68

SIRITHAR

Akiva seguiu Byon pela última porta. Perfume e umidade o receberam; uma onda de vapor obscureceu sua visão no instante em que ele cruzou o umbral da porta, e ele ouviu a voz do pai antes de vê-lo.

— Ah, Lorde Bastardo. Como você nos honra com sua presença.

Era uma voz poderosa, fortalecida por tantos clamores pela morte das feras em batalhas passadas. Fosse o que fosse agora, Joram já fora um guerreiro um dia.

E era o que ele parecia. Akiva se curvou; começava a se erguer quando o vapor se dissipou, e ele viu que se encontravam em uma sala de banho, e que Joram estava nu. O imperador ficou de pé nos ladrilhos embaçados pelo vapor, forte e vigoroso, a pele avermelhada pelo calor, cercado pelo pequeno exército de criados aparentemente necessários para purificar sua pessoa real. Uma garota derramou um jarro d’água sobre a cabeça dele, que fechou os olhos. Outra, de joelhos, lavava-o com uma espuma grossa como chantilly.

Akiva tinha imaginado aquele encontro de muitas maneiras diferentes, mas em nenhuma delas seu pai estava nu. Ele não suspeita de nada, pensou. De outro modo, me receberia vestido e armado.

— Senhor imperador — disse —, a honra é toda minha.

Nossa honra, sua honra — disse Joram, com a voz arrastada. — O que devemos fazer com tanta honra?

— Sempre podemos enforcá-la no Setor Oeste — disse outra voz, e Akiva nem precisou ver o rosto cortado ao meio para saber de quem era. Afundado em um banco de banho, em uma pose de informalidade a que somente ele se atreveria na presença do imperador, estava Jael. Bem, isso era conveniente, uma vez que, é claro, Jael, assim como Joram, não poderia continuar vivo. Para alívio de Akiva, o capitão estava inteiramente vestido. — Se ao menos houvesse espaço no cadafalso... — disse ele, como um lamento, arrancando risadas dos outros ali reunidos.

Akiva observou rapidamente o rosto deles. Embora não tão relaxados quanto Jael, todos pareciam tão à vontade que faziam entender que aquelas reuniões durante o banho deviam ser comuns.

O rosto cruel de Joram se abriu em um sorriso.

— Sempre se pode abrir espaço no cadafalso — disse ele.

Aquilo era uma ameaça? Akiva achou que não. Joram não estava nem olhando para ele; o imperador fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, para que a criada a molhasse novamente. Depois, sacudiu a cabeça com força, espirrando água para todo o lado. Namais e Misorias, de pé bem perto dele, piscaram quando foram atingidos pelos pingos d’água, mas fora isso não moveram um músculo. Dizia-se que os guardas pessoais de Joram — irmãos — eram guerreiros letais. Eram a primeira preocupação de Akiva. Havia também Espadas de Prata presentes ali, dois ao longo de cada parede: oito Lâminas Partidas com as armaduras de prata enevoadas pelo vapor condensado, as plumas caídas em razão da umidade. Akiva não estava preocupado com eles.

Na verdade, quando seu pai saiu da poça rasa de espuma, afastando-se das garotas de branco e indo em direção a um criado que estendia um robe, Akiva sentiu sua preocupação esmorecer. Ele podia não ter previsto uma sala de banho, mas, em todos os aspectos, aquele era o melhor cenário: poucos guardas em um ambiente reservado, um número limitado de testemunhas cujas palavras seriam levadas em conta e, o mais importante: a ausência de suspeita.

Nada no olhar daqueles serafins indicava cautela.

O príncipe herdeiro, Japheth, também estava ali, os olhos opacos de tédio. Era um serafim razoavelmente atraente. Devia ter mais ou menos a mesma idade de Akiva, suas feições permeadas por uma flacidez indefinível que passava uma imagem de fraqueza. Akiva sabia que Japheth não era nenhum modelo de conduta, mas seria melhor que seu pai — era isso o que importava. Ao lado dele estava Ur-Magus Hellas, com seu cabelo branco, chefe do círculo dos magos inúteis do imperador. Diziam que Joram o ouvia. Bastou ver seu olhar semicerrado de condescendência para Akiva saber que sua própria magia permanecia em segredo. Alguns outros rostos, igualmente arrogantes, não lhe eram familiares.

— Deixe-me ver você — ordenou Joram.

— Meu senhor — replicou Akiva, e ficou onde estava enquanto seu pai se colocava diante dele e o examinava, estreitando os olhos.

