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O NOVO JOGO

Uma coisa era verdade: o trabalho realmente andava muito mais rápido com a ajuda de Issa e de Zuzana. Com dois pares de mãos hábeis a seu dispor, ela podia delegar toda tarefa que não fosse a conjuração em si. Agora então, com Ziri pagando o dízimo — ele se oferecera de maneira insistente, chegando até a implorar, como forma de recompensá-la por sua magia —, Karou sentia como se não estivesse fazendo praticamente nada. Seu quarto ficava cheio demais. Era sufocante, as asas de Ziri tomavam muito espaço, e a cauda de Issa parecia tomar o chão inteiro, mas Karou se sentia... feliz. Feliz de verdade, não feliz como em O cálice sagrado. E adivinhem qual era a tarefa que ela ficava mais feliz em delegar, mais até do que o dízimo? A matemática.

— Eu sou bom em matemática — ofereceu-se Mik, ao ouvir por acaso suas reclamações a respeito dos cálculos da proporção asa-peso. — Posso ajudar?

Quando viu que ele podia mesmo ajudar, Karou ajoelhou-se no chão.

— Deuses da matemática e da física — entoou —, aceito sua dádiva na forma deste garoto inteligente de cabelo claro.

— Este homem — corrigiu Mik, ofendido. — Veja: costeletas. Pelo no peito. Um pouco, pelo menos.

— Este homem — retificou Karou, levantando-se e se curvando de novo em uma falsa prece. — Obrigada, deuses, por este homem... — Ela parou o que dizia para perguntar a Zuzana, com sua voz normal: — Espere aí. Isso faz de você uma mulher?

Karou só queria dizer que era estranho pensar em Zuzana — e nela mesma também — não mais como uma garota, e sim como uma mulher. O termo soava estranhamente velho. Mas a resposta de Zuzana (usando todo o poder de suas sobrancelhas a serviço da lascívia) foi:

— Bem, sim, já que você perguntou. Este homem fez de mim uma mulher. Dói pra caramba no início, mas depois melhora. — Então sorriu como um personagem de animê. — Muito. Melhora muito.

O pobre Mik ficou vermelho como um tomate, e Karou cobriu os ouvidos com as mãos.

— Lá, lá, lá!

Quando Ziri lhe perguntou do que estavam falando, ela também ficou vermelha e não explicou, o que só fez com que ele também corasse, imaginando qual devia ser o assunto.

Ao fim daquele primeiro dia, tinham feito cinco novos soldados para a rebelião, o dobro da média de Karou quando trabalhava com Ten, mesmo tendo começado tarde, pois ela precisara explicar os conceitos básicos a Zuzana e Mik. Seguiram a ordem de nomes e as especificações de Thiago, para aplacá-lo, mesmo quando viram que o turíbulo que Zuzana pegara ao acaso — aquele com que vinha perturbando Karou desde o dia em que chegara — continha Haxaya. A soldada raposa fora amiga de Madrigal no passado, e sua alma a fazia lembrar-se do pôr do sol e de risadas, ferinas como seus dentes; Haxaya era agradável de se ter ao lado... o que fez Karou começar a pensar em lados.

Em quem ela podia confiar? Os soldados do exército quimérico eram e sempre tinham sido extremamente leais ao general. Mas Karou tinha Issa, é claro, e Ziri, que se arriscava quando ia ao quarto dela para pagar o dízimo. Talvez o restante da patrulha de Balieros. Eles continuavam em estase, então não dava para ter certeza. Talvez Amzallag estivesse insatisfeito com as táticas de Thiago, assim como Bast, provavelmente. E ela gostava de Virko. Gostava de sua natureza jovial e cooperativa, e, a julgar por aquele dia em que ele vomitara, não era muito fã daquelas missões de terror, mas ela não conseguia imaginá-lo desafiando o Lobo.

Mas que ideias eram aquelas? Karou não conseguia nem se imaginar desafiando o Lobo, que dirá cogitar pedir isso aos outros. Contara a Ziri sobre suas desconfianças, contara que o Lobo queria matá-la, e, para seu total desconforto, ele não demonstrara nenhuma surpresa.

— Ele quer estar no controle de tudo — respondera Ziri. — E você provou há muito tempo que não está sob o encanto dele.

Ah sim, ela havia provado isso mesmo. A pergunta que ecoava em sua mente agora era: O que eu posso fazer?

