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— Uma cesta de frutas — repetiu Akiva, incrédulo.
Antes de declarar guerra aos Stelian, Joram devia ter se preparado para muitas possibilidades, mas nunca passara pela cabeça do imperador, imaginava Akiva, que seu inimigo eleito pudesse... recusar a oferta.
Akiva estava de volta ao cabo Armasin com seu regimento. As notícias chegavam ali pelas línguas de batedores e soldados e em pequenos pergaminhos amarrados às pernas dos squalls. Eram fragmentos e sussurros, mentiras e verdades e palpites misturados com relatos oficiais tão cheios de mentiras quanto os boatos. Por isso levou alguns dias até Akiva, Hazael e Liraz terem peças suficientes para montar uma imagem discernível com aquele quebra-cabeça.
Ao que parecia, a resposta dos Stelian não chegara pelos mensageiros de Joram. Na verdade, os mensageiros nunca retornaram, e, para piorar, a comunicação com as tropas avançadas em Caliphis tinha sido cortada, e uma missão de reconhecimento também sumira do mapa. Todos os serafins enviados às Ilhas Longínquas haviam desaparecido. Essa notícia por si só já fazia Akiva gelar, e também o instigava. O que estaria acontecendo no outro lado do mundo?
E então... uma cesta de frutas.
Essa era a resposta deles. Uma resposta totalmente inofensiva. Nada de cabeças ou entranhas de mensageiros; as frutas não estavam nem envenenadas. Só frutas mesmo, de uma variedade tropical desconhecida no império. Segundo os provadores do imperador, eram “doces”.
Um bilhete acompanhava a cesta. Quanto à mensagem que continha, cada um dizia uma coisa, mas Akiva acreditou na versão de um sobrinho de um intendente imperial, de que o breve texto viera escrito em serafim arcaico, com uma caligrafia feminina e um selo de cera que representava um escaravelho, e dizia o seguinte: Agradecemos a proposta, mas somos obrigados a respeitosamente decliná-la, ocupados que estamos no momento com atividades mais agradáveis.
O atrevimento dessa mensagem, a impressionante ousadia: era de tirar o fôlego.
— Ainda não entendo — disse Liraz, depois de passado o choque inicial. — Como isso explica os Lâminas Partidas?
“Lâminas Partidas” era como os Ilegítimos chamavam os Espadas de Prata, por causa de suas elegantes armas que não resistiriam a um só golpe em um combate de verdade — não que algum dia fossem enfrentar algum. O único fato indiscutível de todo o mistério era que, dois dias antes, Astrae tinha acordado com catorze Espadas de Prata pendurados no cadafalso do Setor Oeste.
— Bem, tem a ver com a entrega da tal cesta de frutas — disse Hazael. — Vejam bem, quando nosso pai acordou de manhã, a cesta estava simplesmente lá, ao pé da cama, e ninguém soube lhe dizer como tinha aparecido ali, passando por dez portões vigiados até chegar ao coração do refúgio sagrado onde ele se julgava a salvo de qualquer invasor, até mesmo das Sombras Vivas.
— Nem as Sombras Vivas poderiam ter feito isso — disse Akiva.
Ele tentava entender que tipo de magia poderia ser responsável por uma façanha como aquela. A invisibilidade por si só não ajudaria ninguém a passar por portas fechadas. Será que o emissário dos Stelian tinha atravessado paredes? Lançado encantos em um guarda após o outro? Simplesmente desejado que o presente aparecesse lá? Essas eram algumas possibilidades. Do que os Stelian eram capazes? Às vezes, quando estava imerso em si mesmo planejando alguma manipulação, Akiva imaginava fios de conexão traçando-se pelas extensas superfícies do oceano e chegando enfim às ilhas — ilhas verdes sob uma luz melíflua, o ar da manhã cintilante com a névoa, asas de pássaros iridescentes — e se perguntava: será que seu sangue fazia dele um Stelian? O sangue de Joram não tornava Akiva como ele; por que o de sua mãe o tornaria como ela?
— Catorze Lâminas Partidas pendurados no Setor Oeste. — Hazael deu um assobio. — Imaginem só, toda aquela prata brilhando sob o sol.
— E o cadafalso aguenta catorze Lâminas Partidas, com aquele tamanho todo? — perguntou Liraz.
— Tomara que venha abaixo com tanto peso. Não lamento nem um pouco — disse Akiva, referindo-se ao cadafalso, não aos guardas. Ele não gostava dos Lâminas Partidas, mas não desejava que morressem. Balançou a cabeça. — E o imperador está se sentindo mais seguro agora?
— É um idiota se estiver — disse Hazael. — A mensagem é clara: queira saborear esta cesta de frutas deliciosas enquanto pensa em todas as maneiras como poderíamos matar você enquanto dorme.
Por mais sinistro que fosse tudo aquilo — a lúgubre imagem do cadafalso arqueado pelo peso de catorze guardas —, a notícia mais perturbadora veio depois, de um Ilegítimo. De fato, apenas um Ilegítimo poderia ter observado aquilo, ou se importado.