O imperador vestira o robe, mas não o fechara; Akiva torcia para que ele fizesse logo isso. Que intimidade estranha seria matar um homem nu. Joram estava tão perto que Akiva podia estender a mão e bater em seu peito. Ou perfurar seu coração. Teve a desagradável sensação que o peito de seu pai, rosado pelo vapor, cederia como manteiga mole. Estava consciente da tensão em sua mão ecoando as batidas de seu coração. A mão, o braço, o corpo inteiro queriam sacar a espada e acabar com tudo ali, mas sua mente fervilhava de perguntas.

O que ele quer comigo?

E não só isso. Foi terrível o que houve com ela. Se Akiva não descobrisse agora, jamais saberia.

Ele sustentava o olhar fixo do pai. Ou talvez o pai sustentasse o dele. Como os olhos de Joram eram parecidos com os de Liraz e Hazael: azuis, mais estreitos nos cantos externos e com fartos cílios dourados. Ao contrário dos olhos dos irmãos, no entanto, os de seu pai eram desprovidos de calor. Seu olhar era infame; um olhar em que se podia ver a própria morte, dizia-se, ou pelo menos a total insignificância da própria vida, um olhar que fazia os serafins se ajoelharem; e, dizia-se também, que fazia os indignos cortarem as próprias gargantas de tanta vergonha e pavor.

E Akiva viu mesmo a morte nos olhos do imperador, mas não a sua própria.

Ele sentiu algo preso na garganta. Sabia o que era: emoção, mas... por quê? Não por Joram, não era remorso pelo que estava prestes a fazer. Seria pela mulher sem rosto e quase esquecida que lhe dera seus olhos de tigre e se mantivera fora do caminho quando os guardas o levaram? Ou... pelo rosto que ele tinha visto espelhado em prata naquele dia, pequeno e assustado e refletido vezes sem conta nas placas metálicas das canelas dos Espadas de Prata. Por ele mesmo. Por tudo o que tinha perdido e por tudo que nunca tivera e nunca teria.

— Sim, você vai servir — disse Joram por fim. — Que sorte, afinal, eu ter deixado você viver. Se tivesse mandado matá-lo, quem eu mandaria até eles?

Mandar até eles.

— Mas eles podem decidir matar você. Afinal, o que sei eu a respeito dos Stelian? Faça suas despedidas, por via das dúvidas.

Do outro lado do quarto, Jael falou:

— Dá azar um soldado se despedir, irmão. Esqueceu? Despedidas provocam o destino.

Joram revirou os olhos, dando as costas a Akiva.

— Então não se despeça de ninguém. Que me importa? — Ele agora saíra de seu alcance imediato; e Namais e Misorias estavam bem ali. Akiva deixara passar uma oportunidade. Mas haveria outra. Ele criaria outra. — Esteja pronto para partir pela manhã. — Joram olhou para trás, em direção a Hazael e Liraz; se notou a semelhança dos dois com a própria fisionomia, não deixou transparecer. — Sozinho.

— Partir para onde, meu senhor? — perguntou Akiva.

Ele já tinha feito seus planos para a manhã seguinte, é claro — desaparecer sem deixar rastros —, mas a linha solta de um mistério estava esperando para ser puxada. Sua mãe.

— Para as Ilhas Longínquas, naturalmente. Os Stelian acreditam que tenho em minha posse algo que é deles. E a querem de volta. Jael, você se lembra? Nunca perdi meu tempo decorando o nome delas. Como ela se chamava?

— Lembro, sim — disse Jael. — Chamava-se Festival.

Festival.

— Festival. Com um nome desses, era de se esperar que ela fosse divertida. — Joram balançou a cabeça, como se lamentasse. — Será possível que eles acreditem que eu a mantive aqui esse tempo todo?

Festival.

O nome foi como uma faísca. Imagens. Perfume. Toque. O rosto dela. Por um instante Akiva se lembrou do rosto da mãe. Da voz dela. Fazia muito tempo — décadas — e eram apenas fragmentos, mas o efeito foi imediato: foco e clareza, como luz concentrada em um feixe.

O efeito foi o sirithar.

Akiva achava que conhecia o sirithar. Era parte de seu treinamento; ele passara anos fazendo katas ao amanhecer, buscando a serenidade dentro de si mesmo; era elusivo, mas ele acreditara saber o que era. Mas aquilo era diferente. Era verdadeiro e instantâneo e indelével. Não era de se admirar que ele não tivesse entendido; sem dúvida alguma que tampouco seus instrutores o tinham alcançado.

