67
Amzallag avançou em disparada e caiu de joelhos diante de Issa.
— Quem? — perguntou ele, quase em um sussurro. — Quem foi para a catedral?
Alguns outros soldados esticaram o corpo na direção deles, contendo a intensa dúvida.
— Milhares — respondeu Issa, afetuosamente. — Não havia tempo para se fazer um registro. Sinto muito.
Karou deu um passo à frente.
— Todas as crianças foram — disse ela, olhando para Issa em busca de confirmação. — E as mães. São grandes as chances de as suas famílias estarem lá.
Amzallag parecia atordoado. E, com suas feições de tigre, o “atordoado” se manifestava apenas nos olhos arregalados, como uma ligeira variação de sua constante ferocidade — ferocidade que era mais obra de Karou do que dele mesmo. Sua alma era pura como campos arados e tranquila como um cavalo de fazenda, mas, com aquele corpo novo, era quase impossível não parecer feroz. Sua mandíbula estava aberta, exibindo as presas afiadas como facas, e os olhos alaranjados nem piscavam. Mesmo de joelhos — as pernas dianteiras de veado estavam dobradas à frente do corpo, e as ancas de tigre, curvadas — ele ainda era mais alto do que Issa. Amzallag estendeu os braços cinzentos e imensos e pegou as mãos da Naja. Posso dar a ele uma forma mais gentil antes que ele reencontre a família, pensou Karou.
Mas era cedo para pensar nisso. Cedo demais.
Enquanto Amzallag segurava em suas enormes mãos as de Issa, Karou observava Thiago. Quando Amzallag agradeceu, em uma voz que parecia a nota mais triste de um violino, o Lobo arreganhou os dentes em um rosnado rápido.
— Sou só uma mensageira — disse Issa.
Foi então que os olhos de Thiago correram dela para Karou.
— Conte-nos de novo — disse ele — como examente isso aconteceu.
— Como o que aconteceu? — perguntou Issa.
Amzallag soltou as mãos dela e se levantou, virando-se com um movimento suave de tigre para se colocar ao lado de Issa — e de Karou —, oposto ao Lobo. O movimento foi deliberado, e passou uma mensagem clara de aliança. Mas a sensação de triunfo de Karou foi comprometida pelo inquérito que sentiu que viria.
— Como você chegou entre nós — continuou Thiago. — Um dia, de repente, aqui estava você. É muito estranho.
— Pode ser estranho, mas não tenho como esclarecer sua dúvida. A última coisa de que me lembro antes de acordar é, obviamente, de morrer.
— E para onde Brimstone planejava enviar sua alma nas garras do squall? Você deve saber isso, pelo menos.
Karou interrompeu:
— Isso é tudo o que você tem a dizer? Acabamos de contar que milhares de quimeras ainda podem ser salvos, e você fica falando sobre squalls? Thiago, nossas crianças podem viver novamente. Essa é uma notícia incrível. Você não está feliz?
— Minha felicidade, minha cara, é moderada pelo realismo, como a sua deveria ser. Viver onde? Como? Isso não muda nada.
— Isso muda tudo! — gritou ela. — Tudo o que você vem fazendo não traz nenhuma esperança. Será que não você vê? Nada disso traz nenhum futuro. Essa brutalidade, os ataques a civis? Seu pai não ficaria nada feliz com isso. Tudo o que você fizer aos serafins, Joram vai revidar cem vezes, mil vezes pior. — Então se dirigiu ao grupo: — Thisalene lhes deu alguma satisfação? Os anjos devem morrer?
Ela localizou Tangris e Bashees, e lutou contra o medo que não deixaria sua voz sair da garganta. Apelar para as Sombras Vivas? Estava ficando maluca? Lembre-se da imitação de galinha, disse a si mesma, tomada por uma súbita histeria.
— Em Thisalene, vocês mataram uma centena de anjos — disse Karou. As esfinges encontraram o olhar dela com seu ar inescrutável. — E centenas de quimeras morreram por isso. — Uma das esfinges piscou. Karou continuou, focalizando sua atenção na reação dos outros, o coração batendo furiosamente: — E vocês. Vocês os deixaram morrer. Vocês lhes deram esperança... Os sorrisos do Comandante, as mensagens. Nós renascemos? E então? Todos aqueles quimeras do sul, eles não acreditavam que vocês começariam essa luta, atrairiam os inimigos para cima deles em quantidades absurdas e depois os abandonariam. Vocês sabiam... — Karou engoliu em seco. Sua crueldade, ao falar as coisas daquela maneira, lhe parecia fria e pungente. — Sabiam que eles morreram olhando para o céu, à espera de vocês?