Melliel era a meia-irmã mais velha que tinha falado em favor dos Ilegítimos no fim da guerra. Era grandalhona, cheia de cicatrizes e tatuagens nas mãos; lutava com um machado e mantinha o cabelo grisalho curto como o de um homem. Não havia nada de feminino em Melliel a não ser sua voz, que mesmo quando ela gritava cumprimentos tinha algo de musical. Algumas vezes ela cantava junto às fogueiras dos acampamentos durante os períodos de guerra, histórias cantadas que emocionavam como poucas coisas em um campo de batalha. Atuava na capital, pelo menos até o dia anterior. Agora seguia com um destacamento de Ilegítimos para oeste, em direção às névoas e aos mistérios das tropas desaparecidas. Como se o império não tivesse perdido soldados suficientes nas últimas batalhas da guerra. Todos os exércitos tinham sofrido perdas, mas nenhum mais do que os Ilegítimos.
— É claro que ele enviaria Ilegítimos — comentara Liraz com amargura, ao saber da missão. — Quem se importa se os bastardos vão voltar ou não?
Mas Melliel se dissera feliz em ir — feliz em ficar livre da teia de mentiras que era Astrae. Foi ela quem lhes contou o que mais tinha acontecido na Torre da Conquista enquanto os Lâminas Partidas balançavam no alto do cadafalso.
— Um corpo amortalhado foi... deixado... no Portão Tav naquela mesma manhã.
Tav era o último dos portões da Torre. Era a sarjeta, no subsolo, e servia somente como saída: era por onde o lixo era lançado no mar.
Akiva se preparou para a notícia.
— Quem?
Melliel trincou o maxilar.
— Não temos como saber com certeza, mas... aparentemente ninguém se lembrou de dispensar a escolta do harém. Eles esperaram por duas horas no Alef até um intendente se dar conta e liberá-los.
Akiva sentiu a notícia primeiro no estômago e depois nas mãos — uma onda de calor que o fez cerrar os punhos com tanta força que os músculos de seus braços ardiam. Liraz emitiu um som sufocado; a respiração de Hazael ficou rouca, e ele começou a caminhar para longe, deixando um rastro de fagulhas. Depois se virou e voltou. Seu rosto claro estava vermelho. Liraz tremia, os punhos tão cerrados quanto os de Akiva.
A escolta do harém era a procissão dos Espadas de Prata que levavam as concubinas até a cama do imperador e depois as acompanhavam de volta. O “cortejo”, como chamavam. A mãe de Akiva fizera aquela caminhada anos antes, sabe-se lá quantas vezes — em uma dessas vezes, lá estava ele, começando a se desenvolver dentro de sua barriga. O mesmo se passara com a mãe de Liraz, e a de Hazael, e a de Melliel, e com incontáveis outras mulheres e jovens. E na manhã dos enforcamentos, ao que parecia, a concubina que deveria ter saído do Alef tinha sido despachada pelo Tav, junto com o lixo recolhido naquela noite.
“Foi terrível o que houve com ela”, Akiva ouviu em sua mente a voz cruel e provocadora de seu pai na primeira vez que se dignara a falar com ele. Será que o corpo de sua mãe tinha sido despachado pelo Portão Tav também?
Uma onda de exaustão o atingiu. Como a vida podia ser tão impiedosamente ruim? A guerra tinha acabado, mas os dois lados ainda massacravam civis; o imperador matava casualmente concubinas em seu quarto e enviava seus bastardos ao desconhecido para morrer com anúncios de mais guerra. Não havia nada de bom no mundo, nada mesmo. E agora que até mesmo suas lembranças de felicidade tinham sido corrompidas, Akiva se sentia perdido.
Será que ela estava falando sério quando dissera que nunca tinha confiado nele? Seria verdade? Ele se recusava a acreditar; suas lembranças não lhe permitiam acreditar. As lembranças daqueles dias — daquelas noites — eram mais claras do que as de qualquer outro momento de sua vida, as lembranças dela se enroscando nele durante o sono, de como os olhos castanhos dela se iluminavam quando acordava e o via. Até mesmo no cadafalso, e de novo em Marrakech, depois de partirem o osso, mas antes que ela entendesse...
Antes que ela soubesse o que ele tinha feito.
Talvez ele só tivesse visto o que queria ver. Mas agora, de qualquer jeito, não importava. Não havia mais luz nos olhos dela, não para ele e, o que era pior: para nada.
Pela manhã, Akiva estava no baluarte com Liraz e Hazael, e observaram quando Melliel partiu com suas tropas. Parte dele queria ir junto, mesmo com a névoa, os mistérios, as tropas desaparecidas e tudo mais. Queria ir ver as Ilhas Longínquas e talvez encontrar a pessoa que tinha escrito aquela louca mensagem para o imperador.
Mas seu lugar era ali, naquele lado do mundo. Seu desafio estava ali, assim como sua penitência, que era fazer o que dissera a Karou que faria: toda e qualquer coisa.
