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IDENTIFICAÇÃO

Karou imaginou que Ten estaria esperando do lado de fora para impor sua companhia aonde ela fosse, mas a mulher-lobo devia ter pensado que ela passaria a noite com os amigos, pois não estava em lugar algum à vista.

Empolgada com a liberdade inesperada, Karou saiu de fininho pelo portão dos fundos da casbá e seguiu pelas estreitas vielas da aldeia destruída em volta, ouvindo os ratos fugindo apressados à medida que passava. Precisou flutuar várias vezes para passar por sobre obstáculos e paredes desmoronadas, mas teve o cuidado de se manter abaixo dos telhados e fora do campo de visão da torre de sentinela. Não ia colocar a perder aquele raro momento de solidão.

Uma ou duas vezes teve a sensação de estar sendo seguida, mas, ao olhar para trás, não viu ninguém se esgueirando de maneira lupina nas sombras. O que viu, de relance, foi alguma coisa branca, e por um instante temeu que fosse o próprio Thiago, mas era apenas uma roupa, estendida no telhado para secar. Respirou aliviada. O Lobo Branco era a última pessoa que ela queria ver naquele momento.

Bem, talvez não exatamente a última. Essa posição ficava reservada a Akiva, mas esse risco ela não corria. Akiva estava bem longe dali, aparentemente nas Terras Distantes, e que diabos estaria tramando? Será que tinha mesmo salvado Ziri? As evidências disso não eram muito sólidas.

Uma mariposa-beija-flor morta.

Remotas lembranças ressurgiram: a sensação do xale vivo com que Akiva a presenteara na noite do baile do Comandante, o agitar das asas macias e suaves, e então as cócegas quando as aves começaram a lamber o açúcar que lhe cobria o colo, o pescoço e os ombros. Tantos anos depois e ela ainda sentia vergonha pelo açúcar — pois aquilo tinha sido feito para Thiago, e ela deixara que a polvilhassem, sem saber ao certo se estava pronta para se render a ele, para deixar que ele... a provasse. Estremeceu só de imaginar aquelas presas tocando sua pele.

Em vez dele, quem a provara foram as mariposas, e mais tarde... um anjo.

Como a vida era estranha e cruel. Se algo tivesse sussurrado em seu ouvido naquela manhã longínqua que, ao anoitecer, ela estaria nos braços do inimigo — e por sua própria vontade —, ela teria rido. Mas na hora em que acontecera, parecera-lhe tão natural e certo quanto os passos de uma dança familiar.

Então ela se perguntou: e se Akiva nunca tivesse ido a Loramendi, com aquelas suas palavras belas e surpreendentes — o amor é um elemento —, seu toque macio e sua doce magia, com seu calor, seu humor e seus olhos de fogo? E se ela nunca tivesse conhecido outro pretendente que não o Lobo?

Teria sido tão complacente a ponto de se deixar ser tomada, provada e reclamada por ele? Ela queria acreditar que teria acordado de sua insensatez mesmo se Akiva não tivesse aparecido, mas sua vergonha não diminuía. Talvez ela tivesse sentido nojo do toque de Thiago e percebido tudo, mas... sabia que o mais provável era que se tivesse deixado levar pela maré até ser tarde demais.

Bem, pelo menos seu povo ainda estaria vivo. O que era sua felicidade se comparada a isso?

Chegando ao rio, instalou-se no ponto da margem em que uma grande pedra lhe permitia ficar sentada sem que a vissem da casbá. Tirou os sapatos, colocou os pés nas pedras frias e molhadas e ficou vendo o reflexo das estrelas se transformar em longas linhas oscilantes na superfície em movimento da água. A extensão daquele céu cheio de pontos cintilantes a fazia se sentir muito pequena — minúscula, insignificante —, e ela percebeu que saboreava aquela sensação como uma forma de aliviar um pouco a pressão de ter que fazer alguma coisa.

Afinal, o que eu posso fazer?

Sério: o quê? Os quimeras eram leais a Thiago, e ele nunca cederia.

O que Brimstone faria?, perguntava-se ela.