Não podia continuar cooperando com ele. O caminho que ele seguia era bárbaro, o que já era bem ruim, mas também significava a ruína. O que ele havia causado ao povo do sul, por exemplo. Ela às vezes pensava que, se os soldados entendessem os efeitos daquela estratégia — se conseguisse fazer com que eles enxergassem —, então deixariam de apoiar Thiago. Mas, é claro, eles entendiam. Essa era a pior parte. E tinham seguido suas ordens mesmo assim, exceto uma única equipe.

E tampouco ela podia enfrentá-lo. Thiago era como um deus para eles; e ela? O que era ela? Uma amante de anjo em pele de humana? E mesmo que alguém lhe desse ouvidos, ela não tinha jeito nenhum para líder. Fazia muito tempo desde que sequer lutara em uma batalha, e estava com medo. Da responsabilidade, do império, das poucas chances que tinham de sobreviver e, acima de tudo, do próprio Thiago. Naquele exato instante, tinha medo de ver aquela crueldade nos olhos dele de novo.

— Talvez outro dia — dissera ela a Zuzana, fechando o turíbulo de Haxaya e colocando-o de lado. — No momento vamos tentar deixar o Lobo feliz.

E Thiago estava feliz com o trabalho deles. Quando lhe apresentaram os cinco novos soldados, ele disse:

— Muito bem.

Sua máscara estava de volta. Ele era todo gentilezas durante o jantar, chegando até a servir-lhes vinho — vinho? Aquilo era mercadoria rara, e não fora Karou quem conseguira —, para um brinde aos cinco novos espectros.

— À sobrevivência — disse ele, e Karou se perguntou: De quem?

Ao entregar aqueles novos soldados a Thiago — aquelas armas —, ela não esqueceu, nem por um segundo, para que eles seriam usados. Era repugnante, mas desafiá-lo não ajudaria em nada. Ela via a maneira como os outros o olhavam: com um inflamado misto de respeito e temor, desejosos de sua atenção e radiantes quando a recebiam. E via como Thiago lidava com eles, persuadindo e conquistando seus soldados, fazendo com que se sentissem especiais, escolhidos, sua última força.

Ela observou enquanto Thiago servia o vinho, mas, quando viu o formato esférico da garrafa, perdeu o interesse pela bebida. Não era um vinho quimera, de cor verde-clara, e sim um vinho serafim, tinto. Um dos soldados devia ter trazido a bebida de alguma cidade saqueada.

Ela se recostou na cadeira, brincando com o cuscuz no prato.

— Não vai beber? — perguntou Thiago, sentando-se ao seu lado.

— Não, obrigada.

— Há quem acredite que dá azar recusar um brinde — disse ele. — Que assim a bênção do brinde não alcança a pessoa.

O quê, do brinde dele à sobrevivência?

— Então quer dizer que se eu não beber do seu vinho, não vou sobreviver?

Ele deu de ombros.

— Não sou supersticioso. Mas é um bom vinho. — Ele bebeu. — Temos tão poucos prazeres ultimamente, e concordamos hoje mais cedo que este é um bom dia. Cinco soldados se unindo à luta, Issa de volta... sabe-se lá como. — Os dois olharam para Issa, sentada mais adiante na mesa com Nisk e Lisseth, ambos Naja também (ou ao menos a reinterpretação que Karou fizera dos Naja). — E, é claro, você tem seus amigos. — Ele apontou com a cabeça em direção a Zuzana e Mik.

Os dois estavam sentados de pernas cruzadas no chão, em um círculo de soldados, apontando para algumas coisas e aprendendo mais palavras em quimera: sal, rato, comer, a combinação infeliz das três palavras fazendo Zuzana rejeitar a carne em seu prato.

— Parece frango — disse Mik, dando uma mordida.

— Só estou dizendo que havia muito mais ratos aqui hoje cedo.

— Provas circunstanciais. — Mik deu mais uma mordida e disse, em um quimera razoável e arrancando gargalhadas dos outros: — Delicioso rato salgado.

— É frango — insistiu uma das Sombras Vivas.

Karou não sabia ao certo qual das duas era, mas ela agitava os braços como se fossem asas e até ergueu alguns ossos de galinha, tirados só Deus sabia de onde, para provar. Agora eu já vi de tudo. As Sombras Vivas, imitando galinhas.