Era mágico.

Não o tipo de magia que ele descobrira sozinho, alcançada a partir de conjecturas e dor. Era como se ele tivesse passado a vida inteira cavando e arranhando a terra para só agora levantar a cabeça e ver o céu e seus infinitos horizontes, sua extensão insondável. Qualquer que fosse a fonte do poder ou o dízimo, não era dor. Na verdade, a dor em seu ombro tinha sumido. O que era aquilo? Luz e disposição e uma sensação de leveza, uma calma profunda que fazia o mundo ao seu redor parecer desacelerar e congelar para que ele visse tudo: o maxilar de Japheth se retesando para conter um bocejo, um olhar de relance trocado entre Hellas e Jael, a pulsação mínima da jugular de Joram. O calor e o agitar das asas e o respirar de todos ali, cada movimento pincelando o ar. Ele soube que a criada agachada iria se levantar antes que fizesse isso: a luz se moveu antes, e a garota pareceu segui-la. Joram ia levantar as mãos; Akiva o previu, e foi o que aconteceu. O imperador por fim fechou o robe, amarrando a faixa da cintura. Ele ainda estava falando, cada palavra real e límpida como seixos em um rio. Akiva compreendeu que o que ouvisse naquele estado ficaria gravado perfeitamente em sua memória.

Que nunca se esqueceria das últimas palavras de seu pai.

E que sabia quais seriam essas últimas palavras.

— Você vai até lá então — dizia Joram, com a certeza do poder pleno e absoluto. Foi quando Akiva percebeu que nunca precisava ter se preocupado com as suspeitas do pai. Tão inflado estava Joram com a lenda que se tornara que não lhe ocorria a possibilidade de ser desobedecido. — Mostre a eles quem você é. Se o ouvirem, dê-lhes minha promessa. Se eles se renderem agora e entregarem seus magos, não farei com eles o que fiz com as feras. Os Stelian têm se saído bem capturando mensageiros no ar, mas o que farão contra cinco mil soldados do Domínio? Será que sequer têm exército? Acham que conseguem se livrar tão facilmente de mim?

Você não faz ideia de como eles estão fora do seu alcance. Uma parte de Akiva queria girar e se maravilhar com os rios de luz nadando pelas muitas camadas de vidro da magnífica construção, levantar as mãos e contemplá-las como se tivessem sido refeitas, como se ele mesmo fosse uma criatura inteiramente nova, composta por aqueles raios de luz.

Luz velando fogo.

Uma voz, vinda do passado distante. “Você não pertence a ele.” Era a voz dela, um vibrato ressonante, modulado e cheio de poder. Tinha sido naquele dia. “Você não pertence a mim. Você pertence a si mesmo.” Ela não havia chorado. Festival. Não tentara segurá-lo ou lutar com os guardas, não dissera adeus. Despedidas provocam o destino, como Jael dissera.

Será que ela pensara que o veria de novo?

— Você a matou?

Ele se ouviu fazendo a pergunta e percebeu várias coisas ao mesmo tempo: o silêncio repentino do conselho; Namais e Misorias segurando os punhos de suas espadas; um lampejo de interesse por parte de Japheth, que perdera o anseio por bocejar. Não precisava nem ver Hazael e Liraz atrás de si para saber que os músculos deles relaxaram, de prontidão; sabia que Liraz já estava abrindo seu enervante sorriso de batalha.

— Você matou minha mãe?

E viu os olhos do pai, sem nenhuma surpresa, cheios de desprezo.

— Você não tem mãe. Assim como não tem pai. Você é um elo de uma corrente. Você é uma simples mão feita para brandir uma espada. Uma carcaça para vestir uma armadura. Esqueceu todo o seu treinamento, soldado? Você é uma arma. É uma coisa.

Eram essas as palavras. Akiva as ouvira pelo brilho do sirithar em um eco reverso. Já sabia que seriam as últimas de Joram.

Então retirou o encanto da espada e a desembainhou. Ele se movia na maré do tempo; tudo acabaria antes mesmo que as testemunhas pudessem levar um susto. Namais e Misorias puseram-se em movimento, mas estavam em outro plano de existência. Akiva era fogo velado em luz. Detê-lo era uma esperança vã. Akiva cruzou o espaço que o separava do imperador no tempo que levou para os frios olhos de Joram piscarem, surpresos.

Como ele pôde não ver como eu mudei?, perguntou-se Akiva, e fez a lâmina penetrar pela seda do robe do pai, deslizando até o coração.