A saudade que a invadiu naquele momento foi tamanha que chegou a quase se transformar em esperança — aquela falsa e doída esperança de que a morte dele não fosse verdade. Permitiu-se imaginar, apenas por um instante: Se Brimstone estivesse aqui, o que seria diferente?

Uma coisa, pelo menos. Eu seria amada.

— Karou.

Foi apenas um sussurro, mas ela deu um pulo ao ouvir seu nome. Quem...? Não viu ninguém, não ouvira ninguém se aproximar. Apenas...

Uma rajada de calor.

Uma chuva de faíscas.

Ah, meu Deus. Não.

E então, como que se desfazendo de um véu, o encanto se desfez e ele apareceu diante dela.

Akiva.

Uma luz a percorreu, seguida pela escuridão — queimando-a por dentro, gelando-a, brilho e sombras, gelo e fogo, sangue e estrelas, um alvoroço, um rugido, preenchendo-a. Choque e incredulidade. E rancor.

E raiva.

Ela se pôs de pé. Seus punhos se cerraram, fechados com tanta força que mais pareciam pedras, seu corpo inteiro tenso de ódio ao ver o anjo, cada tendão estendido ao máximo e tão tensa que ela sentia o sangue nas têmporas, pulsando, e a fúria nos pulsos, vibrando, e nas mãos fechadas: a ebulição. Seus hamsás queimavam. E então ela abriu e ergueu as mãos, e Akiva não tentou se defender.

Quando a magia das marcas o atingiu, ele abaixou a cabeça e aguentou.

A magia fluía de Karou, e Akiva tremia sob o ataque, mas não se mexeu — nem se afastou, nem avançou —, e Karou sabia que podia matá-lo. Ela não desejava ter feito isso? Pois ali estava ele para lhe dar outra chance. Por que mais ele estaria ali, por que outro motivo? E o que mais ela podia fazer a não ser matá-lo? Não havia nada mais, não depois do que ele fizera... depois do que ele fizera... depois do que ele fizera... mas... como ela podia matar Akiva?

Como podia não matar?

Já não bastava o que ele tinha feito, ainda precisava aparecer para forçá-la a fazer outra escolha impossível? Por que ele estava ali?

Akiva caiu de joelhos, e o ar entre eles ondulou, movido pela potente magia de Karou e pelas lembranças. No dia de sua morte, ela vira exatamente a mesma cena, aquilo: Akiva de joelhos, enfraquecido pela mesma magia, só que pelas mãos dos soldados de Thiago, e lutando para manter a cabeça erguida e olhar para ela — exatamente como agora, com horror e desespero e amor —, e o desejo dela era então, mais do que qualquer outra coisa, poder ir até ele e abraçá-lo, sussurrar em seu ouvido que o amava e que o salvaria, mas não podia, em nenhum dos casos, embora o que a impedisse naquela vez não fossem algemas ou o machado do carrasco, mas o fato de ele ser o inimigo. Ele tinha provado isso de uma forma que superava todo o horror que ela poderia sequer imaginar, qualquer traição com que poderia vir a sonhar, e nunca poderia ser perdoado, nunca.

Mas... então... ela abaixou as mãos.

Por quê? Não foi um gesto consciente. Seus hamsás ardiam em contato com as coxas, e sua respiração era entrecortada e desesperada. Karou não conseguia se obrigar a levantar as mãos de novo. Akiva tremia, em agonia, e ali estavam eles mais uma vez no olho de um furacão de extremo sofrimento — o mundo dos dois era um furacão de sofrimento, e eles estavam presos no meio, na enganosa quietude que um dia lhes permitira esquecer que tudo a sua volta era um redemoinho doloroso de ódio que mais cedo ou mais tarde os atingiria. Eles tinham sido tolos por pensar que poderiam manter seu pequeno esconderijo em segurança e que não seriam pegos naquele furacão como todas as outras criaturas vivas em Eretz.

Mas tinham aprendido, não tinham?

O ofegar de Karou estava quase virando soluços, e suas pernas tremiam. Ela também queria cair de joelhos, mas não podia. Seria o mesmo que lhe estender a mão. Então permaneceu de pé, junto dele. Sentia as palmas das mãos ainda quentes por causa da magia, mas não voltou a erguê-las.

— Achei que você tivesse morrido. — A voz dele saiu embargada. — E... eu quis... morrer também.