Mas o que era qualquer coisa? O que eram todas as coisas?
Ele sabia, mas a resposta parecia assomar diante dele tão grande e intransponível quanto as montanhas do sul.
Rebelião.
Com Madrigal, no templo, tudo lhe parecera possível. Mas seria mesmo? Será que ele encontraria algum apoio nas fileiras? Que havia uma indocilidade nos soldados, isso ele sabia, e também um desespero silencioso. Lembrou-se de Noam no aqueduto, perguntando-se, abatido, quando aquilo tudo iria acabar. Devia haver outros como ele, mas também havia aqueles que incluiriam a morte de mulheres e crianças em sua contagem e ririam enquanto a tinta secava. Seria sempre assim; sempre haveria os dois tipos de soldado. Como ele iria encontrar os bons, recrutá-los e confiar na discrição deles enquanto cuidava do lento e difícil trabalho de dar início a uma rebelião?
As tropas de Melliel agora eram apenas um tremeluzir distante no horizonte. A elevação rochosa do cabo bloqueava a visão do mar dali de onde estavam, mas a maresia estava no ar, e o céu estendia-se infinito. Por fim seus irmãos Ilegítimos desapareceram na imensidão.
— E agora? — perguntou Liraz, virando-se para Akiva.
Ele não sabia do que ela estava falando. Liraz. Ele ainda não entendia a irmã. Ela havia cooperado, mesmo que com cautela, com a evocação dos pássaros e a libertação do Kirin, mas parecia atenta e vigilante desde que ele havia voltado do acampamento rebelde. Com a notícia de que os quimeras tinham revidado o ataque a civis, ele temia que ela tentasse convencê-lo a revelar a seus superiores a localização dos inimigos.
Uma impaciência emanava dela, suas asas emitindo faíscas enquanto ela caminhava de um lado a outro, inquieta.
— Como se começa? — perguntou Liraz. Então parou, olhou-o bem dentro de seus olhos e levantou as mãos. Mãos pretas de tinta. — Você disse que basta começar. Então como fazemos isso?
Começar? Compaixão gera compaixão, dissera-lhe Akiva. Ele nem sabia o que dizer.
— Você está falando de...?
— Harmonia com as feras? — completou ela. — Não sei. Só sei que já estou cheia de receber ordens de homens como Jael e Joram. Sei que todas as noites uma garota tem que atravessar a passarela sabendo que ninguém vai ajudá-la. Elas são como as nossas mães. — Sua voz soava doída. — Eles nos dizem que somos espadas, e que espadas não têm mãe nem pai, mas eu tive uma um dia, e não me lembro nem do nome dela. Não quero mais ser assim. — E levantou mais uma vez as mãos. — Eu fiz coisas... — Sua voz falhou.
Hazael a puxou para si.
— Todos nós fizemos, Lir.
Ela balançou a cabeça, os olhos arregalados e brilhantes. Mas sem lágrima, que Liraz não era disso.
— Não as coisas que eu fiz. Vocês nunca fariam isso. Vocês são bons. São melhores que eu. Estavam ajudando os quimeras, não é? Enquanto eu... enquanto eu... — Ela não terminou a frase.
Akiva pegou as mãos dela, cobrindo as marcas pretas para que ela não tivesse que vê-las. Lembrou-se do que Madrigal lhe dissera, anos antes, com a mão no coração dele e a dele no dela, e repetiu aquelas palavras à irmã:
— A guerra é tudo que nos ensinaram, Lir. Mas não precisamos mais ser assim. Ainda seremos nós, só que...
— Melhores?
Ele assentiu.
— Como? — A inquietação a dominou. Ela soltou as mãos e voltou a andar de um lado para o outro. — Preciso fazer alguma coisa. Agora.
— Começamos unindo forças, atraindo outros para a causa — disse Hazael. — É o primeiro passo. E eu sei com quem começar.
Sim, percebeu Akiva. Ele ajudaria.
— Isso demoraria muito — disse Liraz impetuosamente.
E Akiva concordou. A ideia de passos, de uma cuidadosa progressão de planos e recrutamento e maquinação e táticas, era lenta demais.
— Liraz tem razão. Quantos mais vão morrer enquanto trocamos segredos?
— Então o que fazer? — perguntou Hazael.
Ao longe, um bando de caça-tempestades em movimento dividia o céu. Alguma espécie de bússola interna os impelia para o centro de ventanias, inundações e tumultos e mares agitados, e granizo e naufrágios e relâmpagos; ninguém sabia por quê, mas, naquele instante, Akiva sentiu a mesma atração: de ir em direção ao centro da tempestade em formação dentro dele.
— O primeiro passo é o mesmo desde sempre — disse ele. — Só que está vindo dezoito anos depois.
Ele sabia o que fazer na época, e soube naquele momento também. Enquanto Joram permanecesse no poder, o mundo deles conheceria a guerra e apenas a guerra. Hazael e Liraz franziram o cenho, esperando. E então Akiva disse:
— Vou matar nosso pai.