Ela viu Bast dar um passo cambaleante para trás. Alguns outros respiravam como se sentissem um bolo na garganta. Virko olhava para o chão.
— Não deem ouvidos a ela — rosnou Ten. — Ela não tem como saber o que aconteceu lá.
— Eu sei muito bem o que aconteceu lá. — Ela hesitou. Seria traição contar sobre a desobediência de Balieros? Ele lhes contaria, se estivesse ali; Karou tinha certeza. O futuro da rebelião estava em jogo, e ela podia usar aquela cartada para virar o jogo a seu favor. Como não usá-la? — Porque uma equipe tomou uma decisão diferente. Vocês acreditam mesmo que Balieros, Ixander, Viya, Azay e Minas sucumbiram à guarda de uma cidade qualquer? Eles morreram combatendo os soldados do Domínio no sul. Morreram defendendo os quimeras. Enquanto isso, vocês faziam o quê?
O sol se erguia no céu, o calor aumentava. O pátio estava claro e silencioso. Thiago respondeu:
— Fazíamos o que os anjos estavam fazendo, e ainda assim você nos critica, e não aos serafins. Quer que fiquemos deitados, com o pescoço exposto, à espera deles?
— Não.
Karou engoliu em seco de novo. Estava entrando em um terreno difícil: como argumentar para que tomassem um rumo diferente sem se passar por uma pacifista sonhadora? Ingênua, na melhor das hipóteses, ou simpatizante do inimigo, na pior, como eles já achavam. Tudo se resumia a isto: ela não podia lhes oferecer uma alternativa real de luta. Quando sonhara junto com Akiva com um mundo refeito, acreditara que ele traria seu povo e que ela, de alguma forma, traria o dela. Como se o futuro fosse um ponto no meio do caminho, uma terra com regras diferentes, onde o passado pudesse ser superado — ou esquecido? —, como se as tatuagens dos dedos dos serafim pudessem ser apagadas.
Agora, fora da bolha daquele amor tolo, Karou via como o sonho dos dois teria se tornado amargo se houvessem tido a chance de tentar concretizá-lo; teria se manchado, sujado. Aquelas marcas nunca se apagariam. Teriam existido para sempre — entre ela e Akiva, quimeras e serafins —, assim como os hamsás. Eles não podiam nem se tocar direito. Pensar que haviam acreditado ser possível unir dois pares de mãos assim fazia o sonho parecer mais louco do que nunca. E no entanto... a única esperança é a esperança. As palavras de Brimstone, na época e agora de volta, relembradas por Issa.
“Filha do meu coração”, dizia a mensagem que Brimstone deixara a Karou. Teve vontade de chorar de novo, bem ali no pátio, ao se lembrar dela. “Duas vezes minha filha, minha alegria. Seu sonho é o meu sonho, e seu nome é verdadeiro. Você é toda a nossa esperança.”
Seu sonho. Um sonho sujo e manchado é melhor que nenhum. Mas Karou tinha Akiva na época, tinha a esperança de que ele pudesse trazer os serafins para aquela nova maneira de viver. E o que tinha agora? Nada para prometer, nenhum plano. Nada além de seu nome.
— Não — disse ela de novo. — Não quero que fiquemos com o pescoço exposto, à espera deles. Nem deixaria você atirar nosso povo aos pés deles, em sua pressa para massacrá-los. Tampouco permitiria que você enterrasse nosso futuro sob cinzas, somente para poder fazer o mesmo com eles.
Thiago estreitou os olhos enquanto tentava sem sucesso encontrar rapidamente palavras para responder.
Karou prosseguiu:
— Brimstone me disse uma vez que permanecer leal diante do mal é um feito de força. Se deixarmos que eles nos transformem em monstros...
Ela olhou para Amzallag, para o tom cinzento de sua pele; para Nisk e Lisseth, que estavam logo atrás de Thiago, ambas ainda visivelmente Naja, mas sem um pingo da graça e da beleza de Issa; para todos os outros, grandes demais, com presas compridas demais, alados e com garras, tão pouco naturais. Ela fizera aquilo, o trabalho literal de transformar aqueles quimeras nos monstros que os anjos acreditavam serem.
— Alguém tem que parar com as mortes — implorou ela a Thiago. — Alguém tem que parar primeiro.
— Que sejam eles, então — replicou Thiago, tão frio, os lábios tremendo com o esforço de não soltar um rosnado. Sua fúria era palpável.
