61
— Como os Stelian entraram no refúgio sagrado? — refletia Hazael. — Se Akiva pudesse descobrir isso...
Liraz cortou-o logo:
— Mesmo que ele pudesse, nós não somos assassinos.
— Não por falta de tentativa.
Após o episódio da cesta de frutas, a informação que chegara até eles fora a de que Joram se fechara na Torre da Conquista, e que tinha até mesmo suspendido suas audiências com os cidadãos. Não havia forma de se aproximar dele. Pelo menos ainda não haviam pensado em nenhuma.
— Você me entendeu. Não somos de entrar furtivamente nos lugares e não somos as Sombras Vivas. Nosso pai verá nosso rosto antes de morrer.
— Eu sei. Você prefere que suas vítimas saibam quem as matou — recitou Hazael, como quem já tivesse ouvido aquilo uma centena de vezes.
— Principalmente desta vez — disse Akiva. — E é preciso que haja testemunhas.
Os dois olharam para ele, surpresos. Akiva vinha fazendo o kata, procurando alcançar o sirithar. Tentava encontrar um lugar calmo onde pudesse pensar em uma solução, mas não tinha conseguido nenhuma das duas: nem calma, nem solução.
— As pessoas têm que saber que fomos nós — disse ele, embainhando as espadas. — Ou então vão culpar os Stelian ou as Sombras Vivas, e Japheth não terá escolha a não ser assumir as guerras do pai.
Japheth era o príncipe herdeiro. Isso porque o irmão mais velho tinha sido assassinado pelo irmão do meio, que depois também fora assassinado no templo, naquela mesma noite, enquanto rezava para que os deuses da luz perdoassem seu pecado. Era lembrado como o Imperdoado; o irmão que ele assassinara era o Vingado, e Japheth era apenas Japheth. Ele não era nenhum modelo de conduta; era um frouxo, que não gostava de sair da Torre da Conquista nem mesmo com escolta completa. Um covarde, mas o tipo certo de covarde: o que fugiria da guerra mesmo que ele próprio não precisasse lutar. Pelo menos era o que Akiva esperava.
— E assim os Ilegítimos se tornarão o inimigo — disse Hazael, melancolicamente.
— O povo já nos despreza mesmo — disse Liraz. — Vão ficar felizes por ser nossa culpa.
— Vão mesmo — disse Akiva. — Vão dizer que Joram deveria ter imaginado que isso aconteceria, que a culpa foi dele mesmo, por colocar tantos bastardos no mundo. Ficarão chocados, e será o nosso fim.
— E quando você diz nosso, está falando...
— De todos nós. — Eram palavras pesadas. — Isso vai custar a vida de todos nós.
— Então nós três decidiremos o destino de trezentos? — perguntou Hazael.
— Isso mesmo — disse Akiva.
Ele olhou para o mar. Trezentos. Só trezentos. Tantos já perdidos. Akiva decidira o destino deles, não? Tinha dado início àquilo tudo. A guerra vinha acontecendo fazia anos, mas, com os portais queimados, terminara de vez em questão de meses. Com Brimstone paralisado, sem ter como recuperar seu suprimento, Joram avançara sobre os quimeras com todo e qualquer possível soldado sob seu comando, e eles sofreram inúmeras perdas em todas as frentes: o Domínio, a Segunda Legião, até mesmo os batedores e a marinha do império, mas os Ilegítimos foram os mais duramente atingidos, por serem dispensáveis, infinitamente renováveis. Sendo seu número já pequeno para começar, o índice de baixas entre eles foi espantoso: apenas um em quatro conseguiu sobreviver.
— Vamos avisar os outros — disse Akiva. — Eles vão deixar seus regimentos e se juntar a nós. Vocês conseguem pensar em alguém que tenha menos a perder?
— Escravos — respondeu Hazael.
— Nós somos escravos — disse Akiva. — Mas não por muito mais tempo.