— E por que não morreu?

O rosto de Karou estava quente e molhado, e ela sentiu vergonha de suas lágrimas e vergonha por, depois de tudo, ainda não conseguir matá-lo. O que havia de errado com ela, que mesmo assim não conseguia vingar seu povo?

Akiva apoiou as mãos no chão e fez força para se levantar. Parecia esgotado e prestes a vomitar; estava pálido e trêmulo, o vermelho tingindo o branco de seus olhos, como tantos anos antes.

— Teria sido fácil demais — respondeu ele. — Eu não mereço a paz.

— E eu também não? Não mereço finalmente me ver livre de você?

A princípio ele não disse nada, deixando as palavras de Karou ecoarem no silêncio. Eram tão duras — com uma pontada de escárnio para disfarçar a angústia; ela odiou o som da própria voz. Quando ele respondeu, sua angústia era evidente:

— Merece, sim. Não vim aqui para atormentá-la...

— Então por que veio? — gritou ela.

Mesmo antes de Akiva se levantar, Karou já sentia como se estivesse lutando contra alguma coisa, mas, quando ele ficou de pé, incerto, e ela teve que se afastar e erguer a cabeça para conseguir olhar para o seu rosto, entendeu o que era. Ele: a largura e o contorno do peito dele, a linha bem definida do bico de viúva em seu cabelo, pelo qual ela passara os dedos tantas vezes, e os olhos dele, mais do que tudo os olhos... os olhos. Confrontada com sua presença, sua proximidade, Karou entendeu que vinha lutando contra a familiaridade — uma familiaridade tão profunda que era quase identificação.

Aquele era Akiva, e a identificação estivera lá mesmo quando ele ainda era um estranho, naquele dia em Bullfinch, quando pusera os olhos nele pela primeira vez. Por isso é que ela fizera aquele gesto tão surpreendente e salvara a vida do inimigo. A identificação estivera lá na dança em Loramendi, mesmo apesar da máscara que ele usava, e novamente no beco em Marrakech, quando ele voltara a ser, para todos os efeitos, um estranho.

Mas não.

Akiva nunca fora um estranho, e esse era o problema. Uma espécie de chamado ecoava entre eles, mesmo agora, e do vazio do coração de Karou, onde deveria haver apenas inimizade e amargura, veio um lento apelo de... saudade. Mas logo foi sufocada pela raiva. Coração vil! Melhor seria arrancá-lo fora.

Como ela ainda podia não odiá-lo?

* * *

E quando seus olhos se encontraram, foi isso que Akiva viu: não a saudade, mas um brilho repentino e violento de ódio. Não percebeu que aquele ódio era voltado para ela mesma, e sentiu-se em desalento. Desviou o olhar subitamente, só então dando-se conta — tolo — de que ainda nutria esperanças. De quê? Não de que Karou fosse ficar feliz em vê-lo — não era tão tolo assim —, mas de que talvez ele pudesse ter um rápido vislumbre, um sinal, de que restara nela algo além do ódio.

Mas essa esperança se desfez, deixando-o vazio, e quando ele recuperou a voz e conseguiu responder, também soou vazio. Ferido e seco.

— Vim descobrir quem era o novo ressurreicionista. Não sabia que era... você.

— Surpreso?

O ódio na voz dela era tão forte quanto em seu olhar, mas como condená-la por isso?

Surpreso?

— Sim — respondeu ele, embora essa não fosse a melhor palavra para descrever o que sentia. Estava destruído. — Pode-se dizer que sim.

Ela inclinou a cabeça daquele seu jeito, como um pássaro, fazendo doer o coração de Akiva. Ela viu, e entendeu.

— Você está se perguntando por que eu nunca lhe contei.

Ele fez que não, tentando negar, mas estava claro. Ela nunca lhe contara. No bosque de réquiem, naquele mês que fora o único período de verdadeira alegria da vida de Akiva, e todas as vezes em que falaram sobre paz e esperança, mesmo com todo o amor e as descobertas e os planos, tão grandiosos, a ponto de terem idealizado uma nova forma de viver — em nenhum momento Madrigal falara sobre ressurreição. Tinha sido o Lobo Branco quem revelara o grande segredo dos quimeras, gabando-se e tripudiando dele entre uma chicotada e outra na prisão de Loramendi.