A presença de seus amigos tinha mudado muito o clima na casbá, e para melhor. Ela estava adorando poder contar com a ajuda deles, assim como adorava ter a companhia deles. Mas, observando os dois ali de onde estava, ao lado de Thiago, e sabendo o que agora sabia, começou a ter um mau pressentimento.

— Pois é — disse ela, tentando um tom de voz ameno e casual. — Tenho meus amigos. Mas eles estão só de visita. Logo devem ir embora.

— Ah, que pena. Eles têm ajudado tanto. Aposto que você consegue convencê-los a ficar.

— Duvido muito. Eles têm seus compromissos.

— Mas o que poderia ser mais importante do que ajudar você? — Karou sentiu seu campo de visão se estreitar, como uma lente focando em seus amigos. Então era esse o novo jogo dele. A voz de Thiago era macia como veludo. — Eu detestaria que você os perdesse.

Perdê-los? Karou sentiu o sangue pulsando nos ouvidos. As ameaças de Thiago eram tão claras quanto a pele dele, mas ela não tinha dúvida de que o que havia por trás daquilo era sangue. Seus amigos eram uma vulnerabilidade. Ela se preocupava com eles. Thiago não estava interessado nos dedos habilidosos de Zuzana ou nos cálculos rápidos de Mik. Só havia uma razão para ele querer mantê-los ali: para usá-los como um meio de controlá-la. Ela deixou o fingimento de lado.

— Eu fico com Ten no lugar deles — disse suavemente. — Mas deixe os dois irem embora.

— Ah, acho que não. Ten possui muitas qualidades, mas acho que podemos concordar que servem mais para compelir a ressurreicionista do que para tornar-se uma.

— Não preciso ser compelida. Fiz tudo o que você pediu.

— De onde Issa veio?

A pergunta a pegou de surpresa. Sua hesitação foi mínima, mas estava lá, e provocou um sorriso cansado nele.

— Eu já disse.

— De verdade.

Karou sentiu seu corpo gelar. Ficou ali sentada vendo Zuzana fazer uma marionete barulhenta com os ossos de galinha. O boneco tinha juntas de corda e uma tigela lascada no lugar da cabeça, mas de alguma forma ela conseguira fazer aquela coisa parecer viva, se aproximando dos soldados e implorando por restos de comida. Os soldados aplaudiam e tocavam os tambores que Karou levara. Zuzana fez a marionete dançar até cair a cabeça, e então começaram a pedir que Mik tocasse o violino.

— Experimente o vinho — disse Thiago, levantando-se para sair. — É excelente. Sabe o que dizem sobre o vinho dos anjos? Quanto mais sangrento, melhor.

Ela não bebeu. Depois, no pátio com Issa, Karou ficou observando Thiago, mas ele apenas se sentou recostado na parede, sozinho, a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados, ouvindo a música.

Mas havia outros olhos abertos. Em meio às sombras, na galeria, Ten andava de um lado para o outro. Estava de olho em Karou, e nem tentava disfarçar. Não desviava o olhar nem quando girava para mudar de direção. De um lado para o outro, de um lado para o outro, incansavelmente. Era como se o próprio ódio do Lobo tivesse tomado corpo na forma dela — um corpo animal, com instinto de predador e dentes afiados, ávido pela ordem de matar que não tivera o prazer de receber.

Karou ficou toda arrepiada. Observou os soldados ali reunidos, todos arrebatados pela música de Mik. Alguns estavam de olhos fechados; outros, abertos. E ela nem sabia direito o que estava procurando.

— Não acho que ajudei você ao ressuscitá-la — disse gentilmente a Issa. O que ela lhe dissera antes mesmo, que a estase era tranquila? — Você estava mais segura no turíbulo.

A resposta de Issa foi igualmente gentil:

— Minha segurança não é importante.

— O quê? Para mim, é.

Você é importante, Karou. E a mensagem é importante.

A mensagem. Karou ficou muda. Parecia haver uma lacuna pairando entre as duas — um silêncio mais profundo que a música, esperando que ela o preenchesse com uma pergunta. O que Brimstone queria que ela soubesse? Estava na hora de perguntar. Ela nunca mais ouviria a voz dele, mas pelo menos tinha suas palavras, sua mensagem.

— É uma mensagem boa ou ruim? — perguntou a Issa.

A pergunta errada, ela sabia. Mas não pôde evitar.

— Um pouco dos dois, docinho — respondeu Issa. — Como todas as coisas.