Ao longo dos dias que se seguiram, eles começaram a lançar cautelosos alertas a seus irmãos bastardos; apenas de boca em boca, à medida que as tropas passavam pelo cabo Armasin. Alguns voos noturnos foram necessários, ocultos por encanto, para alcançar destacamentos distantes. Os Ilegítimos estavam espalhados pelos quatro cantos do império, uns aqui, outros ali. Akiva pensou em Melliel e seu regimento, mas não tinha como alcançá-los. O que será que tinham encontrado além do horizonte? Será que estavam vivos, que alguma das tropas que eles tinham ido encontrar estava viva, que haviam conseguido voltar? Ninguém tinha retornado ainda, nenhum dos mensageiros, batedores ou tropas avançadas de Joram. Ninguém que voara em direção às Ilhas Longínquas retornara.
Seria de se pensar que isso esfriaria o ardor do imperador com relação à conquista, mas os boatos que vinham da capital sugeriam justamente o contrário. Hazael arrancava toda a informação possível dos passantes — e havia cada vez mais viajantes naqueles dias, pois nobres com uma pesada escolta cruzavam as águas para inspecionar suas novas propriedades —, e os fragmentos de notícias formavam um estranho mosaico.
— Ele está planejando uma invasão? — indagou Akiva. — Não faz o menor sentido.
— Mil túnicas completamente brancas — relatara Hazael. Eram boatos como este que eles ouviam dos senhores e seus criados. — Ele mandou fazer mil túnicas completamente brancas, com estandartes igualmente brancos. — Hazael fez uma pausa. — Para os soldados do Domínio.
— Do Domínio?
Fazia cada vez menos sentido. Em primeiro lugar, a cor do Domínio era vermelha. Branco significava rendição, e Joram não se rendia. Mas a cor era um mero detalhe comparado à questão mais importante: aquelas coisas estavam sendo preparadas para quê? Estandartes e túnicas novos... para impressionar o inimigo? Que tipo de impressão o branco causava? E o que poderia estar encorajando Joram a enviar mais tropas para aquele lugar ermo, e justo as tropas do Domínio? Ele nunca arriscaria perder seu exército de elite nas misteriosas brumas daquele lugar. Os Ilegítimos talvez, mas o Domínio?
— E isso por pressão do próprio Jael — continuou Hazael. — Estão dizendo por aí que a ideia é dele.
Jael? O capitão do Domínio podia ter vários defeitos monstruosos, mas não era burro. Sem contar a questão dos harpistas. Joram ordenara que os harpistas do monastério de Brightseeming interrompessem sua devoção aos deuses da luz e fossem para Astrae, onde se vestiriam de branco, como os soldados do Domínio.
— Tem alguma coisa acontecendo — disse Akiva. — Alguma coisa que ainda não se transformou em boato. Mas o quê?
— Acho que vocês vão descobrir agora.
Era Liraz, entrando no alojamento com um pergaminho na mão. Estendeu-o para Akiva: o pergaminho exibia o selo imperial. Ele congelou, sabendo o que poderia ser, e olhou para os irmãos.
— Rápido — apressou Hazael, tenso.
Então Akiva quebrou o selo, desenrolou o pergaminho e leu a convocação em voz alta:
— Vossa Eminência Joram, o Invencível, Primeiro Cidadão do Império dos Serafins, Protetor de Eretz, Pai de Legiões, Príncipe da Luz e Flagelo da Escuridão, Escolhido dos Deuses da Luz, Senhor das Cinzas, Senhor dos Queimados, Senhor de uma Terra de Fantasmas...
Hazael pegou o pergaminho para ver se os últimos três títulos estavam mesmo escritos e viu que não, então decidiu ele mesmo continuar a leitura.
— ... em reconhecimento aos serviços heroicos prestados ao reino, convoca a se apresentar em sua presença o soldado Akiva, da tropa dos Ilegítimos, sétimo de seu nome... — Hazael parou de ler e olhou para Akiva. — Você é o sétimo? Nossa, é um monte de Akivas mortos, meu irmão. Sabe o que isso significa? — Ele estava muito sério.
— Não. O que significa?
Akiva se preparou para ouvir um mau presságio inventado como zombaria. Seis bastardos tinham recebido aquele nome antes dele? Sim, era muita coisa. Alguns deviam ter morrido na infância, ou no campo de treinamento. Hazael provavelmente lhe diria que o nome era amaldiçoado.
Mas não. Em vez disso, seu irmão falou:
— Significa que a urna de cremação está cheia, não há espaço para as suas cinzas. Você não tem escolha. — Então abriu seu largo e infeliz sorriso. — Não pode morrer.