Akiva nunca escondera nada dela. Queria, na época, que ela o conhecesse, verdadeiramente, por inteiro, desde a terrível contagem que seus dedos marcados exibiam até a tristeza de suas primeiras lembranças; queria que ela o amasse pelo que ele era, e por todos aqueles anos acreditara nesse amor. Mas o que pensar do fato de ela ter escondido um segredo tão grande? Era capaz até de ela um dia ter terminado seu trabalho de ressurreição e ido direto para seus braços, mas nunca mencionara uma palavra sequer a respeito.

— Vou lhe dizer por quê. — As palavras de Karou eram precisas, como uma faca penetrando por entre as costelas dele. — Nunca confiei em você.

Ele assentiu; não conseguia olhar para ela. O vazio então se encheu de náusea, tão intensa quanto se a sua volta houvesse mil espectros com os hamsás apontados para ele.

— Então você vai me matar? — perguntou ela. — Foi para isso que veio, não foi? Para matar outro ressurreicionista?

Akiva levantou a cabeça de repente.

— O quê? Não, Karou. Não. Nunca. — Como ela podia sequer perguntar isso? — Sei que você não tem motivo nenhum para acreditar em mim, mas meus dias de matar quimeras são passado agora.

— Você já me disse isso antes.

— Era verdade na época — disse ele. — E é verdade agora.

De fato, depois de Bullfinch ele havia parado de matar quimeras.

E após a morte dela, recomeçara.

Ele involuntariamente virou as mãos, tentando esconder as evidências marcadas a tinta. Queria explicar que só fizera tudo aquilo porque estava arrasado, destruído após vê-la morrer, mas não havia como dizer isso sem parecer que estava tentando se eximir da culpa. Não havia como falar sobre o que havia feito, como alegar atenuantes, como pedir alívio da pena. A cada vez que pensava em seus atos, Akiva se via forçado a enfrentar a terrível magnitude de sua culpa, e não havia o que dizer. Confissão e pedidos de desculpas seriam mais do que inadequados: seriam uma afronta; era impossível explicar. Mas ele precisava dizer alguma coisa.

Eu perdi minha alma.

— Eu perdi nosso sonho. A vingança tomou conta de todo o resto. Mal me lembro daquelas semanas e meses depois... — Depois de ver você morrer, e de parte de mim morrer também. — Não tem explicação para o que eu fiz, que dirá uma forma de reparar meus erros. Eu traria todos de volta se pudesse. Morreria uma vez para cada quimera morto. Faria qualquer coisa. E vou fazer toda e qualquer coisa, e eu sei... sei que nunca vai ser o bastante...

— Não, não vai. Jamais, porque eles se foram...

— Eu sei. Não estou buscando perdão. Mas ainda há vidas a serem salvas, e escolhas a serem feitas. Karou, os quimeras continuarão ou não a existir no futuro, dependendo do que nós façamos agora.

— Nós? — Karou parecia incrédula. — Que nós?

Eu — ele se apressou em esclarecer. Akiva sabia que nenhum “nós” jamais voltaria a se referir a eles dois. — E nas fileiras dos serafins talvez haja outros que também estejam cansados, que queiram a vida e não a morte.

— Eles têm vida. Ao contrário do meu povo.

Akiva falara com as últimas palavras de Brimstone em mente: “É a vida a única capaz de crescer e preencher mundos.” Mas é claro que Karou não sabia disso. Ele queria lhe contar o que Brimstone dissera. Imaginava que ela fosse querer saber, mas, vindo dele, não pareceria uma provocação?

— Não é uma vida digna de ser vivida — retrucou Akiva. — Ou que valha a pena deixarmos para nossas crianças.

Crianças — ecoou Karou, tão fria... e tão linda. Era mais forte que Akiva: ficou olhando para ela, olhando e olhando, e lhe doía olhar, por saber que nunca mais iria tocá-la ou ver seu sorriso. — Quando os dois lados começam a massacrar crianças, acho que se pode dizer que a vida perdeu esse jogo.

O que ela queria dizer com aquilo? Ela notou sua confusão.

