeza a forma e a natureza do inimigo tinham ajudado. Se ele fosse um Heth ou um Akko ou algum espectro feroz a rosnar sem parar, teria sido mais difícil ficar do seu lado, fosse ou não Jael o oponente. Mas tinha sido emocionante ver o Kirin lutar — Liraz chegara mesmo a pensar que ele conseguiria escapar. Ele era tão rápido. Ela não via um Kirin desde que se tornara uma soldada; tinha esquecido como eles eram. Então, quando Akiva lhes contara, baixinho e em uma voz estrangulada, que Madrigal era uma Kirin também, o restante da repulsa de Liraz se esvaneceu.

Apesar das características ferais do rebelde, havia nele uma graça elegante e esguia que não era animalesca. Nem um pouco. Ela não queria que ele morresse.

Não podia dizer o mesmo de Jael. Nenhuma elegância, nenhuma graça. Ela teria ficado feliz em vê-lo sufocar com as cinzas. Quão gravemente Jael tinha ferido o soldado?, perguntou-se. E quantos outros tinha torturado com aquele mesmo prazer?

— Não? — ela se ouviu dizendo, provocativa. — Talvez sejam mesmo fantasmas.

Ah, sua idiota. O indolente olhar de interesse de Jael se reavivou.

— Eles são animais — replicou ele, de um jeito despreocupado, como se não pudesse se importar menos. E deu mais um passo na direção dela. — Sabe, você me lembra alguém — disse, observando-lhe o rosto e o corpo. — Não nos detalhes. Ela era morena, não clara como você, mas as duas têm o mesmo... fogo.

Tinha. Liraz se forçou a olhar para o chão. Não o pressione, não o provoque, ele é Jael. Você acha mesmo que o fato de ter sangue bastardo vai detê-lo se irritá-lo?

— Deseja enviar um recado para Akiva por nosso intermédio? — ofereceu Hazael, tentando novamente desviar a atenção do tio. — Ele deve estar de volta em um ou dois dias.

— Não. — Jael deu um passo para trás. — Nenhum recado. Estou voltando para Astrae. Mas nos encontraremos de novo, não tenho dúvida.

* * *

— Não acredito que vocês desceram sem mim — disse Karou, exasperada.

— O quê? — Zuzana não parecia nem um pouco arrependida. — Eu estava morrendo de fome, e nossa anfitriã estava desmaiada na cama com um monstro gatão.

Monstro gatão?

— Meu Deus. Falando desse jeito parece até...

Karou ergueu as mãos e balançou a cabeça. Era besteira ficar retroativamente nervosa por algo que não tinha acontecido, mas pensar no que aqueles dois haviam feito deixava Karou gelada. Quando finalmente descera até o pátio, encontrara Zuzana sentada justamente entre — de todos os quimeras possíveis — Tangris e Bashees, apontando e adivinhando coisas, ou seja, tendo o mesmo tipo de “conversa” que se tem em qualquer lugar em que as pessoas não falam sua língua. Só que... aquelas ali não eram “pessoas”.

— Você não entende. — Karou não quisera apavorar seus amigos antes, mas eles obviamente estavam tranquilos demais. — Você sabe como elas são chamadas? São as Sombras Vivas, Zuze. São assassinas.

— Como eu — disse Zuzana alegremente.

Karou só faltava segurar a própria cabeça para impedi-la de explodir.

— Não, não como você. Não assassinas de brincadeira. Assassinas de verdade. Elas cortaram as gargantas dos anjos enquanto eles estavam dormindo.

— Ui. — Zuzana fez uma careta e levou a mão ao pescoço. — Mas os anjos são os vilões, não são?

Karou realmente não sabia como responder a essa pergunta. Nada daquilo era real para Zuzana.

— Elas são bem assustadoras, entendeu? — Essa descrição parecia boba até para ela própria. Karou hesitou. Como podia ter certeza de qualquer coisa agora que sabia do teatro de mentiras em que vivia? — Não são, não?

Zuzana deu de ombros.

— Sei lá. Elas são legais.

Legais. As Sombras Vivas eram legais.

— E suponho que Thiago também seja um doce.

— Eca — disse Zuzana com um calafrio. — Não. Não tem nada de doce nele. Só se for um doce estragado.

Bem, pelo menos nesse assunto elas concordavam.

— Você devia dormir um pouco — disse Karou.

Mik já estava deitado na cama, quase adormecido, e a energia de Zuzana finalmente parecia estar se esgotando.

— Eu sei. — Ela bocejou. — Já vou. E você?

— Eu já dormi.

Com Ziri. Que estranho. E agora eles dois eram aliados que compartilhavam um segredo. Thiago nem suspeitava. No quarto, eles ouviram o Lobo se aproximando e tiveram tempo de fingir que dormiam antes que ele entrasse — de uma forma menos íntima do que antes, com Karou na cadeira ao lado da cama. Já tinham decidido que Ziri iria contar ao general sobre as almas colhidas e que Karou daria um jeito de fazer as ressurreições em particular, para que pudesse passar a Balieros e aos outros, quando acordassem, a história que tinha inventado com Ziri. Se tudo corresse bem, Thiago nunca precisaria saber que eles haviam desobedecido a suas ordens. Só não sabia ainda o que fazer com a alma extra que Ziri a alertara que talvez estivesse no turíbulo: o garoto Dashnag que tinha lutado e morrido com eles. Estase, pensou.

É claro, isso era apenas o começo do problema. A questão maior era: e agora? O que fazer? Aquela campanha de terror... Karou acreditara — até onde tinha conseguido deixar um pouco de lado a própria infelicidade para pensar a respeito — que o objetivo da rebelião era a proteção dos quimeras. Mas Thiago não estava protegendo ninguém. Talvez fosse verdade que, considerando os poucos soldados que tinha, não podia fazer muito mais do que isso, o que aliás ele diria ser culpa dela, mas... ele desistira de todo o resto?

— Duvido que você tenha descansado o bastante — disse Zuzana. — Pode dormir aqui também. Eu chego um pouco para o lado.

Karou fez que não.

— Fique à vontade. Eu não ia conseguir dormir mesmo. — Havia muita coisa girando em sua cabeça. O que fazer? O que fazer? — Acho que vou dar uma volta enquanto ainda está fresco. De manhã tenho que voltar ao trabalho. — O rosto de Zuzana se iluminou, e Karou disse: — Sim, Igor. Pode me ajudar. E obrigada pelo que fez. Você foi incrível.

Eu? Você foi incrível. Meu Deus, Karou. Você é minha heroína.

— Ah, é? Bem, e você é a minha, então estamos quites.

Mik, que, ao contrário do que parecia, ainda não tinha dormido, interrompeu:

— Eu também quero ser o herói de alguém.

— Ah, você é — disse Zuzana, atirando-se em cima dele e lhe dando um beijo. — Meu herói de contos de fadas! Um desafio já foi, agora só faltam dois.

Karou não sabia que conversa era aquela, mas se afastou enquanto Zuzana continuava a plantar beijos confortadores e barulhentos por todo o rosto do namorado.