— Só podemos decidir por nós mesmos. Pelo menos poderíamos cessar os ataques por tempo suficiente para pensar em outra forma de agir, em vez de tornar tudo muito pior, sempre pior.
— Estamos destruídos, Karou. Não tem como ficar pior.
— Tem, sim. Já ficou. As Terras Distantes? O Tane? O que Razor está fazendo agora, e como os serafins vão responder? Pode ficar cada vez pior, até não restar mais ninguém. Ou talvez... talvez possa ficar melhor. — De novo as palavras de Akiva lhe vieram à mente, e de novo Karou as repetiu, dessa vez sem corar: — Os quimeras continuarão ou não a existir no futuro, dependendo do que nós façamos agora.
E foi então que as Sombras Vivas abriram suas silenciosas asas, levantaram voo com a graça dos sonhos e pesadelos, avançaram acima das cabeças de seus companheiros e aterrissaram suavemente ao lado de Karou. Não falaram nada; era raro falarem. A postura delas estava clara: a elegante cabeça erguida, os olhos desafiadores. Karou ficou sem ar, invadida por uma súbita onda de emoção. De poder. Amzallag, Tangris, Bashees, Issa. Quem mais? Olhou para os outros. A maioria parecia atordoada. Mas em vários olhares Karou viu uma crueldade equiparável à do Lobo, e soube que o ódio de alguns entre eles nunca mais seria tocado pela esperança. Em outros, ela viu medo.
Em muitos outros. Mas Bast viria para o seu lado; Karou esperou que ela desse um passo à frente. Estava quase. Emylion? Hvitha? Virko?
E Thiago? Ele olhava fixamente para Karou, e ela se lembrou dele a encarando no bosque de réquiem, em outra vida. Viu aquela crueldade de novo, as narinas abertas, o olhar selvagem, mas então... viu-o recuar. Percebeu o momento em que ele dominou sua fúria, e, de forma perspicaz e calculada, e com grande esforço, vestiu novamente sua máscara. Aquela moderação fingida era pior do que ódio ou medo. Aquela grande, imensa mentira.
— Minha senhora Karou — disse ele. — Seu argumento é poderoso.
Espere, pensou Karou. Não.
— Vou levá-lo em consideração — continuou ele. — É claro. Vamos pensar em todas as possibilidades. Vamos pensar inclusive em como, agora, com nossos corações felizes, vamos colher as almas da catedral.
A onda de poder que Karou sentira se desfez por completo. Ao lhe dar aquela pequena vitória, o Lobo lhe tirara a chance de uma ainda maior. Agora nenhum dos outros soldados precisava reunir coragem para se unir a ela, e dava para notar o profundo alívio que sentiam. Dava para ver isso na postura, no rosto deles. Não queriam escolher. Não queriam escolher Karou. Como era mais fácil se deixar guiar pelo general... Bast nem olhou para ela. Covardes, pensou, começando a tremer quando toda a sua coragem inflamada foi se transformando em frustração. Será que acreditavam mesmo que o Lobo Branco pensaria em encerrar — ou mesmo temporariamente suspender — sua cruzada? Vitória e vingança. Ele teria que destruir seu estandarte, fazer outro. Karou se lembrou com saudade do símbolo do Comandante: folhas brotando de chifres. Nascimento e crescimento. Tão perfeito e tão distante.
E de repente o restante dos soldados também estava distante. Thiago estava acostumado a exercer o poder, bem ao contrário dela. Sem dificuldade alguma, ele tomou de volta o pouco que ela havia ganhado e direcionou as energias do exército para seus planos.
Seus planos para a colheita das almas enterradas na catedral.
O próprio Amzallag foi o primeiro a se voluntariar. Deu um ávido passo à frente, e outros o seguiram. Karou ficou plantada no lugar, quase esquecida. Issa apertou sua mão, para mostrar que compartilhava de seu desânimo. Já as Sombras Vivas desapareceram antes mesmo que ela pudesse lhes agradecer, e logo o calor do sol fez com que a maioria deixasse o pátio.
O dia passou em meio a essa atmosfera de energia renovada. Karou e Issa observavam e ouviam, e Thiago parecia mesmo estar fazendo o que dissera: considerando todas as possibilidades, inclusive pensando como conduziriam uma escavação em território patrulhado pelo inimigo e até o que fariam no sul para ajudar mais quimeras a alcançar as Terras Distantes. Era exatamente o que Karou queria, e ela mal conseguia respirar, pois sabia que era apenas mais um lance no jogo do Lobo. Uma finta. Mas o que isso escondia? Qual seria seu verdadeiro jogo?
Quando a noite caiu, ela descobriu.