— Ah, você ainda não sabe? — Um sorriso amargo. — Vai descobrir.

Ele teve um estalo. Thiago.

— O que ele fez?

— Nada que você não tenha feito.

— Eu nunca matei nenhuma criança.

— Você matou milhares de crianças, Ruína das Feras — sussurrou ela acidamente.

Ele se encolheu ao ser chamado assim por ela, mas não tinha como discutir.

Akiva não o fizera com as próprias espadas, mas abrira o caminho para os assassinos. Vira coisas que nunca poderia apagar da memória. As imagens eclodiram em sua mente como gritos: lembranças e flashes intermitentes, feios, feios, imperdoáveis. Fechou os olhos. Era isso que ele era para ela: um assassino de crianças, um monstro. Karou estava trabalhando lado a lado com o Lobo Branco, e Akiva é que era o monstro. Como o mundo acabara assim tão invertido?

Se Thiago não tivesse descoberto sobre eles e aparecido no bosque de réquiem naquela noite, o que eles poderiam ter feito?

Talvez nada. Talvez tivessem morrido de algum outro jeito sem conseguir fazer nada.

Não importava. O sonho tinha sido puro. Mesmo em seu desespero, Akiva sabia disso, sentia, mas sabia também que Karou nunca conseguiria imaginar isso. Ele deu um passo para trás, aventurou-se a olhar para ela de novo. Karou abraçava o próprio corpo, seu rosto a própria imagem da desolação. Estava dilacerada, como ele estivera tantos anos antes. E... fora ele quem a deixara assim.

— Vou embora — disse ele. — Não vim para lhe fazer sofrer, e por favor, acredite, não vim para matar. Vim porque... pensei que você tivesse morrido, Karou. Pensei...

Akiva levou a mão ao turíbulo. O que aquilo significaria para ela?, perguntou-se ele, sobre aquele receptáculo e a mensagem: Karou. Se não era sua alma, de quem era? Quando o encontrara, logo deduzira que o nome era um rótulo, mas agora ele tinha certeza de que era uma mensagem.

— Encontrei isso nas cavernas dos Kirin — disse o anjo, estendendo a mão. — Deve ter sido deixado lá para que você o encontrasse. — Karou pareceu surpresa ao ver um turíbulo nas mãos dele. Ele o manteve estendido, mas ela hesitou: não queria nem mesmo se aproximar. — Foi por isso que eu quis morrer — explicou, e virou o pequeno pedaço de papel para que ela pudesse ler. — Porque achei que fosse você.

* * *

Ela pegou o receptáculo bruscamente da mão dele e ficou olhando para o papel. Sem respirar.

Karou.

Quantas vezes, em Praga, ela recebera bilhetes exatamente como aquele? Na época, sempre vinham um pouco amassados e furados pelas garras de Kishmish, mas o papel era o mesmo, e a letra... Ela a reconheceria em qualquer lugar.

Era a caligrafia de Brimstone.

Ficou olhando fixamente para o papel até que uma rajada de faíscas a despertou do choque: Akiva tinha ido embora. Não precisou nem olhar em volta para saber. Sentiu sua ausência, como sempre sentira — como um frio que se apressava em preencher o vazio deixado por ele. Seu coração martelava. Ela levou o turíbulo ao peito e imaginou poder sentir a alma ali dentro vibrando junto com as batidas de seu coração. Era puro palpite; apenas pelo receptáculo de prata não dava para ter nenhuma pista do que — de quem — estava dentro. Mas só podia ser…

Tinha que ser.

Suas mãos tremiam. Bastava abrir o turíbulo. Uma impressão da alma fluiria lá de dentro e ela saberia na hora.

Posicionou a mão. Hesitou. E se não fosse ele?

Seus pensamentos estavam confusos; iam e vinham, mas um deles voltava sem parar a sua mente. Akiva lhe trouxera o turíbulo. Thiago — seu aliado — mentira para mantê-la isolada e sozinha. Akiva — seu inimigo — lhe trouxera o turíbulo que podia... que podia... que podia conter... Brimstone.

Será?

Com um girar do pulso, ela abriu o receptáculo. Meio segundo. A alma se mostrou.

E ela soube.